O MODO DE PRODUÇÃO DO ESTADO INDÍGENA INCAICO

Parte da historiografia que considera a verificação das formas de apropriação dos meios de produção existentes entre os incas o essencial para compreender esta sociedade aponta que o seu modo de produção foi o mesmo de todas as civilizações que chegaram à escravidão antiga. Para eles a maneira como a sociedade incaica se organizava e garantia a produção das suas necessidades materiais era chamado de modo de produção asiático. E há uma grande quantidade de autores que acabaram tornando esta categoria marxista de alcance quase universal. O nome asiático se deveria principalmente por causa das características econômicas dos povos do Levante/Oriente Médio, tais como os sumérios, assírios, babilônicos, sobremaneira dos indianos. Em “Para uma crítica da economia política” (MARX, 1996, p.13), Marx chega a citar como asiático o modo de produção dos antigos povos do México (astecas) e Peru (incas):
[...] pode­-se dizer que há formas de sociedades muito desenvolvidas e que são, no entanto, historicamente imaturas, como o Peru, por exemplo, onde ocorrem formas superiores de economia – cooperação, divisão do trabalho, etc. – mas onde não há nenhuma forma de dinheiro (...)” (p. 13)
Sabendo disso, e tendo em vista que uma das grandes premissas do americanismo é ver a história com nossos próprios olhos, sem a lente europeia/eurocêntrica, este texto tem como proposta trazer um olhar questionador sobre o modo de produção dos incas, afastando de vez a categoria de modo de produção asiático para as formações econômicas americanas.

Incas construindo.
Desta forma, caminhamos na mesma esteira de Perry Anderson em “Linhagens do Estado Absolutista”. Para ele, como Marx obteve parcos conhecimentos sobre a história da Ásia, a categoria modo de produção asiático é defasada. Anderson afirmou categoricamente: “Que este conceito [de modo de produção asiático] receba o enterro condigno que ele merece”. (Anderson, 1989, p.547) Marx avançou na luta anti eurocêntrica, ao usar o despotismo hindu como modelo explicativo de todas as formas de produção posteriores a comunidade primitiva, encontrando características asiáticas nas origens do escravismo grego e romano. Porém da mesma forma que a história americana não deve seguir os modelos europeus, também não somos asiáticos! O nó da questão é a permanência dos ayllus durante toda a vigência do Império Inca. De um modo geral, não houve despotismo entre os incas. O despotismo do governante que teria poderes absolutos é uma das principais características do modo de produção asiático.

As fontes para enterrar este conceito para explicar a dinâmica social incaica está em diversos livros, infelizmente nem todos traduzidos para nosso idioma. Por outro lado, muitos estão disponíveis gratuitamente através da internet. E o governo atual venezuelano é um grande aliado do nosso americanismo ao organizar a Biblioteca Ayacucho Digital. Em 1974 foi criada a Biblioteca Ayacucho para criar os fundamentos da integração cultural da América Latina. Uma das obras lançadas foram as crônicas de Peru reunidas em uma única publicação. O autor foi um daqueles homens que foram a América como soldados e voltaram como historiadores e geógrafos, Pedro de Cieza de León. Ele afirmou sobre o senhorio incaico:
[...] verdaderamente pocas naciones hubo en el mundo a mi ver que tuvieron mejor gobierno que los Ingas. Salido del gobierno yo no apruebo cosa alguna antes lloro las extorsiones y malos tratamientos, y violentas muertes que los españoles han hecho en estos indios, obrados por su crueldad, sin mirar su nobleza y la virtud tan grande de su nación. Pues todos los más de estos valles están ya casi desiertos, habiendo sido en lo pasado tan poblados como muchos saben. (León, 2005, p. 176)
Mesmo um conterrâneo dos colonizadores reconheceu o bom governo dos incas. Dentro da Câmara dos Comuns britânica havia também o reconhecimento da justiça social que imperava entre os incas. Como nossa escrita é militante, elogiamos o império incaico, chamando a atenção para as diversas vozes que no passado, contrariando muitas vezes a mentalidade de suas épocas, reconheciam o bem viver das populações governadas pelos incas.

Mapa Múndi de Felipe Guaman Poma de Ayala, representando os quatro suyus do império inca: Chinchaysuyu a oeste, Antisuyu ao norte, Collasuyu a leste e finalmente Cuntisuyu ao sul.

Há uma tendência que afirma: os incas surgiram como um império cooperativo através da assimilação, dos quíchuas com outros povos e culturas sul­americanas: como os chavin, moches e huaris. O autor peruano David Huamani Pumacahua traduz em três etapas a origem dos Incas enquanto um império, da hegemonia chavin, passando pela predominância do império Wari, culminando nos incas. Por outro lado, há livros que colocam os waris como o primeiro império andino, através dos quais os incas aprenderam o urbanismo e expansionismo militar. Patricia Temoche Cortez coloca na origem dos incas grupos como os huallas, os sahuaseras, os lores, os poques, os copalymaltas, os alcavizas, os culunchimas, os ayaruchus, que geralmente eram governados por dois soberanos. Sendo este um costume andino passado aos governantes incas, que reinavam conjuntamente ao seu sucessor.

Sabemos que já no Período Formativo (mais ou menos 2000 a.C. até 1492 – chegada do europeu), os incas eram um povo organizado em uma civilização complexa, ou seja, numa sociedade de classes bem definidas. Chegaram a sociedade de classes por seu desenvolvimento próprio. Se ser civilizado é viver em uma sociedade dividida em classes sociais, os incas já o eram antes da vinda dos imigrantes europeus. E se ser civilizado é viver em um lugar aonde existe propriedade privada, entre os incas ela estava se gestando, sem necessidade da convivência com os espanhois. Mas a propriedade privada e a divisão de pessoas em classes sociais, não impediu que a reciprocidade fosse a essência do império. Ora, se a reciprocidade definia a sociedade incaica, o império não era despótico, portanto, também o seu modo de produção não era de tipo asiático.

O Estado inca não existiu em verdade. Inca ou Ynga ou, ainda, Yunga, era o título que os governantes recebiam para liderar a administração do Estado cujo nome era Tawantinsuyo. O inca era o primeiro a figurar na pirâmide social, tinha o privilégio de ter várias esposas e de usar a liteira como transporte. Cada inca formava a sua família ou panaca. Os membros das panacas (a nobreza de sangue) eram chamados pelos espanhóis de orelhões, pois usavam discos de ouro nos lóbulos nas orelhas como forma de distinção. Os orelhões tinham uma importância fundamental quando aconteciam as guerras civis dentro do império entre uma sucessão inca e outra. Como afirma CORTEZ (2013), “ Nesses momentos a astúcia e a diplomacia dos orelhões tinham que ser decisivas. “ (p. 65) Os governantes das províncias das quatro partes do Império eram os curacas. Os membros da panaca, os curacas, e funcionários da administração e da defesa do Estado, que era a religião da sociedade incaica, formavam a alta aristocracia.

Representação do inca em sua liteira


Nesta civilização andina, as mulheres desempenhavam um importante papel. As mulheres virgens eram veneradas. A divindade criadora do mundo era parte homem, parte mulher. Mas a classe mais importante era a que fornecia a força de trabalho para a subsistência da população em geral, os ayllus. Os yanaconas não trabalhavam na produção. Logo o modo de produção incaico também não era escravista. Além dos yanaconas serem em muito menor número do que os trabalhadores dos ayllus, que, estes sim. formaram a mão de obra predominante do modo de produção incaico.


A cidade de Yaconu foi palco de uma revolta contra o inca, que resultou em uma violenta repressão. Todos foram punidos com a servidão perpétua, estendida a seus descendentes, para trabalhar geralmente nas terras particulares ou para o Estado. Esta categoria, muitas vezes é confundida com a escravidão, e responsável por um entendimento depreciativo dos incas, que seriam, escravistas. Mesmo sem analisar e interpretar o modo de produção incaico (ela interpreta a forma de viver através da reciprocidade), CORTEZ (2013) nega a escravidão entre os andinos, quando aborda os yanaconas: “Não se pode chamá­-los de escravos, já que gozavam de certos direitos, como a posse de parcelas próximas do lugar do seu trabalho.” (p. 118) E, além disso, bem sabemos que a escravidão moderna, principalmente a partir do século XV, é um produto do capitalismo nascente – não é a toa que se estende até fins do século XIX. Os yanaconas também não eram servos, não estavam ligados a uma terra que seria uma propriedade privada, ainda incipiente no Peru incaico.


Waldemar Espinoza em seu livro chamado “Los modos de producción en el imperio de los incas” analisa as diversas hipóteses de modos de produção para a sociedade incaica, como o comunismo primitivo, o socialista, o asiático, o inca e o escravista. Há uma contradição em alguns autores que estudam os incas. Para Luis Vitale o modo de produção predominante era o comunal- tributário. Outros autores falam em socialismo inca ou socialismo mágico. Donald Dozer em sua obra “América Latina: uma perspectiva histórica” chega a falar em comunismo inca, como o fizeram Mariátegui e Rosa Luxemburgo com argumentos diferentes, mas chegando a mesma conclusão.

Mas o socialismo marxista é um período de transição entre o capitalismo e o comunismo, aonde o Estado ainda existiria. Sendo assim, como o modo de produção inca pode ser definido como comunista sendo que, o Estado tem um papel muito importante na sociedade e na economia? O surgimento dos yanaconas nos mostra que as lutas de classes existiam entre os incas. Mas no comunismo marxista inexistiriam classes sociais. Será que podemos definir o modo de produção incaico como socialismo inca? Os incas inventaram uma experiência socialista na América? Outra pergunta a ser feita é: os incas eram comunistas de modo diverso ao teorizado por Marx e Engels? Ou terão os yanaconas se generalizado na segunda etapa da história incaica, marcada pela expansão militar?

Os incas tiveram seu auge entre os anos 1438 e 1525. Em sua extensão máxima atingida, compreenderam parte dos atuais Equador, Colômbia, Peru, Bolívia, Chile e Argentina. Qual foi o seu modo de produção? Muito há, reconhecemos, a ser estudado sobre a história desta formação social que é tema geral desta escrita.


REFERÊNCIAS

ANTUNES, Jair. Marx e a categoria de modo de produção asiático: a Índia como modelo de sociedade não­ocidental. Disponível em: http://orientacaomarxista.blogspot.com.br/2011/06/marx­e­categoria­de­modo­de­producao.html. Visualizado em: 21/09/2015.

CORTEZ, Patrícia Temoche. Breve história dos incas. Rio de Janeiro: Versal, 2013.

DOZER, Donald M. América Latina: uma perspectiva histórica. Porto Alegre: Globo, 1974.

LEÓN, Pedro de Cieza de. Crónica del Perú el senhorío de los incas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2005.

MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. 2 a ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MARX, Karl. Formações econômicas pré­capitalistas. In: PINSKY, Jaime (org.). Modos de produção na antiguidade. São Paulo: Global, 1984.

VITALE, Luis. Introducion a uma teoria de la historia para America Latina. Buenos Aires: Planeta, 1992.


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no Jornal de Viamão.

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