LEI ÁUREA: UMA CONTRA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

A História do Brasil é marcada por momentos de potenciais revoluções, que ora se desenvolvem em revoluções de fato (como em 1930), ora em uma articulação das classes dominantes no sentido contra-revolucionário – abortando, assim, a revolução no seu ventre, antes mesmo dela sair à luz da História.

A lei que pôs fim a instituição da escravidão, pode ser encarada como um desses episódios de contra revolução brasileira. Isto porque impediu a catarse[1] durante um clima de tensão social que pairava no Brasil às vésperas do 13 de maio.

A Lei Áurea, sancionada em 13 de maio de 1888.
A abolição do trabalho escravo no Brasil, um caso particular de mudança institucional ocorrido no final do século XIX, está inserida no processo de decomposição do regime monárquico. O império brasileiro reproduzia-se através de um regime escravista. Muitos dos que rebelaram-se contra o governos monárquicos eram também proprietários de gente. Os partidos de um modo geral defendiam a manutenção do trabalho escravo, salvo um ou outro parlamentar – ou algum revolucionário, como foi o caso de Cipriano Barata. A monarquia era contra a democracia e instável em todos os sentidos. Outra característica deste período era a corrupção parlamentar, já que o regime tinha uma natureza absoluta. Aqueles que mandavam tinham uma mentalidade política muito limitada, eram política e culturalmente virados para a Europa e de costas para a realidade brasileira.

Nelson Werneck Sodré (1989) mostrou que a monarquia estava realmente muito longe de ser um modelo de virtudes. Mas se a monarquia teve os seus limites, a república surgiu para evitar uma revolução, afinal
O que era válido em 1820 não era válido em 1880. O império era obsoleto. Tratava-se de mudar, de substituí-lo por outro regime, pela república. E, para isso, era preciso, mais uma vez, evitar a revolução, evitar que as reformas fossem profundas. E por tudo isso é que a república foi o que foi (p. 30).

Mais de uma vez, portanto, o governo brasileiro agiu para evitar uma revolução social, foi assim com a república e com a abolição do trabalho escravo com a “Lei Áurea”. Este ato do governo acabou com o sistema de escravidão, mas basta uma rápida busca na internet para descobrir que ainda hoje há trabalho escravo.

Na época em que o modo de produção brasileiro era predominantemente escravista, tínhamos também mão-de-obra livre, tínhamos capitalistas e homens-do-mato, e a complexidade de nossa História não para aí. O Brasil desenvolvia-se através de uma diversidade de processos de produção, aonde conviviam diferentes formações sociais com economias coletoras ou produtoras[2]. E os negros escravizados tinham consciência política, embora limitada por suas possibilidades de sobrevivência em uma sociedade escravista, além da impossibilidade quase absoluta de letramento. Mas eles se levantaram e foram mais longe do que os marxistas brasileiros de hoje. Se, como Sodré mostrou a partir de pesquisas documentais, que quem mandava era muitas vezes tão analfabeto quanto os trabalhadores escravizados, por que em nenhum livro da historiografia brasileira afirma-se que os brancos não tinham consciência política?[3]

Mesmo sem dominar a cultura letrada, os negros e outros subalternizados organizaram quilombos e, em situação semelhante, os parlamentares brasileiros criaram leis para reafirmar a sua autoridade. A Lei Áurea foi uma dessas leis, que deve ser entendida em um processo.

A lei [do ventre livre], reafirmava a autoridade dos senhores. Não libertava os escravos, apenas estabelecia condições para que essa liberdade fosse alcançada, após o cumprimento de determinadas exigências. Colocada no palco, numa fase de agitação e quando o fim do escravismo estava à vista, debilitava a resistência dos escravos e freava o ímpeto do movimento abolicionista que apenas se iniciava. Visava, particularmente quando as fugas de escravos se avolumava, a controlá-los e a fixá-los. Criava, para isso, o registro dos escravos e o fundo de emancipação (SODRÉ, 1989, p. 39).
Algumas destas leis, que eram para “ingleses verem”, obrigaram os trabalhadores a continuarem juridicamente escravizados mesmo depois de assinada a Lei Áurea, que foi uma importante lei trabalhista, e ao mesmo tempo uma lei extremamente conservadora: nós não a comemoramos.
A lei de locação de serviços, de 1879, como a do Ventre Livre e como a dos Sexagenários estabeleceram as condições para a extinção do trabalho escravo no Brasil. A chamada abolição, em 1888, já não entrava em detalhes, não impunha condições. Foi certamente a lei mais curta que o Império conheceu porque, na realidade, foi apenas o remate final, o acabamento de um longo e tortuoso processo. Tudo fora regulado antes. Não havia mais, mesmo, do que assinalar o fim do regime do trabalho escravo (SODRÉ, 1989, p. 41).
A dinâmica da civilização brasileira escravista é melhor compreendida a partir das várias formas de rebeldia negra, desde os quilombos, passando pelos tribunais e pelos parlamentos. No Brasil escravista todo africano era um potencial quilombola, pois a violência caracterizava este sistema no Brasil. A Coroa, como a sociedade escravista, não confiava no homem do mato, que tinha regimentos para disciplinar o seu trabalho, enquanto profissionais do regime. Defendemos que o corpo de homem do mato pode, também, ser percebido como uma forma de rebeldia contra a escravidão, pois há um “universo de contradições geradas pelo escravismo” (GUIMARÃES, 1988, p. 45). Ainda há, por exemplo, muitas pesquisas a serem realizadas sobre as relações entre a mineração clandestina e o homem do mato. Por outro lado, a alforria não implica em conquista de liberdade. O negro forro era considerado um homem livre? A alforria, poderá também consistir em um dos mecanismos de reprodução do sistema escravista?

Outros autores trataram sobre este fato da História brasileira como um processo, e mostram como a luta de classes estava se agudizando: a revolução estava a um passo de acontecer. O historiador americanista de ideologia marxista Caio Prado Junior, em seu livro “Evolução política do Brasil”, afirmou que no período imediatamente anterior a abolição, as fugas em massa e as revoltas, eram comuns nas fazendas do Brasil. Os negros que fugiam destas fazendas iam para os quilombos, potenciais focos guerrilheiros, não só contra a escravidão, mas como contra todo o regime político e econômico da época. Talvez, se a escravidão tivesse durado mais uns dois anos, iria ser derrubada por uma verdadeira revolução social – ao estilo da gloriosa Revolução Haitiana, distribuindo terras aos negros e mestiços pobres. D. Pedro II poderia ter sido degolado, ao invés de sair pomposa e calmamente do país, a bordo de um navio rumo a Paris. O próprio movimento abolicionista, que iniciou de forma muito moderada e conciliadora estava se radicalizando progressivamente na década de 1880.

Vejamos esta radicalização do movimento abolicionista. Dois nomes são importantes, podendo ser considerados abolicionistas radicais. São eles: Luis Gama e Silva Jardim.
Retrato de Luiz Gama

Luis Gama era negro, filho de uma relação de uma trabalhadora escravizada com um branco que o vendeu como escravo. Autodidata, foi membro da Força Pública (a polícia da época), escritor, jornalista e membro do Partido Liberal. Rompeu com este partido por suas políticas radicais sobre a abolição, causa pela qual lutava frequentemente, chegando a advogar em causa de muitos trabalhadores escravizados, libertando mais de 500!

Silva Jardim também era um abolicionista radical. Defendia uma verdadeira revolução popular para implantar a república e extinguir a escravidão do país.

Estes dois personagens são bem representativos no cenário social da década de 1880, pois são exemplos evidentes de que o movimento abolicionista estava se radicalizando (uma vez que o abolicionismo foi criado e difundido por monarquistas), e a longo prazo iria ajudar a provocar uma verdadeira revolução social, fruto de uma união de classes em luta. À medida que o abolicionismo foi escapando das mãos destes defensores da ordem monárquica, e ganhava contornos de revolução social, as elites anti-escravistas começaram a se mexer. Tentou-se de tudo para que a abolição fosse tranquila; para impedir que os guerrilheiros quilombolas varressem as elites do poder. Neste sentido, o império foi bem complacente com os abolicionistas moderados: era melhor conservar os dedos e perder os anéis dos que perder os anéis com os dedos! A monarquia decrépita decidiu agir em causa própria: adotou os conselhos dos cafeicultores que já não utilizavam a mão de obra escravizada, afastando os incômodos escravistas conservadores, para manter-se no poder. O tiro saiu pela culatra. A monarquia perdeu seus principais apoiadores: os escravistas, que agora bandearam para as fileiras republicanas – tornando-se republicanos “de última hora”. Ao mesmo tempo, se evitava uma sublevação popular.

Charge sobre a abolição.

As elites brasileiras são craques em abortar revoluções. Aprenderam isso em 1808, quando a família real desembarcou na costa do Brasil colônia, evitando uma revolta geral como as que ocorreram na América espanhola. Um cronista mexicano chegou a afirmar que o problema que os criollos tinham com o rei da Espanha, era que ele estava longe demais.... No Brasil o rei estava perto, não era preciso pegar em armas e se podia negociar olho no olho.

A Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, ganhou uma versão histórica de redenção. O império redentor, a princesa redentora. Pobres brasileiros, porque só se lembram de personagens históricos moderados (pra não dizer contra-revolucionários)....

Vimos que a História brasileira é repleta de temas instigantes, entre eles estão, com certeza, as contra-revoluções brasileiras, como o 13 de Maio; não apenas o golpe de 1964, em primeiro de abril, ou os governos federais petistas a partir de 2003. Com efeito, há de se considerar que a historiografia mais recente tem feito criticas a esta versão da abolição. Até mesmo o movimento negro no Brasil mudou a data do dia da Consciência Negra, de 13 de maio para 20 de novembro (morte do líder guerrilheiro Zumbi). Mas até esta historiografia tem seus limites. Em uma época como a nossa, quando o que parece ser novidade apenas reafirma os elogios concedidos à monarquia brasileira, os escritos clássicos estão muitos passos a frente em nossa evolução historiográfica que neste caso andou para trás.

O caso brasileiro de abolição do trabalho escravo representa uma diferença de nossa América em relação ao mundo europeu. Conforme Moses Finley, a partir dos Grundisse de Marx: “enquanto no Novo Mundo [América] a escravidão foi abolida, a escravidão antiga não o foi” (BOTTOMORE, 2012, p. 196).

Alerta!
Alvorada, 02 de junho de 2014


Notas:

[1]Uma revolução social tem o poder pedagógico de proporcionar a transição do saber própria de uma catarse, entendida como a “elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (GRAMSCI, 2006, p. 314).

[2]A ideia de concomitância de processos produtivos encontra-se em Caio Prado Junior e Nelson Werneck Sodré. A relação entre ambos produziu divergências e concordâncias. Sobre as diferenças entre economias coletoras e produtoras, ler KOSHIBA, 1994, p. 30.

[3] Apesar de notáveis qualidades e serviços prestados a historiografia brasileira, Sodré foi um dos autores que defenderam a inconsciência política dos negros rebelados: “Escravos e servos não tinham condições de consciência política e menos ainda possibilidade de participação” (SODRÉ, 1989, p. 51). Nesta mesma linha encontram-se Clóvis Moura, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso (GUIMARÃES, 1988).


Referências:


BOTTOMORE, Tom (org.). Dicionário do pensamento marxista. 2ª Ed. Rio de Janeiro, 2012.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.

GRAMSCI, Antonio.Cadernos do Cárcere. Vol. 1. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.

GUIMARÃES, Carlos Magno. Anegação da ordem escravista. Quilombos em Minas Gerais
no Século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988.

KOSHIBA, Luiz. O índio e a conquista portuguesa. 5ª Ed. São Paulo, Atual Editora, 1994.

PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.

_________. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.

SODRÉ, Nelson Werneck.A república (uma revisão histórica). Porto Alegre: Editora da
Universidade, 1989. 

_________. História da imprensa no Brasil. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2011.


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 
Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael Freitas. Graduado em História na FAPA, Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Tem interesse de pesquisa em História Social da América e Tendências Pedagógicas Contra-hegemônicas. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. 

3 comentários:

  1. Excelente artigo ! acrescentaria apenas alguns detalhes a saber:
    1- Na realidade o 13 de maio tinha um paradigma diferente do 20 de novembro, enquanto no primeiro se "comemorava" uma libertação inevitável, mas sob a ótica construida da "redenção", sem maiores contestações e conscientização, no segundo sim o paradigma muda a partir de proposição do movimento negro e surge a data como dia da consciência negra (sobreposta ao dia de Zumbi dos Palmares).

    2- Interessante citar também que a abolição "estatal" ampla já era uma realidade em estados e municípios bem antes do 13 de maio... , Ceará e Amazonas por exemplo já tinham feito a abolição em 1884, portanto quatro anos antes... em alguns municípios paulistas idem... .

    3- Discordo da ideia de Sodré, de que a lei áurea foi curta pelo fato de que "Tudo fora regulado antes. Não havia mais, mesmo, do que assinalar o fim do regime do trabalho escravo", toda a regulação prévia não tinha intenção nem teve eficácia emancipatória... , a impressão que se tem é que tal minimalismo na lei, tinha como objetivo garantir de forma silenciosa a eficácia do projeto de branqueamento nacional, a partir das ideias lançadas por Gobineau (que além de Proxy Françês, era influentíssimo sobre Pedro II) de que era necessário para o desenvolvimento brasileiro, extinguir paulatinamente os negros a partir de sua exclusão social e da massificação da imigração europeia..., acreditava-se na época que em 60 ou 70 anos a "limpeza racial" estaria concluída.

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  2. Saudações caro blogdojuarezsilva, obrigado por mais este excelente comentário! Estamos sempre dispostos ao diálogo. Eu concordo com a citação de Sodré, justamente por que não teve a mencionada "eficácia emancipatória", afinal, como afirmou Sodré em Panorama do Segundo Império, com a abolição não mudou o regime de propriedade de terra, nem obrigou-se transformar os libertos em assalariados, por exemplo, nada de estrutural mudou, uma das formas de inserção na sociedade era como homem do mato, e esta possibilidade extinguiu-se com o 13 de maio, para este escritor, o 13 de maio foi um golpe, tudo foi regulado antes para o Estado sistematizar como seria esta libertação, antes que os próprios subalternizados o fizessem. Desta forma muitos libertos em 13 de maio prosseguiram escravizados gratuitamente, como citado no texto. Acredito que as abolições provinciais fazem parte desta regulação que antecedeu o 13 de maio.
    Sabemos das hipóteses quanto o suposto ativismo da regente Isabel, mas neste exercício de uma produção textual em conjunto optamos por enfatizar alguns elementos contra-revolucionários deste evento.
    Abraço!

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  3. Obrigado pela oportunidade de entender um pouco mais do tema. Seria correto adicionar o fato de que internacionalmente havia pressão da Inglaterra para combater o trafegpo de escravos.
    Seria correto também indicar que Países de fronteira com o Brasil, como o Uruguay, por exemplo era destino de escravos fugitivos. Pressão externa teria acelerado uma legislação abolicionista também?
    Grato.
    Dante Romanó Neto 15/04/2018

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