As origens históricas das FARC-EP na luta de classes na América

A luta de classes exprime maior visibilidade na América Latina nas formações das guerrilhas, mas não são sempre explícitas, conforme Marx e Engels no “Manifesto do partido comunista”:
A história de todas as sociedades, até hoje, tem sido a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro especializado das corporações e aprendiz, em suma: opressores e oprimidos estiveram em permanente oposição; travaram uma luta sem trégua, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito (MARX; ENGELS apud BARROS, 2011, p. 101). 
Para tanto, propõe-se uma periodização específica para as lutas armadas irregulares protagonizadas pelas populações americanas, entendidas sempre como expressão da luta de classes. O primeiro período iniciou com a ação liderada pelo cacique Caonabo na Manágua em 1500, das guerrilhas indígenas, quando os caciques lideram a resistência diante a colonização europeia. Nestes três séculos, principalmente no Chile, os espanhóis sofreram diversos reveses, que foram olvidados pela história oficial. Na Colômbia houve atos políticos desta monta, que serão salientados a seguir. O segundo período, das guerrilhas criollas, iniciou em 1721, quando a província de Assunção no Paraguai, indepentizou-se efemeramente por razões conservadoras. No caso colombiano chama-se a atenção para o protagonismo de caudillos como Simon Bolívar para o seguimento de uma prática política armada na Colômbia. O terceiro período abordará as guerrilhas revolucionárias propriamente ditas, iniciadas com a Revolução Cubana em 1959, quando houve uma terceira onda de ações políticas armadas em nosso continente, resistindo a uma segunda tentativa de colonização. A Colômbia passou pelos três períodos e, por isso, considera-se as FARC-EP um fenômeno peculiar da história americana, aonde cruzam-se elementos das guerrilhas indígenas, caudilhescas e comunistas, no tempo presente.

Salienta-se que “A rigor, não pode haver investigação histórica sem metodologia, como não há uma teoria de história sem estatuto epistemológico” (VITALE, 1997, p. 17), e portanto, não há ainda uma teoria de história coerente com a história da América, cujo desenvolvimento é “desigual, articulado, combinado, específico e diferenciado” (p. 15). Os novos dados fornecidos por Luis Vitale e sua escola ainda demandam novas análises comparadas com outros autores, para criar uma teoria de história específica para a América latina, o passo inicial foi dado. Pesquisar a história fariana auxiliará neste sentido, ao fornecer novos dados que resultem em novas generalizações epistemológicas.


As guerrilhas indígenas, os caciques lideram a resistência diante a colonização europeia (a partir de 1500)


Os primeiros habitantes da América Latina chegaram da Ásia há pelo menos cem mil anos atrás. No entanto, ainda ensina-se nas escolas a história das Américas a partir da chegada dos europeus. O historiador argentino Luis Vitale produziu diversas pesquisas sobre a história da América anterior a colonização europeia do continente, principalmente em sua porção dita “latina”. A descrição a seguir sintetizará trechos tirados do seu livro “História social comparada de los pueblos de America Latina Volume I Pueblos originários y colonia” (1997).



Vinda de Cristóvão Colombo à América.


Para Luis Vitale (1986), os povos formados por coletores e caçadores na América que futuramente será colonizada pelos espanhois e portugueses transformavam a natureza coletivamente, tinham uma organização social que gerou uma divisão de tarefas até criarem um modo de produção comunal. Este modo de produção existia, embora as sociedades não tivessem ainda exploradores e explorados em termos econômicos, nem propriedade privada e classes sociais. Para este período não são válidas as divisões clássicas de “idade da pedra” ou “idade dos metais”. As mulheres tinham um papel social fundamental nestas sociedades agro-alfareras, cultivavam a terra, faziam as cerâmicas e confeccionavam tecidos, no entanto foi o início das desigualdades entre mulheres e homens, pois para assegurar a reprodução da comunidade, os homens opunham a circulação das mulheres entre os clãs. Dentro de uma perspectiva multilinear[1], a transição do modo de produção comunal para as formações protoclassistas inca e asteca, não ocorreu ao mesmo tempo e em todos os lugares na América Latina. A divisão social acelerou-se, a opressão incaica e asteca favoreceu o sucesso da colonização espanhola futura. Neste período de transição aconteceu no continente a primeira revolução urbana, com o crescimento das cidades e aldeias. Os vínculos de parentesco foram quebrados, acelerando a divisão do trabalho, as disputas interétnicas e as guerras intertribais. As formações sociais inca e asteca originaram as primeiras desigualdades sociais no âmbito econômico e político, através do surgimento do modo de produção comunal-tributário.

A vinda de Cristóvão Colombo representou um marco para a história da América; fontes coloniais atestam esta opinião. Para o frei Bartolomé de Las Casas em “poucas décadas morreram de doze a quinze milhões de pessoas devido aos maus-tratos dos conquistadores” (CASAS apud FERREIRA, 1992, p. 43). O frei relatou sobre a conquista espanhola em terras aonde hoje está a Colômbia:
Esta província de Cartagena está situada mais para baixo e a cinqüenta léguas da de Santa Marta na direção do Ocidente, confinando com a Província de Cenu até o golfo de Vraba, que são sem léguas de costa marítma, havendo ainda uma grande região pela terra adentro na direção do Sul. Essas províncias, desde o ano de 1498 ou 99 até a hora presente, foram maltratadas e devastadas como as de Santa Marta; ali os espanhóis praticaram saques, pilhagens e crueldades enormes que, a fim de acabar mais cedo este breve sumário, não quero particularizar, para ter mais vagar e contar as crueldades que se perpetram em outras províncias (CASAS, 1984, p. 79).
 Na história pré-americana, as sociedades originais como os maias, os astecas, os incas, os olmecas, também formaram-se e desenvolveram-se através de ralações de poder, mas mortes provocadas intencionalmente com as proporções assinaladas por frei Bartolomé de las Casas foi algo inédito, até a chegada do homem europeu na América. A Europa mudou a história da América. A colonização espanhola da América foi a mais sanguinária[2] entre as conhecidas na história da humanidade. Houve hipocrisia europeia e violência dos povos originários como resposta. Porém a tecnologia beligerante era desigual, favorecendo os europeus. O cristianismo foi utilizado como ideologia e a mentalidade dos nativos americanos foi instrumentalizada[3]. Além desta diminuição demográfica, várias culturas foram perdidas. A queda brusca da população para las Casas teve como principais causas o trabalho excessivo e a falta de alimentos. Esta diminuição demográfica, violenta de acordo com o que foi assinalado pelo frei, ocorreu no chamado período colonial, que iniciou em 1492 e foi até 1808. Este mesmo período foi considerado por Pierre Chaunu, principalmente de 1550 a 1808, “uma história estática [...] em que os acontecimentos se processam com majestosa lentidão” (CHAUNU, 1983, p. 11), terminando por, referenciado em Fernand Braudel, adotar a classificação de “história imóvel” para os três séculos de história colonial da América Latina (p. 13). Por trezentos anos nada ocorreu na América de colonização espanhola, portanto, para Pierre Chaunu! A conquista explica-se pela “superioridade dos homens” espanhóis, não numérica ou técnica, mas “obra da Virtù” (p. 24)! Inclusive o desaparecimento da população autóctone foi relativizado, pois as estimativas de população nativa na América colonizada pelos espanhóis são “fatalmente vagas e hipotéticas”, salientando a “contribuição do sangue europeu e do sangue negro trazido pelos traficantes de escravos”, para a manutenção da demografia no continente. Para após nominalmente confrontar o quadro pintado por Bartolomé de las Casas com estimativas populacionais, “as únicas sérias” de Alexandre de Humboldt (p. 41). No entanto, as denúncias de extermínio da população nativa da América não limitam-se a las Casas:
Los conquistadores españoles y portugueses cometieron uno de los genocidios más grandes de la historia universal. Millones de aborígenes fueron exterminados tanto por vía de las armas como de las enfermedades provocadas por los virus de tifus y viruelaintroducidos por los europeos. Otros murieron en loas socavones de las minas y en los lavaderos de oro, a raíz de la brutal explotación a que fueron sometidos. De aproximadamente 40 millones de indígenas que existían en el siglo XV, de acuerdo a estimaciones de algunos autores y 14 millones según otros, sobrevivió sólo una quinta parte en el primer siglo de la conquista.

En algunas regiones, como la actual República Dominicana, la población aborigen fue totalmente exterminada. Según Frank Moya Pons: "En 1508, fecha en que se realizó un censo de indios, solamente quedaban 60.000 de los 400.000 que aproximadamente había cuando Colón pisó la isla por primera vez". En 1520, sólo quedaban 3.000 indios. El pirata Drake, que se apoderó durante varios días de Santo Domingo, informaba a su reina en 1585 que no quedaba ningún indio en esa parte de la isla. Fenómeno similar se dio en la mayoría de las islas del Caribe, especialmente en Cuba y Puerto Rico. A su tiempo, los ingleses, franceses y holandeses cometieron el mismo genocidio en el resto de las Antillas. Hacia el siglo XVII, la población indígena del Caribe estaba extinguida.

En México, el exterminio fue también brutal. En menos de cien años, la población cercana a los 20 millones bajó abruptamente a un poco más del millón. La población del imperio incaico, que bordeaba los 10 millones en el siglo XV, quedó reducida a un poco más de 2 millones en un siglo de "colonización" española; una de las regiones de ese imperio, el actual Ecuador, vio disminuida su población de un millón a doscientos mil. En Chile disminuyeron de un millón a menos de 200.000; Rolando Mellafe ha estimado que en los primeros 80 años de la conquista fue exterminado el 70% de los indígenas del antiguo imperio incaico. Los portugueses también cometieron en Brasil un genocidio igual o peor (VITALE, 1997, p. 141).

Apesar da violência e etnocídio mencionado acima por Luis Vitale, embasado em las Casas e outros autores e ocultado por Pierre Chaunu, por três séculos não houve movimentos separatistas, e todas as rebeliões eram contra os agentes locais da coroa, e foram todas elas derrotadas. Mesmo Tupac Amaru era “católico fervoroso e um vigoroso monarquista” (VALCARCEL apud DOMINGUES, 2008, p. 3). Esta é uma versão da história unilinear, oposta a que esta pesquisa propõe-se, a partir do referencial teórico multilinear, trazido a tona por Luis Vitale.

Salienta-se que houve rebeliões durante o período de “história estática” de Pierre Chaunu, com vitórias e derrotas por parte dos indígenas americanos. A maior parte do capítulo dois do livro “História social comparada de los pueblos de América Latina, volume I, Pueblos originários y colônia”, Luis Vitale (1997) dedicou às resistências indígenas, geralmente sob a forma de guerrilhas. A história da América Latina de 1492 até 1808 foi bastante movimentada, não houve submissão aos colonizadores. Vitale dividiu a resistência indígena em duas fases: 1) nos primeiros anos de conquista militar em defesa da etnia e da terra, e 2) por toda a fase colonial, uma luta étnica contra a exploração econômica. Os povos que não haviam se submetido a tributações foram mais eficazes nos conflitos armados contra os exércitos espanhóis, como os canaris, mapuches, caribes, charruas e as tribos da Amazônia. Os incas, que não eram escravistas nem feudais, e os astecas acostumaram povos a tributação, preparando o caminho para os colonizadores. Isso resultou em união de povos americanos indígenas apoiando os espanhois nos conflitos contra a colonização. Os mapuches, que resistiram aos incas, por três séculos resistiram aos espanhóis, nunca foram plenamente derrotados, assim como os charruas e os pampeanos da Argentina.

Líder guerrilheiro Caonabo capturado pelos espanhóis
Conforme Vitale (1997), a primeira rebelião contra os espanhóis na América aconteceu na Manágua em 1500. O cacique Caonabo liderou uma confederação militar de caciques. Com o seu aprisionamento, criou-se outra confederação mais extensa, que aumentou a reação espanhola até a derrota completa dos indígenas. Os taínos resistiram de outras formas, com fugas, abortos e suicídios individuais e coletivos, reagrupavam-se após as fugas e desencadeavam insurreições.
En la isla La Española, los taínos encabezaron hacia 1500 la primera rebelión contra los españoles en América Latina. Según Roberto Cassá: "El cacique de Managua, Caonabo, dirigió una confederación militar de caciques que hizo resistencia a los propósitos de los españoles. Tras el apresamiento de este cacique, se formó otra confederación todavía más extensa donde aparentemente entraron la mayor parte de los caciques del sector central de la isla y aún de otras regiones. La magnitud de la resistencia de los indígenas obligó a Colón a emprender una larga campaña de varios meses que tuvo por resultado la derrota total de los indios tras una serie de escaramuzas que culminaron en el combate del Santo Cerro" (p. 145).
Os caciques Guarioney e Mayobanez lideraram outras rebeliões, que resultaram em escravização de combatentes e sofrimento no trabalho em minas de ouro. Uma insurreição importante foi a organizada pelo indígena Enriquilo, cacique de Baoruco, depois de quinze anos de luta (1519-1533) unificou diversas tribos, unindo indigenas e negros escravizados. Em Cuba, o indígena Hatuly organizou uma guerrilha junto aos taínos, citado por Bartolomé de lãs Casas, foi morto em uma fogueira. Em 1534, o indígena Guana, em Cuba, lidera outro bando armado de mais de 50 indígenas, que resistiu por mais de dez anos. Na resistência na América Central, na Nicarágua o cacique Urraca liderou uma guerra de guerrilhas contra os exércitos espanhóis, em defesa de suas terras, suas mulheres e seus filhos. Vários nomes de indígenas que lideraram guerrilhas, resistindo aos espanhóis e morrendo por suas causas foram trazidos à História por Luis Vitale, entre eles: Rumiñahui, Lautaro, Caupolican, Pelantaru, Guaicaipuro, Terepaima, Tamanaco (que chegou a reunir em armas 15.000 combatentes contra os espanhóis), Pitijai, Mara e Manaure. Os indígenas resistiam usando a tática de luta armada irregular, unindo-se muitas vezes a rebeliões protagonizadas por trabalhadores negros escravizados, usavam armas artesanais, como ferramentas das minas, facilmente aprenderam a usar armas de fogo e o laço, organizavam reservas estratégicas de alimentos, praticavam espionagem e contra-espionagem, camuflavam as suas casas, usavam os desfiladeiros e vegetações como armas de combate, faziam emboscadas, falsos ataques, retiradas velozes, ataques simultâneos. No século XVII diversas vitórias militares os caciques obtiveram liderando guerrilhas nas Ilhas Antilhanas contra ingleses, franceses e holandeses (VITALE, 1997). A história da América jamais poderá ser chamada de “história estática”, se é verdade que houve um genocídio étnico, também houve a resistência indígena:
Los conquistadores, encabezados por Diego de Almagro y, después, por Pedro de Valdivia, continuaron la exploración hacia el sur en busca de El Dorado. No lo hallaron. En cambio, encontraron la más enconada resistencia aborigen. Los mapuches (mapu=tierra, che=gente), llamados araucanos por los españoles, resistieron durante tres siglos -en una de las guerras de resistencia más largas de la historia universal- inflingiendo a los invasores bajas que fluctuaron entre 25 y 50.000 soldados durante toda la colonia. Según carta de Jorge Eguía y Lumbe al rey en 1664, "hasta entonces habían muerto en la guerra 29.000 españoles".El cronista Rosales afirmaba que entre 1603 y 1674 murieron más de 42.000 españoles y se gastaron 37 millones de pesos en la guerra contra los indios. Un gobernador dijo que "la guerra de Arauco cuesta más que toda la conquista de América". Las pérdidas españolas en regiones incomparablemente más ricas, como México y Perú, fueron relativamente escasas. Felipe II, a fines del siglo XVI, se quejaba porque la más pobre de sus colonias americanas le consumía la "flor de sus guzmanes". En la Península Ibérica, Chile era conocido como "el cementerio de los españoles" (p. 150).
Na Colômbia, o cacique Bogotá (da família lingüística chibcha, que vivia no território do reino Muisca[4]) e seu sobrinho, e suas guerrilhas resistiram durante vários anos aos espanhóis, como o fizeram outros líderes indígenas guerrilheiros, conforme Luis Vitale (1997):
En Colombia, los conquistadores encontraron la resistencia del cacique Bogotá; quien presentó combate durante bastante tiempo, su hijo fue torturado por quienes querían conocer dónde estaba el tesoro de Bogotá. La muerte del torturado no abatió a los indígenas, quienes reorganizaron la resistencia bajo el mando de Sagipa, un sobrino de Bogotá, combatiendo en las montañas, al igual que la Gaitana, los panchea, los pijaos de Ibagüé y los chimilas de Santa Marta (p. 148-149, grifo do autor).


Esta história ainda está para ser contada!


As guerrilhas criollas, os caudilhos lideram o processo de luta pela independência política em relação a Espanha (a partir de 1721)

O caudilhismo esteve presente na América de colonização espanhola durante as guerras de independência e durante a organização das novas nações criadas. Para Dozer (1974), foram os caudilhos[5] que impediram a vigência da anarquia na América após a destituição do poder vice-real. O caudilhismo tornou-se um sistema de governo, como uma herança das chamadas “guerras de libertação”:
O caudilho possui o dom natural de escravizar a vontade de outros homens e de arrastá-los consigo- à rebelião, à batalha ou mesmo por sobre um abismo. Ganha a afeição de grandes massas e converte-as no seu povo. Detém a confiança desse povo; torna-se o símbolo do seu prestígio; encarna a personalidade da nação. Até os seus rivais ele domina pelo poder pessoal e pela força física. O caudilho é o herdeiro do chefe índio que personificava, ao mesmo tempo, uma divindade solar. É o equivalente moderno do soba das selvas africanas, pátria de origem de muitos “latino-americanos”. É também o expoente de um feudalismo militar semelhante ao da Europa medieval ou do antigo Egito. Está em franca oposição aos dogmas modernos do republicanismo, da democracia, da igualdade e da liberdade. Agindo em nome do povo e afirmando servir os interesses deste, justifica a sua ditadura (p. 244).
Para Lambert (1979), os caudilhos foram “chefes revolucionários”, cujos poderes, por terem origem ilegal, os obrigaram a “recorrer a violência para perpetuá-lo” (p. 159). Além da violência, geralmente recorreram a corrupção política e a proteção de uma “polícia onipresente” e de “capangas” (p. 160). O caudilhismo, de um modo geral, caracterizou-se por “hostilidade à aristocracia conservadora” (p. 163) e, “na desmembrada América espanhola do século XIX, ele foi um fator de reunificação” (p. 164). Uma singularidade em relação ao caciquismo foi o fator classista, heterogêneo:
Todas as camadas sociais da América Latina estiveram representados entre os caudilhos: Francia (1811-1840), no Paraguai, era um notável culto, de espírito paternalista; Santa-Anna (1828-1844), no México, era um crioulo rico, sedutor e instável, que sonhava com a glória militar; Santa Cruz (1829-1839), na Bolívia, era oficial de carreira, honesto e vaidoso, que se acreditava descendente dos soberanos incas, por parte de mãe; Portales (1830-1837), no Chile, era rico comerciante, cioso da ordem e da prosperidade; Rafael Carrera (1838-1865), na Guatemala, era um índio místico e analfabeto; Juarez (1857-1872), no México, era um índio, também, porém muito instruído e de espírito liberal; Melgarejo (1864-1871), na Bolívia, era um mestiço analfabeto e alcoólatra; Garcia Moreno (1869-1875), no Equador, foi um professor muito sábio e piedoso; Rufino Barrios (1872-1885), na Guatemala, era um general, mas Fulgêncio Batista (1934-1959), em Cuba, era um suboficial rebelado contra os generais; Guzmán Blanco (1870-1890), na Venezuela, era um cavalheiro culto, mas Cipriano Castro (1889-1908), que o sucedeu, era um boiadeiro analfabeto (p. 161).

Nos livros de história, geralmente Simon Bolívar foi alcunhado como “Libertador”, mas poderia também ser chamado de “caudilho”, pois era um criollo que liderou guerrilhas contra as aristocracias conservadoras, de Ayacucho à Barcelona, ajudou a impedir a anarquia buscando reunificar as províncias recém libertadas. Foi também por vezes tirano, além de usar a violência para continuar no poder. Entretanto, não foram todos os caudilhos criollos, nem todos os caudilhos lutavam através da guerrilha.
Como estrategista, San Martín, oficial experimentado, guiava-se pelos manuais, salvaguardando cuidadosamente as suas linhas de aprovisionamento, utilizando com habilidade a contra-informação e a propaganda para confundir os adversários, e só assumindo riscos depois de bem pesar os prós e os contras. Bolívar, embora não tivesse recebido adestramento militar, possuía um instinto inato para os assuntos da guerra, mas permanecia essencialmente um capitão de guerrilhas, genial na improvisação, de grande descortino nas emergências, brilhante na concepção e na execução. Não chegou a desenvolver a técnica das operações combinadas por mar e por terra, com San Martín, conquanto seja indubitável que as poderia ter utilizado com vantagem contra as forças espanholas na costa das Caraíbas e, mais tarde, no ataque a Quito. San Martín era um chefe militar, não um líder revolucionário, Bolívar era ambas as coisas (DOZER, 1974, p. 220).
Os criollos estavam, durante o período colonial excluídos dos cargos de vice-reis, capitãos-mores, governadores, presidentes, altos cargos na igreja e na audiência, tesoureiros reais, chefes do exército. Os altos cargos da igreja e do estado eram, via de regra, confiados aos europeus. Sofriam a arrogância dos espanhóis em sua própria terra. Contra os criollos havia uma barreira política e também social e econômica, pois as casas comerciais espanholas consideravam os europeus “mais inteligentes, ambiciosos e trabalhadores” (p. 179). Durante o período colonial, os crioulos não faziam parte da elite.
Um sintoma da reação dos crioulos às inúmeras leis restritivas e punitivas da mãe-pátria era a indiferença com que encaravam a prisão. Esta não envolvia nenhum estigma a eles. Quando preso, o crioulo raramente dava sinais de emoção. Matava o tempo escrevendo cartas, preparando apelos e recebendo visitas da manhã à noite; quando solto, aceitava o fato com equanimidade, retribuía as visitas que lhe tinham sido feitas na cadeia e reassumia sem vexame a sua posição costumeira na sociedade (p. 180-181).

Em Buenos Aires, os criollos responsabilizavam-se pela resistência às invasões inglesas, conquistando importância e poder. A partir de 1721 começaram as independências, como resultado de um processo que iniciou a partir de 1492. Vimos anteriormente que as resistências indígenas resultaram em perda de soldados e excessivos gastos para as metrópoles. Enquanto a França de José Bonaparte praticava uma política de incentivo aos movimentos americanos de independência, entre 1810 e 1812, os Estados Unidos da América não envolviam-se na América de colonização espanhola. Na Venezuela, o “conquistador e agitador revolucionário Francisco de Miranda” (BUSHNELL in BETHELL, 2004, p. 12) foi vencido pela população venezuelana organizada por tentar uma independência total em relação a Espanha. Retornou a Inglaterra em 1810 e um ano após o congresso proclamou formalmente a independência venezuelana.

Francisco de Miranda


Domingues (2008) afirmou que somente a partir de 1809, quando Napoleão invadiu a Espanha, formaram-se Juntas pelas independências, chamadas Juntas Gubernativas. A monarquia espanhola estava perdendo a sua autonomia. Esta situação acelerou a separação das colônias continentais da Espanha. Os americanos estavam entre jurar obediência a José Bonaparte, a Carlota, as autoridades provisórias espanholas de resistência nacional aos franceses ou Fernando. Após a morte de sua esposa, Bolívar inseriu-se em uma Junta Gubernativa. Com a desocupação da França napoleônica da Espanha, foram introduzidas ideias liberais nas cortes espanholas. De vice-reino a América de colonização espanhola foi reduzida a colônia novamente, fomentando movimentos por independência. O rei Fernando VII voltou ao trono e com ele o absolutismo monárquico sobre suas colônias americanas. Eclodiram guerras civis, de 1810 a 1825.

A Junta Gubernativa de Caracas na Venezuela foi a primeira a manifestar-se a favor da independência total em relação a Espanha, e para isso buscou apoio da Inglaterra e Estados Unidos da América, tomando medidas, como abertura dos portos e proibição do comércio de trabalhadores escravizados. Mas foi na província de Assunção, no Paraguai, que aconteceu a primeira declaração de independência na América de colonização espanhola. Foi um levante ocorrido entre 1721 e 1725, contra a coroa espanhola e os jesuítas, pelo uso de mão-de-obra indígena como lavradores escravizados nas plantações dos crioulos (DOZER, 1974, p. 188). O levante de 1721 foi o precursor de outros movimentos insurrecionais menores, mas que mantiveram “aceso entre os americanos um espírito de rebelião que iria irromper em cheio nas primeiras décadas do século XIX” (p. 190), como os ocorridos no Alto Peru (Bolívia) em 1730, no Peru em 1780, na Nova Granada em 1779.

A “Primeira República” da Venezuela teve uma constituição liberal seguindo o modelo estadunidense e por isso, considerada por Simón Bolívar inadequada para o novo país que surgia. Bolívar e Miranda concordavam ao preferir um Estado mais centralizado. Mas a Venezuela era mais homogênea do que Nova Granada, aonde Bolívar estava em 1812: “Tanto as dificuldades de comunicação quanto os contrastes sociais e culturais entre as regiões foram mais acentuados do que na Venezuela” (BUSHNELL in BETHELL, 2004, p. 138). Nas regiões montanhosas, próximas a Bogotá, por exemplo, indígenas resistiam às invasões de criollos e mestiços a seus minifúndios. Panamá era isolada e Cartagena era dominada por uma pequena elite branca que submetia a expressiva população negra. Nova Granada possuía diversas rivalidades entre as suas províncias, unindo-se tardiamente em 1811 quando criaram as Províncias Unidas de Nova Granada. Bogotá era governada pelo “precursor” Antonio Nariño, que não aceitava a união de Bogotá com as Província Unidas, por considerá-las desunidas e desorganizadas, ele possuía poderes semiditatoriais e estimulou um antagonismo que resultou em conflito armado entre as Províncias Unidas e o seu “Estado de Cundinamarca", a forma como o governo de Bogotá se denominava. Por outro lado, as regiões de Panamá e de Pasto preferiram manter-se ligadas a coroa espanhola (BUSHNELL in BETHELL, 2004). Entretanto, para a população venezuelana, a nova república ruiu por razões que nada teriam a ver com a história ou a realidade, propriamente dita:
[...] o novo governo não tardou a ser desorganizado por um devastador terremoto sobrevindo na quinta-feira santa de 1812, o qual destruiu quase completamente a cidade de Caracas, matando perto de 10.000 pessoas naquela capital e 20.000 no país inteiro. A catástrofe foi logo interpretada como um sinal de condenação divina à inconfidência. Os sobreviventes, alienando-se do movimento revolucionário e tomados de pânico, apressaram-se a apaziguar a cólera celeste, organizando procissões fúnebres, entoando hinos religiosos e confessando seus pecados publicamente nas ruas. Casais que viviam há longos anos em concubinato legitimaram a sua união e pais que haviam enjeitado os filhos voltaram a reclamá-los (DOZER, 1974, p. 203).
No documento “Memória dirigida aos cidadãos da Nova Granada por um caraquenho”, Simon Bolívar, após assumir-se “sempre fiel ao sistema liberal” (BOLIVAR, 1983, p. 108) analisou a importância do terremoto para a ruína da Primeira República da Venezuela:
O terremoto de 26 de março transtornou, certamente, tanto o físico como o moral, e pode-se atribuir a ele a causa imediata da ruína da Venezuela, mas este mesmo acontecimento teria ocorrido, sem produzir tantos efeitos mortais, se Caracas fosse governada então por uma só autoridade que, atuando com rapidez e vigor, tivesse sanado os prejuízos sem entraves nem delongas; ao retardar as providências permitiu-se que o mal crescesse a ponto de se tornar incurável (p. 112).
Neste contexto, por “influência eclesiástica” (p. 112), as tropas espanholas avançaram, Miranda foi traído por Bolívar e seu grupo, que o entregou aos espanhóis. Em 1813 Bolívar, com seus bens confiscados pelo regime colonial, proclamou a sua “guerra de morte”, impondo através de uma ditadura militar e polarizando os americanos e os espanhóis, Na condição de um comandante de fato de um exército indisciplinado formado por “bandos heterogêneos de crioulos, voluntários de estrangeiros, mestizos, mulatos e negros libertos que compunham os exércitos patrióticos” (DOZER, 1974, p. 203, grifado do autor), liderou a constituição da “Segunda República” da Venezuela, contando com o apoio das Províncias Unidas de Nova Granada. Mas esta república foi derrotada pelas guerrilhas legalistas chefiadas pelo pequeno comerciante José Tomás Boves, que liderava pardos contra os brancos, prometendo dar-lhes as terras dos criollos revolucionários. Como, durante o período das guerrilhas indígenas, povos nativos combatiam a favor dos colonizadores, em razão das desigualdades sociais previamente existentes, pois a América antes da invasão espanhola não era um paraíso. Os “exércitos” chamados “patrióticos” por Dozer (1974) eram os que lutavam pela independência perante a Espanha, porém, por serem forças irregulares, que atuavam via tática de guerrilha, não convém chamá-los de “exércitos”. O mesmo autor chamou a atenção para a sua indisciplina, que provavelmente seja o resultado de uma antiga tradição de luta armada sob o formato de guerrilhas, como as ocorridas durante o período das resistências indígenas.

Antes da morte de Boves, a “Segunda República” da Venezuela teve o seu fim. Em 1817, Bolívar incorporou a emancipação dos trabalhadores negros da escravidão no seu discurso político e incluiu soldados pardos nas promoções em seu exército. No entanto, em 1819, em seu Discurso de Angostura, Bolívar caracterizou o povo americano como ignorante, tirano e vicioso, mas este povo tinha a experiência necessária para vencer militarmente os espanhois:
[...] na concepção de Bolívar, o governo adequado para uma região como a Venezuela deveria ser aquele que, embora republicano nos aspectos externos, barrasse os instintos desordeiros do povo simples por meio de um sufrágio limitado, de um executivo forte e um senado hereditário, acrescidos de um “poder moral” formado por cidadãos proeminentes com a função especial de promover a educação e os bons costumes. Tratava-se de uma afirmação extremamente conservadora, que resumia características permanentes do pensamento político de Bolívar. Não obstante, o mesmo discurso continha um novo apelo à abolição da escravidão e a efetiva implantação das bonificações aos soldados, sugerindo que o conservadorismo de Bolívar era do tipo flexível e relativamente ilustrado (BUSHNELL in BETHELL, 2004, p. 167).

O auge do triunfo de Bolívar aconteceu enquanto San Martin e seus exércitos invadiam o Chile e o Perú, quando o congresso venezuelano concedeu-lhe poderes militares ditatoriais e obteve apoio dos cavaleiros rudes das planícies, outrora fiéis ao falecido Boves. Além deste apoio, recebeu reforço militar de “veteranos ingleses e irlandeses das guerras napoleônicas” (DOZER, 1974, p. 215). As forças espanholas foram derrotadas, considerada por Bolívar o seu triunfo mais decisivo.

A Grã-Colômbia substituiu as Províncias Unidas da Nova Granada, e Bolívar foi eleito seu presidente em 1821. Na Constituição de 1821 previa-se uma lei que daria origem a Guerra dos Supremos (1839-1842) e que previa a expropriação dos bens da igreja católica para beneficiar o ensino público. O vice-presidente era Francisco de Paulo Santander. Ambos defendiam formas de governo diferentes, conforme DOZER (1974):
Bolívar e Santander encarnaram na Nova Granada os dois princípios em conflito- o centralismo e o federalismo, respectivamente. Bolívar tinha predileção pelo sistema político britânico, com a sua instituição estabilizadora da Monarquia, e nutria esperanças não só de imitar esse sistema como também de concluir uma aliança com a Inglaterra. Santander, por outro lado, esposava os princípios de governo republicano exemplificados pelos Estados Unidos (p. 250).
Na Colômbia, a partir do pensamento de Bolívar formou-se o Partido Conservador e do pensamento do general Santander o Partido Liberal. Ambos eram liberais. Em consequência da Guerra dos Supremos, definiram-se ideologicamente ambos partidos, que tornaram-se hegemônicos no país, e iniciaram as lutas partidárias por meio da ação política armada.

Depois da Batalha de Boyacá formou-se a Grã- Colômbia, inicialmente dividida em três departamentos: Quito, Venezuela e Cundinamarca. Em 1821 Panamá integrou-se a Grã- Colômbia, para tornar-se independente em 1903. Em 1830, a Grã- Colômbia desmembrou-se em Nova Granada, Equador e Venezuela. A Colômbia propriamente existiu a partir de 1863, quando este nome foi dado a Nova Granada. Para Maria Ligia Prado (1994), “A independência na Colômbia se fez sob a direção de setores comerciantes criollos que visavam a liberdade de comércio com todas as nações, mas particularmente com a Inglaterra” (p. 32).

Através da luta guerrilheira foi feita a guerra pela emancipação de Cuba da Espanha, mas o apoio estadunidense lançou a ideia de que a ilha de Cuba e todo o Caribe era um prolongamento ou um quintal dos Estados Unidos, pois a sua independência teria sido uma dádiva do império liberal e democrático:
As ilhas de Cuba e Porto Rico eram os últimos vestígios do Império espanhol no Caribe. Findava o século e a rica e estratégica ilha de Cuba ainda não havia conseguido obter a sua independência. Mas em 1895, graças ao esforço de um dos mais notáveis libertadores latino-americanos, Jose Martí, iniciara-se a batalha final. Martí, a verdadeira alma do movimento por uma república cubana, era um hábil jornalista, incansável orador e organizador do Partido Revolucionário Cubano, que foi a arma política da emancipação. Apesar de Martí ter sido morto bem no início do levante anti-espanhol, a rebelião teve prosseguimento por meio de luta guerrilheira. A chefia militar foi então dividida entre os líderes Gómez e Maceo, em cujas fileiras lutavam negros e brancos que eram armados por expedições piratas saídas dos Estados Unidos e que a marinha espanhola não conseguia interceptar. Nesta guerra tornaram-se célebres os métodos repressivos aplicados pelo general Valeriano Wyler que não exitou em criar campos de concentração para isolar a guerrilha de seu apoio social (SCHILLING, 1984, p. 20).
A dominação estadunidense em Cuba e no Caribe deu início a uma nova fase da história das guerrilhas na América latina, a fase das guerrilhas revolucionárias.


As guerrilhas revolucionárias, resistindo a uma segunda tentativa de colonização (a partir de 1959)

A Revolução Cubana representou o maior desafio enfrentado na história das relações desiguais entre os Estados Unidos e os demais países da América. A guerrilha empreendida, diferenciava-se das guerrilhas atuantes na América antes de 1959, pois buscava transformar radicalmente a sociedade, não apenas emancipar politicamente o país, mantendo as relações sociais até então vigentes. Conforme Voltaire Schiling:
Em 1959, um grupo de guerrilheiros liderados por Fidel Castro chegou ao poder em Cuba depois de impor uma desmoralizante derrota ao regime filonorte-americano do ditador Fulgêncio Batista. Rapidamente, as relações entre o novo regime e o governo de Washington começaram a se deteriorar. O movimento desencadeado por Castro não se contentava apenas em reformar a estrutura política do país mas pretendia realizar uma profunda transformação social, que implicava afetar os interesses norte-americanos na ilha. [...] O Departamento de Estado e a CIA não perceberam que agora não se tratava de um regime populista mas sim de uma revolução social que estava em andamento e a intervenção norte-americana serviria muito mais como oxigênio do que um gás paralisante (SCHILLING, 1984, p. 47).
A data de 18 de abril de 1961 foi histórica, um novo marco para a América Latina, iniciando um novo ciclo de guerrilhas. Ao mesmo tempo que motivou o surgimento de outras guerrilhas, como por exemplo, as FARC-EP, também iniciou um ciclo de ditaduras civil-militares na América Latina, com um aumento quantitativo e qualitativo da interferência estadunidense no subcontinente latino. Os Estados Unidos criaram um “Grupo de trabalho para a América Latina” em 1961, depois do presidente Kennedy lançar as bases da Aliança para o Progresso, “como um ‘bactericida ideológico’ destinado a extirpar o germe revolucionário do continente” (p. 50). Após foi criada a Escola das Américas que formou 33.147 militares para a luta anti-guerrilheira, em uma doutrina contra-insurgente. Depois da Revolução Cubana, os Estados Unidos apoiaram golpes militares no Brasil, na Bolívia, no Uruguai, no Chile, na Argentina, na Nicarágua, em El Salvador, operou operações em Honduras e Costa Rica, invadiu a ilha de Granada. A história é longa, mas e a Colômbia? Lendo “EUA x América Latina. As etapas da dominação” de Voltaire Schiling, dá-se a impressão que a intervenção dos Estados Unidos na Colômbia resumiu-se a conquista do Panamá.

Se na Colômbia não houve golpes militares apoiados pelos Estados Unidos, e, portanto, existiria uma democracia, aonde estará a gênese histórica das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia? Explicar a origem das FARC-EP nos grupos de autodefesa que antecederam os movimentos revolucionários, entre eles as FARC-EP, será ainda manter o olhar no âmbito da superficialidade. Os grupos guerrilheiros de autodefesa diferenciam-se dos grupos armados revolucionários, por desarmarem-se quando os inimigos cessavam suas hostilidades e ameaças. Neste sentido, estes assemelham-se bastante com os caudilhos e seus bandos armados. Mas e as resistências indígenas, a partir de 1500, também com formações irregulares e organizadas às margens do poder instituído, possuem alguma relação com as FARC-EP?

A história das FARC-EP, geralmente é explicada a partir das guerras no campo na década de 1920 na Colômbia, sem ligação com a trajetória de lutas na América Latina, desde a invasão espanhola, como no artigo de Diana Chavarría Balvín: “Línea teórica de La insurgência colombiana: FARC-EP” (2010):
Entre las tradicionales luchas agrarias que se remontan a los años 20 y 30 por núcleos campesinos y que centró su actividad en las regiones Del Tequendama y el Sumapaz, La violencia política de los años 50 de carácter institucional y parainstitucional, el surgimiento de las guerrillas liberales, El Partido Comunista Colombiano (PCC) con su llamada “lucha antifascista” para la “defensa de la vida y las libertades ciudadanas (…), para que las masas obreras y campesinas estén en capacidad de dar una respuesta efectiva y contundente a los agresores reaccionarios”1, y las políticas de pacificación instauradas tanto en la dictadura militar de Gustavo Rojas Pinilla como en el Frente Nacional, encontramos los orígenes más próximos de la guerrilla de lãs FARC-EP (p. 23). 

No século XIX, a Colômbia teve uma longa trajetória de guerras civis, tendo como protagonistas o Partido Liberal e o Partido Conservador que geralmente armavam os seus correligionários em guerrilhas. Concomitantemente a estes conflitos havia a violência praticada por bandoleiros, com considerável apoio social. Um período de dez anos, a partir de 1946, ficou conhecido como La Violencia, com ações de terror entre colombianos, motivados por sectarismo político, arrasando grande parte do território do país:

El asesinato sistemático, la tortura, la violencia sexual, la mutilación, la manipulación brutal de los cadáveres, el boleteo, la intimidación mediante el incendio, la matanza de ganado, lo destrucción de sementeras, el despojo de propiedades, el abandono y la venta precipitada de fincas y parcelas, con la consiguiente acumulación de propiedades y riquezas en manos de quienes pudieron instrumentalizar la criminalidad colocándola al servicio de su propio beneficio, fueron entre otras algunas de los expresiones de violencia durante este período (GALLEGO, 2010, p. 122).

Eduardo Galeano em “As veias abertas da América Latina” (1980) descreveu de maneira semelhante este período de violência entre os partidos tradicionais da Colômbia, no entanto realçando os aspectos de classes:
A violência começou como um enfrentamento entre liberais e conservadores, mas a dinâmica do ódio de classes foi acentuando cada vez mais seu caráter de luta social. Jorge Eliécer Gaitán, o caudilho liberal a quem a oligarquia de seu próprio partido, entre despicativa e temerosa, chamava de “El Lobo” ou “El Badulaque”, tinha ganho um formidável prestígio popular e ameaçava a ordem estabelecida; quando o assassinaram a tiros, desencadeou-se o furacão. Primeiro foi a maré humana incontida nas ruas da capital, o espontâneo bogotazo, e em seguida a violência derivou para o campo, onde, há tempos, os bandos organizados pelos conservadores já vinham semeando o terror. O ódio longamente mastigado pelos camponeses explodiu e, enquanto o governo enviava policiais e soldados para cortar testículos, abrir ventres de mulheres grávidas ou jogar crianças ao ar para espetá-las na ponta da baioneta, sob a palavra de ordem de “não deixar nem semente”, os doutores do Partido Liberal recolhiam-se em suas casas sem alterar seus bons modos nem o tom cavalheiresco de seus manifestos ou, no pior dos casos, viajavam para o exílio. Foram os camponeses que forneceram os mortos. A guerra alcançou extremos de incrível crueldade, impulsionada por um desejo de vingança que crescia com a própria guerra. Surgiram novos estilos da morte: no “corte gravata”, a língua ficava pendendo por um buraco no pescoço. Sucediam-se as violações, os incêndios, os saques; os homens eram esquartejados ou queimados vivos, escalpelados ou cortados lentamente em pedaços; os rios ficavam tingidos de vermelho; os bandoleiros outorgavam a permissão de viver, em troca de tributos em dinheiro ou carregamentos de café, e as forças repressivas expulsavam e perseguiam inúmeras famílias que corriam para as montanhas em busca de refúgio; nas matas pariam as mulheres. Os primeiros chefes guerrilheiros, animados pela necessidade de revanche, mas sem horizontes políticos claros, lançavam-se à destruição pela destruição, o desafogo a sangue e fogo sem outros objetivos. (p. 115)

O período de La Violência esteve no contexto histórico de surgimento das insurgências armadas, entre elas, as FARC-EP, conforme Carlos Medina Gallego (2010):

El asesinato sistemático, la tortura, la violencia sexual, la mutilación, la manipulación brutal de los cadáveres, el boleteo, la intimidación mediante el incendio, la matanza de ganado, lo destrucción de sementeras, el despojo de propiedades, el abandono y la venta precipitada de fincas y parcelas, con la consiguiente acumulación de propiedades y riquezas en manos de quienes pudieron instrumentalizar la criminalidad colocándola al servicio de su propio beneficio, fueron entre otras algunas de los expresiones de violencia durante este período. (p. 122)

Na década de 1960 iniciou-se uma nova onda de violência política, com organizações guerrilheiras que pretendiam transformar radicalmente o estado colombiano, os principais grupos que surgiram foram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia- Exército do Povo (FARC-EP), o Exército de Libertação Nacional (ELN) e o Exército Popular de Libertação (EPL). Posteriormente, em 1973, membros das FARC-EP e da ANAPO (Alianza Nacional Popular) fundaram o Movimento 19 de abril (M-19) e, na década de 1980, surgiu o Movimento Armado Quintin Lame. O primeiro tratava-se de um combate armado nas cidades, ao modo tupamaro do Uruguay e defendendo o nacionalismo, com forte apoio de setores da classe média urbana. O segundo era um grupo guerrilheiro formado por indígenas. Após a queda do muro de Berlim, apenas as FARC EP e ELN não desarmaram-se (PÉCAUT, 2010).

Mapa físico-político da Colômbia(1979): O determinismo geográfico ajuda a compreender a guerrilha?


As condições topográficas favoráveis, isolamento dos centros de poder, identificação política com parte significativa da população e tolerância de setores do latifúndio também tornaram possível o surgimento e estão possibilitando a manutenção das FARC-EP (GALLEGO, 2006). Resiste na Colômbia um terreno razoavelmente extenso acidentado, de difícil penetração, por suas montanhas, florestas e pântanos, que possibilitou a criação e a manutenção de organizações guerrilheiras de base rural, como as FARC-EP (CLAUSEVITZ, s. d., p. 569).

A guerrilha é um meio de produção, que visa socializar materialmente a revolução realizada internamente na Colômbia pelas FARC-EP. Na organização interna fariana há o primado do coletivo em relação ao indivíduo. Se as FARC-EP não são plenamente marxistas-leninistas, nem bolivaristas, são plenamente farianas em sua ideologia. A sua própria ação elevou a sua capacidade, os diálogos com o governo colombiano resultam de sua força política inquestionável.

A guerrilha fariana tem, historicamente, os três elementos, acima mencionados: racial/étnico, caudilhista, revolucionário, inserindo-se em uma ancestral tradição de luta política em armas pela população subalternizada. As FARC-EP também são expressão do estágio atual das lutas de classes na Colômbia, promovendo um enfrentamento a civilização capitalista colombiana.

Notas:

[1] Sobre a perspectiva multilinear ou categoria de desenvolvimento desigual, articulado, combinado, específico/diferenciado, e multilinear, ver VITALE, 1997, p. 17-18.

[2] Poder-se-á considerar este adjetivo um juízo de valor, uma doxa acientífica, caso não fosse uma parte do subtítulo do livro “Brevíssima relação da destruição das índias de frei Bartolomé da las Casas, da série “A visão dos vencidos”, lançado pela coleção “L&PM/História”: “A sangrenta história da conquista da América espanhola”, daonde extrai-se o significativo trecho:”Os espanhois, com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades estranhas: entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Faziam apostas sobre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem, mais habilmente e mais destramente, de um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de um só golpe. Arrancavam os filhos dos seios da mãe e lhes esfregavam a cabeça contra os rochedos enquanto que outros lançavam à água dos córregos rindo e caçoando, e quando estavam na água gritavam: move-te, corpo de tal?! Outros, mais furiosos, passavam mães e filhos a fio de espada. Faziam certas forcas longas e baixas, de modo que os pés tocavam quase a terra, um em cada treze, em honra e reverência de Nosso Senhor e de seus doze Apóstolos (como diziam) e deitando-lhes fogo, queimavam vivos todos os que ali estavam presos. Outros, a quem quiseram deixar vivos, cortavam-lhes as duas mãos e assim deixavam; diziam: Ide com essas cartas levar as notícias aos que fugiram para as montanhas. Dessa maneira procediam comumente com os nobres e os senhores; faziam certos gradis sobre garfos com um pequeno fogo por baio a fim de que, lentamente, dando gritos e em tormentos infinitos, rendessem o espírito ao Criador. [...] Eu vi as cousas acima referidas e em número infinito de outras; e pois que os que podiam fugir ocultavam-se nas montanhas a fim de escapar a esses homens desumanos, despojados de qualquer piedade, ensinavam cães a fazer em pedaços um índio à primeira vista. Esses cães faziam grandes matanças e como por vezes os índios matavam algum, os espanhóis fizeram uma lei entre eles, segundo a qual um espanhol morto faziam morrer cem índios.” (CASAS, 1984, p. 32-33, grifos do autor). Pode-se, portanto, afirmar que, desta forma violenta setores da sociedade cristã-mercantil espanhola colonizaram a América Latina.

[3] Conforme PRODANOV (1991), “Os indígenas possuíam uma imagem deformada dos espanhóis nos primeiros contatos, relacionando-os com deuses. [...] a partir daí conseguiram se lançar à conquista dos reinos de Montezuma (asteca) e Atahualpa (inca)” (p. 37). Os espanhóis deram a impressão aos indígenas de comerem ouro, tamanha a sua ambição por esta riqueza mercantil. Ao receber um comandante espanhol, um nobre inca perguntou se era verdade que os espanhóis alimentavam-se de ouro, esta foi a resposta: “Sim, este ouro comemos” (p. 47). Os espanhóis, para efetivarem a conquista fingiram serem deuses e alimentarem-se de ouro. 

[4] Sobre as sociedades muiscas, ver M, 2008.


[5] Dozer (1974) indicou que o caudilho apareceu, pela primeira vez “com a rebelião de Roldán em 1498” (p. 244), e depois com o espadachim Lope de Aguirre em 1561. O caciquismo não deve ser confundido com o caudilhismo, pois o caciquismo é homogêneo quanto a classe, a raça/etnia e a razão pela qual há a liderança de determinada rebelião. O caciquismo foi sempre conservador e, por isso, em um contexto de resistência a colonização europeia, progressista. Caciquismo foi “como chamavam os espanhois ao domínio dos chefes nativos que encontraram à frente das tribos indígenas ao abordarem pela primeira vez nas praias da América, permanecera adormecido desde os tempos de Montezuma e Ataualpa, salvo raras ocasiões em que surgira um líder ou caudilho empreendedor esposando a causa das vítimas de alguma injustiça local ou dirigindo algum movimento de rebelião” (p. 244). Para Jacques Lambert o caciquismo deu origem ao caudilhismo.


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Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael Freitas. Graduado em História na FAPA, Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Tem interesse de pesquisa em História Social da América e Tendências Pedagógicas Contra-hegemônicas. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no jornal "A Folha" de Alvorada, RS.

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