SOCIALISMO E POSITIVISMO: As raízes do trabalhismo no Rio Grande do Sul

O trabalhismo tem suas origens na política social de Getúlio Vargas ao longo dos anos 1930 até 1945 e na ideologia elaborada por Alberto Pasqualini a partir da União Social Brasileira, e posteriormente no antigo PTB (1945-1964). Contudo, é possível buscar as raízes históricas do trabalhismo (no RS, estado natal tanto de Vargas como de Pasqualini) nos movimentos socialistas, que em fins do século XIX e nas primeiras décadas do XX passaram a se organizar, seja em Porto Alegre como em outras cidades do Estado; e na política do positivismo castilhista. A aproximação entre estes dois elementos (socialismo e positivismo) é algo marcante e que pouco, ou quase nada, aparece na nossa historiografia local. Duas ideologias aparentemente contraditórias acabam por se aproximar em alguns momentos – e sua síntese será o trabalhismo brasileiro.

A organização operária no Rio Grande do Sul se deu de uma forma bem peculiar. A influência das ideias anarquistas, socialistas e social-democratas, vem no final do século XIX (por volta de 1870), em grande parte devido a política de imigração alemã e italiana. Ao mesmo tempo em que estas ideias iam ganhando força, existiam no estado as chamadas “associações de ajuda mútua” (mutualismo) onde patrões e trabalhadores urbanos e rurais, em sociedade, criavam fundos para o amparo do próprio trabalhador. “Com essas sociedades, o sócio (trabalhador assalariado, artesão e, as vezes, também pequeno proprietário) assegurava seu futuro contribuindo com uma quota que, em caso de infortúnio, dava lugar ao benefício de um subsídio e auxílios diversos e onde não era desprezível a segurança de receber um enterro digno.”[1]

Com a influência do socialismo francês e da social-democracia alemã os operários vão, gradualmente, se desvinculando do mutualismo, que passa a ser visto como algo “paternalista”, e organizando suas próprias associações. Em 1887 é fundada a Liga Operária em Pelotas, iniciativa dos trabalhadores fabricantes de calçados e alguns empresários. Em Porto Alegre, no ano de 1890, é fundado um Partido Operário (de curta duração); em 1892, também na capital, é fundada a organização Allgemeiner Arbeiter Verein (responsável por difundir as ideias do Partido Social- Democrata Alemão) e em 1895 a Liga Operária Internacional. Em 1893 surge a União Operária em Rio Grande. Em outras cidades como Bagé, Quaraí, Santa Maria e Santana do Liramento organizações semelhantes vão surgir no mesmo período. Por influência dos partidos socialistas da Argentina e do Uruguai, de onde vinham alguns materiais em espanhol, essas organizações gaúchas de fins do século XIX editavam seus jornais no intuito de difundir as suas ideias.

Em 1897 algumas dessas organizações se unem e fundam o Partido Socialista do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre – percebam que a lógica é regional, tal qual os diversos Partidos Republicanos que existiam; não havia partidos organizados a nível nacional. Desta organização participam alguns nomes que vão se tornar conhecidos na história do movimento operário do estado, tais como Francisco Xavier da Costa (1873-1934), José Ferla (18??-19??), José Rey Gil (18??-19??) e Lucidio Marinho Prestes (1872-1961; tio de Luis Carlos Prestes).

O interessante ao analisar os discursos destes movimentos operários é que aparentemente não há uma preocupação com a situação dos negros, “libertados” por uma lei conservadora que não lhes deu nenhuma garantia social. Seria o movimento operário da época seletivo em relação ao tipo de trabalhador? Só trabalhadores brancos e descendentes de estrangeiros seriam operários “dignos” de lutar pelo socialismo ou por benefícios sociais? Fica a dúvida, quem sabe ela motive alguma pesquisa sobre a relação do nascente movimento operário e os negros atirados a própria sorte após a “Lei Áurea”.

Nos primeiros anos do século XX houve algum tipo de mobilização destas forças operárias. Mas se há algum evento que pode ser considerado uma espécie de “marco” no movimento operário gaúcho de inspiração socialista é a chamada “Greve dos 21 Dias”; que ocorreu em outubro de 1906 em todo estado. Participaram dela trabalhadores de fundições, marmoristas, fábrica de móveis, tecidos, vidros, chapéus, curtumes, funilarias e da companhia Força & Luz (transporte e energia). Os grevistas revindicavam 8 horas de trabalho. No fim da greve, houve uma negociação e ao invés das 8 horas revindicadas, muitos trabalhadores aceitaram voltar aos seus postos por 9 horas diárias de serviço. No mesmo ano, em abril, foi realizada a 1o Congresso Operário Brasileiro no Rio de Janeiro, a primeira tentativa de organizar o movimento operário nacionalmente – o RS não participou com delegados, enviando apenas um documento de apoio.

Também em 1906 foi criada a Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), que passa a ter influência anarquista. De 1906 até 1916, houve um intenso enfrentamento entre as diversas correntes operárias – travado nos jornais destas correntes.

Greve geral de operários ocorrida em todo território nacional em 1917.
Em 1917 outra grande greve geral. Desta vez o aumento dos preços (consequência das exportações para suprir a guerra europeia de 1914-1918) foi o principal motivo. Nesta greve aparecem os primeiros elementos identificados com a Revolução Russa (de fevereiro); mas ainda bastante confusos, pois tanto anarquistas como social-democratas gaúchos revindicam o conteúdo da revolução. Talvez isto tenha ocorrido por causa da precariedade dos meios de comunicação da época. Estranho é notar que os movimentos operários falem em Revolução Russa e não na Revolução Mexicana. Nos anos de 1918 e 1919 também houve greves em todo estado. Destaca-se o papel dos operários da companhia Força & Luz nestes movimentos.

Em relação ao governo do estado, ele estava organizado a partir da constituição de 1891, obra dos republicanos do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Os jovens republicanos que fundaram o PRR, tais como Júlio de Castilhos, Barros Cassal, Borges de Medeiros, Ramiro Barcelos, Fernando Abott e Pinheiro Machado, criticavam o velho Partido Liberal que se dizia “herdeiro” da tradição farroupilha, mas não falava em república. Além do mais, o PRR foi o primeiro partido do Brasil a adotar uma ideologia política: o positivismo comteano. “A Constituição Estadual de 1891 do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, trazia vários artigos sobre a regulamentação do trabalho e garantias dos direitos do cidadão e da ordem”[2]

Embora o positivismo seja uma teoria de origem europeia (desenvolvida no contexto da Revolução Industrial) ela ganhou contornos próprios aqui no Brasil e no Rio Grande do Sul, dada a realidade histórica muito diferente daquela onde viveu Augusto Comte. Sendo assim, é possível dizer que o positivismo aqui no RS ganhou uma vertente chamada de castilhismo – uma referência à Júlio de Castilhos.

Neste sentido, cabia ao governo (positivista/castilhista) “incorporar” o proletário na sociedade – dentro dos quadros da ordem, para se alcançar o progresso.

Borges de Medeiros, governador
do Rio Grande do Sul durante
 a greve de 1917
O governo do estado atuou de forma decisiva nas greves de 1917 e 1918. Em 1917, o governador Borges de Medeiros tomou as seguintes medidas, prontamente colocadas em prática: “Por ocasião da greve nesta capital verifiquei a necessidade imediata de suspender a exportação do trigo e fiscalizar as exportações e o consumo de outros gêneros alimentícios de modo a ficar habilitado a prover com segurança sempre que for mister. A par dessas medidas, aumentei os salários dos proletários ao serviço do Estado e por uma ação harmônica e solidária com o governo municipal e com o comércio e indústrias, nesse e noutros pontos, restabeleceu-se a tranquilidade geral e uma satisfatória situação para as classes trabalhadoras”[3]

Nos anos de 1918 e 1919, as greves ocorreram mais a partir de iniciativas de categorias específicas do que pela união dos trabalhadores. Enquanto isto, há uma aproximação entre alguns militantes socialistas nas fileiras do PRR.

Um exemplo desta aproximação é o caso de Francisco Xavier da Costa. Nascido em Porto Alegre, filho de um baiano com uma gaúcha, trabalhava desde cedo numa oficina litográfica. Foi um autodidata e acabou se interessando pelas ideias socialistas da época. Participou, como vimos, da fundação do Partido Socialista de 1897, e de várias outras organizações. Em 1912, Francisco é eleito conselheiro municipal de Porto Alegre pelo PRR; o que lhe rendeu páginas de críticas nos jornais da imprensa operária de Porto Alegre – principalmente por correntes anarquistas da FORGS.

O que teria levado um socialista a aderir às fileiras do PRR? Talvez a percepção de que as greves e o crescente fracionamento do movimento operário (que mal surgia e já se dividiam em correntes distintas sem ao menos ter constituído um órgão que lhes representasse) não atendiam as demandas da classe trabalhadora e era preciso encontrar outros meios de efetivar políticas que beneficiassem os operários de forma mais eficaz. Cabe destacar que antes da candidatura de Xavier da Costa, alguns operários já haviam apoiado outros candidatos dos partidos oficiais – e alguns dissidentes do PRR como Barros Cassal, Fernando Abott e Antão de Farias.

Esta percepção talvez seja um indicativo de que o trabalhismo no RS surge como uma síntese entre o positivismo e o socialismo.

Carlos Araújo (1878-1961), conhecido como Carlos Cavaco, também é um exemplo de militante que viveu o período das organizações operárias socialistas e passou a apoiar o trabalhismo. Iniciou sua militância socialista junto com Francisco Xavier da Costa por volta de 1906 – ambos editavam o jornal A Democracia. Organizou greves em Porto Alegre e em Rivera (Uruguai) na década de 1910. Apoiou a Revolução de 1930. Em 1931 participou da organização de caráter revolucionário Legião Cearense do Trabalho; sendo preso logo em seguida por autoridades locais. O reconhecimento por décadas de atuação no movimento operário veio em 1953 quando Cavaco foi nomeado pelo então ministro do trabalho, João Goulart, assessor da Comissão de Orientação Sindical do Ministério do Trabalho.

Vejamos o caso do socialista Antônio Guedes Coutinho. Nascido em Portugal no ano de 1868, veio para Pelotas no final da década de 1880. Militante socialista, trabalhou como alfaiate, na indústria têxtil, foi jornalista e professor. Colaborou com importantes jornais operários e fundou o Echo Operário, no ano de 1896. Em 1940, entrevistado por um jornal de Rio Grande, Guedes Coutinho afirmava: “[...] a politica sábia e superiormente orientada pelo presidente Vargas, eminente fundador do Estado Novo, que deu ao trabalhador brasileiro, espontaneamente, sem lutas, sem estremecimentos ameaçadores da estrutura de nossas instituições básicas, tudo, ou mais, daquilo que violentamente pensávamos conseguir”.[4]

Os casos analisados acima são bastante sintomáticos e indicam que a aproximação entre o socialismo e o positivismo vai dar origem a uma ideologia originalmente brasileira: o trabalhismo. Junto com Francisco Xavier da Costa, Carlos Cavaco e Antônio Guedes, quantos outros militantes socialistas, cujos nomes não se encontram registrados nos jornais operários, também aderiram à política do PRR e posteriormente ao trabalhismo? Por outro lado, é importante destacar que o principal ideólogo do trabalhismo brasileiro, Alberto Pasqualini, também tem influências na doutrina social da Igreja e no trabalhismo inglês. Entretanto, Pasqualini não chega a ser tão radical, pois não fala em superação do capitalismo, mas em capitalismo solidarista. Neste sentido, o próprio Getúlio Vargas que nos traz uma prova de que o trabalhismo é uma vertente que também se inspira no socialismo. Segundo Vargas: “Ou a democracia capitalista, compreendendo a gravidade do momento, abre mão de suas vantagens e privilégios, facilitando a evolução para o socialismo, ou a luta se travará com os espoliados, que constituem a grande maioria numa conturbação de resultados imprevisíveis para o futuro.”[5]




Notas:

[1] PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. “Que a união operária seja nossa pátria!”: história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS; Santa Maria: editoraufsm, 2001, p. 35.

[2] PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. “Que a união operária seja nossa pátria!”: história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS; Santa Maria: editoraufsm, 2001, p. 173.

[3]Mensagem enviada à ALERGS pelo gov. Antônio Augusto Borges de Medeiros. 20 de setembro de 1917.

[4] SCHMIDT, Benito Bisso. Uma reflexão sobre o gênero biográfico: a trajetória do militante socialista Antônio Guedes Coutinho na perspectiva de sua vida cotidiana (1868-1945). dissertação de mestrado, disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/109241/000122834.pdf?sequence=1

[5] AMARAL, Anselmo. Brizola e a legalidade. Porto Alegre: Rígel, 2009, p. 20.



Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

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