“O Caldeirão”

O Cariri é uma região localizada no Sul do Ceará, dotada de fontes naturais e solo fértil. Tem esse nome referindo-se aos nativos que aqui habitavam chamados de “cariris”.


É impossível não relacionarmos o caldeirão ao padre Cícero Romão Batista. Pois se tornou uma peça chave para o povoado de Juazeiro, atraindo várias pessoas desencadeando um movimento religioso de grande proporção. O padre recebe suas ordens sacerdotais em 1870, período em que a igreja combatia o catolicismo popular através do processo de romanização. 

O padre era uma figura muito mística e não era visto com bons olhos pelos padres lazaristas. Tendo várias visões noturnas, padre Cícero decide fixar residência em Juazeiro que a princípio não era sua intenção. Com uma capacidade de liderança grandiosa logo reuniu muitas pessoas criando uma irmandade de mulheres e diariamente todos se reuniam na capela para fazerem suas orações. 

Em 1889 acontece então o suposto milagre da beata Maria de Araújo, onde a comunhão transformou-se em sangue. Devido a forte pressão da igreja romana e os boatos se espalhando cada vez mais, veio uma comissão para averiguar o suposto milagre e concluíram não haver nada sobrenatural naquele fato. O padre Cícero foi suspenso das ordens sacerdotais e só em 1898 vai a Roma e jugado pelo Santo Ofício lhe é dado o direito de pregar novamente.

Contudo o povoado crescia e o padre orientava o povo a trabalhar no cultivo. Para eles o milagre era verdadeiro e os devotos não paravam de chegar na região. E por volta de 1890, José Lourenço visita Juazeiro. Assim para compreendermos melhor o cenário da época é preciso salientar que a partir da segunda metade do século XVI houve um distanciamento entre religião oficial e a popular. Ou seja, o Concílio de Trento (1540-1552) afirmou um clero elitizado onde o saber popular foi totalmente marginalizado. O fanatismo tornou-se um adjetivo pejorativo das práticas religiosas dos pobres.

Nesse sentido, com o crescimento do catolicismo popular o padre Cícero sofre duras punições, enquanto seus devotos aos olhos da Igreja Oficial eram fanáticos e dementes. Esse termo “fanatismo” estava relacionado ao atraso, ignorância e pobreza, mesmo que ricos e pobres viessem a Juazeiro em busca de solução aos seus problemas.

José Lourenço chega com sua família e conta-se que por intermédio do padre Cícero ele arrenda um pedaço de terra no sítio Baixa Dantas, no município de Crato. O Sítio logo ficou repleto de plantações e em meio ao cenário religioso com orientação do padre Cícero ele entra para a “Ordem dos Penitentes” e posteriormente torna-se beato. 

Como dito anteriormente, a Igreja Oficial tentava conter o fanatismo e após um episódio a respeito de um boi presenteado ao padre Cícero, o beato foi preso e o boi foi morto. Porque criou-se uma veneração ao animal, afirmando que fazia milagres. E como o beato cuidava do boi foi punido. Quando sai da prisão retorna ao sítio e retoma seus trabalhos. Mas logo em seguida o local foi vendido e o padre Cícero consegue outro pedaço de terra chamado de “Caldeirão dos Jesuítas” com quase 800 hectares. 

Região próxima a serra do Araripe o “Caldeirão” ganhou esse nome por ter uma formação rochosa que parece uma panela e que conserva água em seu interior. Portanto em 1926 o beato e alguns camponeses se instalam na região e começam seus trabalhos na agricultura. Em seguida construíram a casa do beato e posteriormente a capela.

Com o passar dos anos foram chegando não só agricultores como também carpinteiros, pedreiros, ferreiros e logo construíram um engenho de madeira iniciando a produção de mel e rapadura. Outras atividades como: a fabricação de panelas, baldes de flandes, chinelos de couro, roupas, redes e lençóis eram produzidos nos teares manuais. Além da fabricação de cestas feitas de cipó, também passam a produzir a farinha, o beiju e a tapioca.

A religião os inspiravam a viverem em fraternidade. Trabalhavam e faziam orações diárias. Tudo era dividido, os armazéns eram cheios e não precisavam de dinheiro, pois cada um recebia de acordo com suas necessidades. O beato pregava que a solidariedade devia ser construída no cotidiano. Com a morte do padre Cícero em 1934, aparece o fenômeno das romarias e o beato torna-se um grande líder e a região vai recebendo um fluxo de pessoas muito grande.

O beato ganha prestígio entre camponeses e alguns proprietários de terras. José Lourenço orientava a esses proprietários a praticarem o cooperativismo e assim não era bem visto por alguns da elite e pela Igreja, sendo acusado de fanático. O padre Cícero deixa uma grande parte de seus bens destinados a Congregação dos Padres Salesianos.

Os rumores sobre o Caldeirão já havia se espalhado. O capitão Cordeiro Neto, chefe de polícia naquela época, enviou um investigador ao local e concluiu que várias pessoas aglomeradas daquela forma só poderiam ser um grande perigo. Pois eram conhecidos como fanáticos e devido ao episódio de Canudos na Bahia, concluíram que O Caldeirão deveria ser destruído.

As tropas que lá chegaram, ficaram surpresas ao serem recebidas com estranho silêncio. O beato já tinha sido avisado com antecedência pela polícia vigilante. O capitão Cordeiro fora recebido na casa do beato e sem saber como agir, explicou que todos teriam que desocupar o local, porque para o governo eram considerados perigosos. E o Capitão ficou impressionado com os dados de que apenas 5% eram cearenses natos. Os demais eram de Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Piauí e Maranhão.

O Capitão Cordeiro teve grande dificuldade em executar as ordens que lhe foram dadas. O local já contava com 400 casas e todos diziam que tudo que tinha ali era de todos. A única solução foi destruir as casas e enviar os bens ao município. Em meio a carnificina, centenas de camponeses foram mortos e presos. Muitos conseguem fugir para a Serra do Araripe enquanto outros ficam perambulando pelos sítios da região. O beato por sua vez temendo ser preso não se fixa mais em local nenhum.

A perseguição durou por um bom tempo. E assim, o Caldeirão é destruído em nome da civilização. Os que tentavam sobreviver na mata já resistiam e andavam armados com medo de serem mortos. Pois já não estavam sob os conselhos do beato. E houve uma grande matança entre camponeses e militares. Os ataques aéreos também foram registrados, o capitão José Macedo o atual chefe de polícia falou ao jornal “O Estado” em 1937, que fizeram novos vôos pela serra metralhando as barracas.

José Lourenço retorna ao Caldeirão em 1938 com alguns sobreviventes retomando os trabalhos e com o passar do tempo vai chamando o restante do povo e começam a reconstruir o local. Mas em 1939 são novamente expulsos. O beato compra um terreno em Pernambuco onde refaz uma comunidade e permanece por lá até a sua morte em 1946.

O Caldeirão foi visto pelas camadas dominantes como um modelo de socialismo, devido seus ideais de vida e trabalho. Os jornais da época acusavam o local como perigoso, uma renovação do que foi realizado por Antônio Conselheiro. Temendo uma ameaça comunista relacionando a experiência de Canudos, os jornais legitimaram o processo de esquecimento do Caldeirão.

Pintura retratando Beato José Lourenço
Igreja STº Inácio de Loyola


Referência: 

RAMOS, Francisco Régis Lopes.Caldeirão: estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar/Núcleo de Documentação Cultural- NUDOC/UFC, 2011.


Sobre o Autor:

Aline Justino, natural de Cajazeiras na Paraíba, graduou-se em História pela Universidade Regional do Cariri (URCA).

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