O Brasil guarda até os dias de hoje uma espécie de homenagem ao episódio da “inconfidência mineira” de 1789: é o dia 21 de abril, dia de Tiradentes, o principal “mártir” deste movimento.
Na verdade, uma revolta contra as autoridades locais não chegou a acontecer, pois os inconfidentes foram delatados antes mesmo de colocarem em prática seus planos de independência e de república.
No início do século XVIII, a região central do Brasil se tornou a “menina dos olhos” da Coroa portuguesa com a descoberta de ouro. Para esta região migraram muitos proprietários ricos que desejavam mais riqueza e pobres, que desejavam acumular riqueza. Para as minas, eram levados trabalhadores escravizados, que trabalhavam em condições desumanas em busca de riquezas para outros. De fato, a região das minas se tornaram o centro da colônia portuguesa. Sendo assim, a Coroa resolveu dar maior atenção a ela.
Primeiramente, a Coroa desmembrou a região das minas da antiga capitania de São Vicente, colocando-a sob administração direta de seus funcionários. Quem concedia o direito a exploração das minas era a Coroa. Mais do que isto, a Coroa queria controlar a todo custo a produção aurífera. Por isso impôs que todo ouro extraído deveria ir direto para uma “casa de fundição”, onde seria transformado em barras e selado com o selo real. Neste instante, na própria casa de fundição, era cobrado um imposto sobre todo esse ouro. Era o quinto, ou seja, a quinta parte (20%) do ouro descoberto.
A sufocante administração colonial na região das minas, não permitia nem mesmo a livre passagem de pessoas que levassem ouro consigo. Para evitar que indivíduos levassem ouro às escondidas para fora da região, sem pagar o imposto real, os governantes mantinham uma revista em todos aqueles que saíssem da região mineira. Os únicos que estavam livres de tal revista eram os padres. Assim, muitos padres espertalhões aproveitavam esta brecha para levar quantidades de ouro dentro de imagens de santos como a Nossa Senhora do Rosário. Essas imagens ficaram conhecidas como “santos do pau oco”, pois eram ocos por dentro para caber o ouro.
Muito cedo a pesada mão dos governantes sobre a extração de ouro foi sentida nos garimpeiros, sejam pobres, ou grandes – os “fidalgos do ouro”. Além do quinto, outros impostos surgiam para esvaziar o ouro daquela região. Isto causou revolta entre a população mineira. E a primeira delas foi a revolta de Vila Rica (hoje Ouro Preto) em 1720. O garimpeiro Filipe dos Santos (1691-1720) se reuniu a outros, e em praça pública denunciou as casas de fundição por levarem parte do ouro extraído ou encontrado. O povo mais humilde da cidade, que era marginalizado pois o trabalho era feito por trabalhadores escravizados, pôs-se ao lado de Filipe dos Santos e depredou a casa do ouvidor local. O governador das Minas Gerais (nome ao qual ficou designada toda a região mineira) Pedro Miguel de Almeida Portugal (1686-1756), o conde de Assumar, seria o próximo. Entretanto, o conde de Assumar decidiu receber os rebeldes e ouvir suas propostas para não ter sua casa depredada. Após a reunião, o conde pareceu acatar as propostas e prometeu envia-las a côrte em Portugal. Os rebeldes se deram por satisfeitos e saíram como vitoriosos nas negociações. Mas a aparente vitória foi estratégica, durou o tempo suficiente para o governador reunir tropas das regiões vizinhas e esmagar os rebeldes. “Qualquer ato, por mais pequeno que seja, contra a ordem vigente é intolerável”, pensavam os governantes.
O líder do movimento, Filipe dos Santos, foi executado, enforcado e esquartejado. Partes do seu corpo foram penduradas em postes em cada lugar onde ele tinha “provocado desordem”. Era o exemplo para todos: não ousem provocar desordem!
Pintura retratando o julgamento de Filipe dos Santos |
Apesar do final violento, o governo local suspendeu as casas de fundição até 1725. A partir desta data o quinto voltou a ser cobrado, além de outros impostos que vigoravam mesmo sem o funcionamento destas casa (por exemplo, imposto para despesas militares, imposto para o casamento da princesa real, imposto para restaurar a casa do ouvidor depredada pelos populares).
A revolta de Vila Rica, mesmo tendo um apoio popular – como o próprio Filipe dos Santos que tinha origem humilde – também tinha por trás os interesses dos fidalgos do ouro, concessionários de minas e donos de trabalhadores escravizados que não queriam deixar parte de sua riqueza adquirida nos cofres reais.
Demorou algumas décadas para que um novo sentimento de revolta aflorasse em Minas Gerais. Este sentimento voltou a rondar as mentes de alguns proprietários locais devido a dois fatores principais: no fim do século (XVIII) a produção de ouro já não era mais tão grande quanto no início, a falta de qualidade para extrair ouro e as minas já estavam numa fase de esgotamento; em segundo lugar, um novo imposto foi implantado, a derrama.
Vamos pensar um pouco. Nas primeiras décadas do século XVIII a produção e extração de ouro das minas encontrou seu auge. Muitos proprietários podiam pagar os impostos reais com mais tranquilidade, pois poderiam repor o que perderam para a Coroa, nas casas de fundição, em pouco tempo. Mas ouro não é igual a terra e em algumas décadas o ouro foi ficando cada vez mais raro. Esta situação foi deixando os fidalgos do ouro preocupados: sem tanto ouro disponível, como pagar tantos impostos e ainda garantir algum lucro. Muitos fidalgos acabaram por se endividar, não só com terceiros, mas com a própria administração colonial que exigia o pagamento dos impostos.
Mas não era só nas minas que a situação era complicada. Portugal era cada vez mais dependente da Inglaterra e precisava comprar produtos para a côrte e para manter seu luxo e a boa vida dos monarcas e príncipes. Para isto eles precisavam mais e mais do ouro do Brasil.
Com esta situação difícil, Portugal usou o imposto da derrama para arrecadar o máximo possível dos brasileiros. Soldados do governo poderiam entrar nas casas e arrecadar tudo que tivesse valor. É como se a metrópole tivesse espremendo um tubo de pasta de dente para não sobrar nada do produto.
Os fidalgos começaram a se reunir secretamente. Um grupo planejava a separação com Portugal. Muitos deles eram instruídos e conheciam os ideais iluministas, além de admirar os recém formados Estados Unidos. Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), por exemplo, era advogado, poeta e minerador; Tomás Antônio Gonzaga (1744-1809) era poeta, português, e ouvidor. O único integrante deste grupo que não tinha grandes posses era Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), um alferes da milícia local, que trabalhava no transporte de mulas (para levarem o ouro) e nas horas vagas arrancava dentes podres de alguns companheiros, o que lhe rendeu o apelido de Tiradentes; não era um senhor de escravizados.
Este grupo se reuniu algumas vezes para traçar planos e debater como coloca-los em prática, eram os “inconfidentes”. O que queriam os inconfidentes? A proposta mais radical que tinham em mente era a separação com Portugal, pois não queriam mais pagar os impostos abusivos. Mas quanto a que tipo de regime o novo país deveria seguir, se monarquia constitucional ou república, eles não tinham qualquer consenso. Uma coisa era certa: a escravidão seria mantida, afinal, a maioria dos inconfidentes eram donos de escravizados, não podiam acabar com sua principal mão de obra, responsável pela sua riqueza. Além disso, os inconfidentes queriam construir uma universidade – diferente das colônias espanholas, na América portuguesa não existiam universidades.
Assim, os mineiros inconfidentes adotaram uma bandeira (branca com um triângulo vermelho ao centro) e um lema: “liberdade ainda que tardia”. Eles decidiram que seu movimento iria irromper assim que o governo decretasse a derrama. Para o azar dele, antes mesmo que os inconfidentes entrassem em ação, seus planos foram descobertos. Um dos inconfidentes, Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819), delatou seus companheiros ao governador, à época o visconde de Barbacena. As delações foram feitas em troca do perdão das dívidas acumuladas que Silvério dos Reis tinha. O governador recorreu ao vice-rei Vasconcelos e Sousa. Inicia-se uma verdadeira caçada aos inconfidentes. Cláudio Manuel da Costa é morto, alguns dizem que suicidou-se. Tiradentes consegue fugir para o Rio de Janeiro escondido e só é encontrado e preso em 10/5/1789.
Segue-se uma onda de repressão, em busca de mais envolvidos com o grupo de inconfidentes. Este processo acaba atrasando o julgamento dos presos. Em 1792 as sentenças são decretadas: “não há justiça para os traidores da rainha Maria I”. Os que tinham posses foram degredados para outras colônias portuguesas e proibidos de retornarem ao Brasil. O único que morreu foi Tiradentes. Enforcado no dia 21 de abril de 1792, sua imagem (desenhada semelhante a de um Jesus Cristo – a simbologia cristã muito influente) permaneceu como a de um mártir que padeceu frente a opressão colonial. Entretanto, se temos hoje um feriado em sua homenagem é uma obra muito mais da república implantada em 1889, do que dos setores que levaram a cabo a independência do Brasil em 1808 e 1822.
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
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Fábio, muito interessante sua postagem, mas seria bom rever a questão da "pobreza" de Tiradentes. João Pinto Furtado, em livro recente, a partir da relação do confisco de bens dos sentenciados, chega à conclusão de que ele não era o "pobretão" de que se falou tanto. Pelo contrário, ele estaria no meio da lista e não na parte de baixo. Havia outros, muito mais pobres do que ele. O livro é O MANTO DE PENÉLOPE - História, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9, publicado pela Companhia das Letras.
ResponderExcluirExiste relatos que ele era filho de latifundiário, e estava nesse grupo para defender os interesses de seu pai. Pobre ele nunca foi.
ExcluirÉ importante destacar que buscavam a separação das Minas em relação a Portugal. Não podemos falar de nação para este momento histórico...
ResponderExcluirObrigado! O GEACB agradece seu comentário !
ExcluirMuito bom texto.as delações premiadas de hoje tem origem nas delações da época de Tiradentes.
ResponderExcluirObrigado! O GEACB agradece seu comentário !
ExcluirParabéns pelo belo texto!
ResponderExcluirObrigado! O GEACB que agradece!
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