MOVIMENTO DA LEGALIDADE: uma rebelião contra o golpe

No dia 25 de agosto de 1961 tinha início um dos momentos mais tensos da história do Brasil. A renúncia do presidente Jânio Quadros e o veto golpista contra a posse do vice, João Goulart, instalou um clima de guerra civil no país. Seu desdobramento mais imediato é o Movimento da Legalidade; que conseguiu unir o aspecto político e a sociedade organizada em seus mais diversos setores – contra o golpe que estava em curso. Alguns livros didáticos, ainda hoje, não dão a devida importância ao movimento. Muitos deles chegam a esconder o papel da população e do governador Leonel Brizola, apontando a Legalidade somente a partir do engajamento do III Exército no movimento. Mas para entendermos este momento da história do Rio Grande do Sul e do Brasil, devemos entender o contexto político do país no início dos anos 1960.

Na década de 1960, não só o Brasil, mas o mundo vivia mergulhado em uma bipolaridade que influenciava, de alguma forma, as políticas nacionais. Era a famosa “Guerra Fria” que colocava de um lado os EUA e do outro a URSS. Naturalmente, o Brasil deveria se alinhar com seu vizinho do norte (EUA), mas o governo do Presidente Jânio Quadros, eleito em 1960, tentava fazer uma política “independente”, não-alinhada. O problema era que Jânio tinha forte apoio nos setores mais conservadores da política nacional, notadamente a famigerada UDN de Carlos Lacerda. Este “não alinhamento” esboçado por Jânio Quadros desagradou muitos de seus apoiadores. No plano político nacional, Quadros ajudou a elevar os lucros dos empresários vinculados a produção de trigo, assinando uma Instrução da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito) que regulava o valor do produto. Também causou uma certa polêmica na época, ao proibir o uso do biquíni nas praias parte de sua hipócrita política de “moralização”. As contradições do governo eram cada vez mais visíveis. No plano interno, Jânio Quadros se voltava para uma política conservadora, enquanto externamente buscava espaço nos “não-alinhados”. Em menos de sete meses de mandato o presidente renuncia.

Os motivos até hoje são bastante obscuros. Para muitos, Quadros renunciou na tentativa de golpe em si mesmo”: ele iria barganhar com os conservadores e golpistas poderes maiores como presidente. Mais ou menos assim: “ou me dão a amplos poderes presidenciais, ou o meu vice (João Goulart, o Jango) vai assumir”.

Leonel Brizola, governador do RS, com Ernesto “Che” Guevara, em Punta de Este, 1961. O encontro das duas personalidades mais representativas da esquerda latino-americana aconteceu durante o lançamento da “Aliança para o Progresso”. Brizola, foi representando a delegação brasileira, a pedido do próprio presidente Jânio Quadros.

Jango, por outro lado, era alvo dos conservadores por ser intimamente ligado a Getúlio Vargas e sua política anti-imperialista. Durante o segundo governo de Vargas, de 1951 a 1954, Jango, enquanto Ministro do Trabalho, propôs o aumento de 100% do salário mínimo; assustando os capitalistas conservadores do Brasil – e os mandatários do capital estrangeiro, que na prática é quem ditavam as regras da política financeira no nosso país. O próprio partido de Jango e Getúlio, o velho PTB (que nada tem a ver com o PTB atual, a não ser o nome) foi o primeiro partido brasileiro a tomar uma postura anti-imperialista. Mas para muitos políticos reacionários e conservadores, o trabalhismo de Jango era o mesmo que “comunismo” - e o comunismo da URSS era inimigo do capitalismo dos EUA.

Jânio Quadros e João Goulart eram de partidos diferentes e chapas opostas. Pela Constituição da época, se votava diretamente no presidente e no vice. Sendo assim, João Goulart deveria assumir, na ausência ou renúncia, do presidente. Mas no momento em que Quadros renunciou, Jango encontrava-se em viagem oficial para a China – mandado pelo próprio Jânio Quadros. Este momento é utilizado pelos ministros militares (Odílio Denys do Exército, Sílvio Heck da Marinha e Grün Moss da Aeronáutica) que se dizem contra a posse do vice (eleito democraticamente) e dão posse a Ranieri Mazzili, um conservador, presidente da Câmara dos Deputados (o presidente do Senado era o próprio vice-presidente). Mas pela Constituição de 1946, não havia qualquer dispositivo que dava direitos aos ministros militares de vetar um presidente e dar posse a outro...

Estava instalada a crise. Muitos deputados e senadores se prontificaram a declarar legítima a posse de Goulart, mas o clima de golpe já pairava por todo o país. A população, logo que toma conhecimento dos fatos começa a se mobilizar.

No Rio Grande do Sul, o Governador Leonel Brizola, logo se prontificou a entrar em contato com os mais diversos setores do governo federal e deu garantias de governabilidade para Jânio em Porto Alegre. Já era tarde. As notícias de que um golpe organizava-se nos bastidores da política nacional já corriam por todo o Estado. Consequentemente, Brizola pôs-se a defender a Constituição. O vice-presidente deveria retornar ao Brasil e assumir o cargo que lhe era de direito.

Nas ruas de Porto Alegre as pessoas já se avolumavam, todas em direção ao Piratini (sede do governo gaúcho), na expectativa de ter qualquer notícia. Assim, desde seu início, a Legalidade não foi apenas um movimento político, mas foi um movimento popular – talvez um dos mais significativos do século XX, depois da Revolução de 1930. As imagens que se tem da Praça da Matriz naqueles dias de tensão, que vão da renúncia de Jânio Quadros até a posse de Jango em Brasília, mostram claramente a feição popular da Legalidade.

O governador Brizola requisita as rádios locais e assim surge a Cadeia da Legalidade, difundindo a todo Estado, e ao país, as noticias e os acontecimentos nos momentos de maior tensão. Até mesmo na Argentina e no Uruguai foi capitado o sinal da Cadeia da Legalidade! A cada discurso acalorado do governador, pela rádio, mais e mais adeptos se juntam ao movimento. O RS se torna um exemplo de defesa da democracia nacional contra a crise que anuncia um golpe. É importante destacar o papel do rádio em momentos decisivos da política latino-americana. A exemplo da Legalidade, o rádio também foi amplamente usada durante as reformas do governo Jacob Arbenz na Guatemala; na luta dos guerrilheiros cubanos contra o governo de Fulgêncio Batista e hoje em dia a Rádio Zapatista é referência de mobilização e informação.

O Movimento da Legalidade pode ser entendido não apenas pela defesa democrática, mas também pela defesa do Brasil. Em seu emocionante discurso do dia 28 de agosto, na rádio, Brizola denúncia o imperialismo estadunidense: “Penso com independência. Não penso do lado dos russos ou dos americanos. Penso pelo Brasil e pela república. Queremos um Brasil forte e independente. Não um Brasil escravo dos militaristas e dos trustes e monopólios norte-americanos”. Não é a toa que a legalidade foi ouvida em diversos cantos do mundo por diversos movimentos populares que, de um jeito ou de outro, encontravam um laço de familiaridade com o nosso movimento.

Leonel Brizola

Ao longo dos “13 dias que abalaram o país”, os sindicatos estiveram presentes. Trabalhadores se organizaram nos “Batalhões Operários”. “Em Porto Alegre doi Batalhões Operários distinguiram-se o dos tranviários (Carris) e o dos portuários, reunia todos os trabalhadores com alguma função no porto, fosse braçal, mecânica ou burocrática. Os Batalhões Operários, também organizados no interior, atuaram de forma a não interromper as atividades produtivas, pelo contrário, setores essenciais redobraram suas ações”.[1]

Também os estudantes secundaristas e universitários se mobilizaram para o apoio a Legalidade, através de suas entidades UGES, UEE e UNE – que se instalou em Porto Alegre durante os dias de tensão.

Também é importante destacar a participação e o engajamento do exército no movimento; sendo que muitos tendem a dizer que todos os militares são golpistas. O III Exército, chefiado pelo general Machado Lopes, aderiu a Legalidade no dia 28 de agosto. E a Brigada Militar, desde o primeiro momento se mostrou disposta a defender a ordem constitucional.

A nível federal, o movimento legalista do RS ganhou adeptos em outros estados. O governador Mauro Borges (PSD) de Goiás levantou seu estado e transformou a sede do governo (o Palácio das Esmeraldas) um reduto de resistência, inclusive utilizando a rádio local.

O Movimento da Legalidade teve um fim um tanto quanto inusitado. Jango conseguiu retornar ao Brasil, após alguns políticos conservadores (entre eles Tancredo Neves) negociarem com militares um bizarro parlamentarismo – com o único intuito de dimunuir os poderes do presidente. Brizola, por sua vez, denunciou a manobra parlamentarista como “golpe branco”, e propôs que Jango liderasse uma marcha popular até Brasília, para ser empossado no sistema presidencialista. Jango declinou a proposta e resolveu aceitar o parlamentarismo de araque. O presidente foi à capital do Brasil de avião, durante o percurso houve uma tentativa de abater a aeronave por militares golpistas – a Operação Mosquito; que não chegou a ocorrer. Foi empossado no dia 7 de setembro de 1961, em Brasília.

Será que a Legalidade de 1961 pode nos inspirar neste ano de 2015?


Notas:

[1] D'AVILA, Ney Eduardo Possap. Um olhar sobre a Legalidade. Passo Fundo: Berthier, 2011, p. 130.


REFERÊNCIAS:

AMARAL, Anselmo. Brizola e a legalidade. Porto Alegre: Editora Rígel, 2009.

BARBOSA, Vivaldo. A rebelião da legalidade. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

D'AVILA, Ney Eduardo Possap. Um olhar sobre a Legalidade. Passo Fundo: Berthier, 2011.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2012.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

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