AYLLU: a célula básica da sociedade incaica

Foi somente por meio da rígida e amplamente disciplinada organização do império incaico que se tornou possível gerar a uma sociedade que muito fez, mesmo contando com tão pouco. Pois é fato de que toda a cadeia de montanhas dos Andes (domínio da maior parte deste vasto império de 3.000 km de extensão quando em seu auge) apresenta rigorosas condições climáticas. Além de dada carência de recursos, tanto para o homem como os animais que fazem desta área o seu lar. 

E mesmo assim, a despeito das inúmeras condições adversas de seu meio, é indiscutível que os incas conseguiram criar “(…) uma sociedade aonde não havia escassez de alimentos (...)” como o historiador Rafael Freitas já havia mencionado no verbete Educação Incaica, publicado em 02 de outubro de 2015. 

Aonde este mesmo autor destaca que o roubo por isso era desnecessário. Tudo graças à eficiência de todo este complexo, em que a despeito de não haver a abundância para todos, ao menos ninguém era negligenciado. Em vista de que todos tinham acesso a terra e a moradia. Todos! Algo que entre nós, em pleno século XXI, já não se pode dizer o mesmo.

Sendo que toda esta organização possuía uma impressionante série de desdobramentos. Acontecendo que o mais importante destes é o chamado ayllu (ou ayllo) que era uma forma de comunidade nativa que compreendia cada clã familiar. O qual se fez a base social de todo o Império Inca. 

A célula familiar, sobre a qual se sustentava toda a complexa organização desta avançada civilização. Sendo este clã definido numa região, com base em um descendente comum, seja ele real ou suposto, a um grupo de pessoas. 

Ocorrendo que neste ayllu seus membros trabalham coletivamente em uma área de propriedade coletiva. Onde a organização do mesmo era regida por um curaca (chefe local). Era ele quem fazia a distribuição da terra e dispunha da organização de todo o trabalho em seu grupo. Cabendo a este curaca também a incumbência de agir como um juiz da comunidade. 

Mas, ao contrário do que muitos podem pensar, esta autoridade como curaca, nem sempre era herdada de pai para filho. Uma vez que a sua seleção dependia antes de um ritual especial. Em vista de que, às vezes, eles eram nomeados diretamente de Cuzco (a capital do Império Inca). 

De modo que estes não podiam agir como autocratas locais à revelia do governo central. Precisando assim sempre prestar contas ao soberano inca. Que, por sua vez, também se submetia aos regulamentos desta célula social.

Sociedade incaica

A começar pelo fato de que até o próprio monarca fazia parte de um ayllu. Primeiro subordinado ao clã de seu pai. E quando, por ocasião da morte deste, o filho designado como novo governante logo se desliga de seu ayllu original, criando o seu próprio. Formado exclusivamente por ele, suas esposas, filhos e protegidos.

O que obrigava o governante, entre outras coisas, a criar as suas próprias rendas, assim como construir seus próprios palácios. Por causa do fato de que todos os bens materiais pertenciam ao clã.

Consequentemente ao se desligar dele, o imperador nada levava consigo. Continuando a fazer parte deste ayllu inicial somente seus irmãos e demais familiares, tal como os protegidos do antigo monarca. 

Deste modo, facilmente se percebendo que em todo o império, não existia propriedade individual (privada). Havendo unicamente uma divisão entre as terras do Estado (Governo), da organização religiosa e as terras comunais (de cada ayllu). 

Uma vez entendendo esta divisão, podemos observar que o trabalho não se restringia às obrigações dentro da sua comunidade. O que torna compreensível, por exemplo, a obrigação dos membros do ayllu de trabalharem nas terras de seu clã, ao mesmo tempo em que deveriam cultivar as terras do Estado. 

Certamente para sustentar a uma classe governante ociosa? Por mais incrível que pareça, em boa parte, não. Esse é mais um diferencial dos incas em relação a outras sociedades. E que diferencial!

Ainda que evidentemente estas terras, do Estado, sustentavam a classe governante, elas também serviam para o sustento dos idosos e dos doentes incapazes de produzir. Portanto, seria exagero ver aos incas como verdadeiros percursores da atual Assistência Social? E isso não é só. Visto que se um ayllu se visse em caso de necessidade, este mesmo Estado disponibilizava seus estoques para lhe sustentar enquanto durasse a crise. 

Mas e quanto à produção das terras do Sol (desinadas ao clero)? Bem, ela também recaíra sobre os membros de cada ayllu. Precisando seu tempo nelas com o trabalho que já tinham nas suas próprias terras e nas do Estado. 

Porém, antes de julgamentos precipitados, vejamos o seguinte: que o produto delas era destinado unicamente aos que se achavam ocupados nos oficios religiosos. Cabendo aos sacerdotes igualmente terem de lavrar a terra para se sustentarem quando eles estavam desimpedidos dos seus compromissos em nome da religião.

Feitas todas essas considerações, podemos agora observar que esses clãs se mantinham por quatros laços de unidade que eram: 

1) unidade religiosa (ou totêmica) em que todos os membros prestam devoção ao totem (ancestral comum ou huaca) do qual se acreditam serem descendentes; 
2) ligação de sangue (parentesco);  
3) ligação territorial, que se faz pelas terras que foram possuídas pelos membros do ayllu, pelo chão da comunidade ou território, onde seus habitantes viviam e trabalhavam;  
4) ligação econômica baseada no trabalho comum e de assistência mútua entre todos os membros do ayllu.

Contudo, como já se viu sobre o ayllu determinar que todos tinham de contribuir para as necessidades do Império, não é estranho concluir que a organização destes clãs ia além do trabalho nas lavouras. Nisso sendo importante destacar a chamada Mita (depois apropriada pelo sistema colonial espanhol). 

Já que durante o império Inca, esta tinha por objetivo, fazer com que, além da produção agricola, o ayllu também fornecesse pessoal para a realização de grandes obras públicas, como pontes, estradas, canais, etc. 

Tornando deste modo possível, por exemplo, a extensa e complexa rede de estradas e informações que ligaram o vasto império Inca e que permitiu que uma mensagem a qualquer ponto do país, chegasse com relativa rapidez.

Havendo também o Ayni que consistia na ajuda a trabalhos para ajudar aos membros de seu próprio ayllu, onde imperava a reciprocidade, como se vê neste ditado: "hoje para você, amanhã por mim". Assim como a dedicada hospitalidade aos ajudantes voluntários, que recebiam, durante o trabalho, comida e bebida. 

Em suma: um mosaico extremamente complexo, perfeitamente disposto em cada detalhe. De onde poderíamos tratar sobre outras peculiaridades desta tão nitidamente organizada sociedade incaica. Acontecendo que todas elas residem obrigatoriamente no princípio do ayllu. Mas isso tiraria a oportunidade para em outros momentos as tratarmos com a atenção merecida. 

E assim, portanto, é sem exagero que pode se afirmar que o ayllu era a célula básica de toda a civilização incaica. O suporte de uma imensa estrutura material e cultural, todo esse império inca, que até hoje nos surpreende por todo o seu vasto legado que não nos cansa de o admirarmos.
           


Sobre o Autor:
LUIS MARCELO SANTOS: é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.

3 comentários:

  1. Adorei a materia !
    Só umas observações: Inca não tinha ayllu, chamaba-se Panaca, que eles continuavam com os mesmos privilégios mesmo assim o inca estiver morto. Por outro lado, os sacerdotes nunca trabalhavam nas labores domésticas, mais sim iam pras as guerras em representação do Inca.

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    1. Agradeço pelas contribuições Adrian. Por isso, gostaria de aproveitar essa brecha para enriquecer mais o debate, se me permitir. Ok? É uma oportunidade por demais valiosa essa que me cria. Então se assim, vamos lá: Afirmações sobre o tema do ayllu tem algumas pequenas controvérsias por haverem diferentes autores com uma ou outra afirmação que destoa dos outros, mas não cria nenhuma contradição. Por exemplo, o historiador argentino Fernando Marquez Miranda (Os aborigenes da América do Sul, de 1947), um dos autores (todos de língua espanhola) em que me apoiei, coloca que cada inca formava sim seu próprio ayllu. O que não quer dizer que eu ache que sua contribuição está errada. Muito pelo contrário, enriqueceu o assunto, pois o termo que me cita (panaca) é um sinônimo que diferencia o ayllu do soberano inca em relação aos demais. De resto só posso reforçar a minha satisfação pelo seu cometário, pois isso cria um valioso debate que enriquece muito mais o estudo histórico.

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    2. Agradeço pelas contribuições Adrian. Por isso, gostaria de aproveitar essa brecha para enriquecer mais o debate, se me permitir. Ok? É uma oportunidade por demais valiosa essa que me cria. Então se assim, vamos lá: Afirmações sobre o tema do ayllu tem algumas pequenas controvérsias por haverem diferentes autores com uma ou outra afirmação que destoa dos outros, mas não cria nenhuma contradição. Por exemplo, o historiador argentino Fernando Marquez Miranda (Os aborigenes da América do Sul, de 1947), um dos autores (todos de língua espanhola) em que me apoiei, coloca que cada inca formava sim seu próprio ayllu. O que não quer dizer que eu ache que sua contribuição está errada. Muito pelo contrário, enriqueceu o assunto, pois o termo que me cita (panaca) é um sinônimo que diferencia o ayllu do soberano inca em relação aos demais. De resto só posso reforçar a minha satisfação pelo seu cometário, pois isso cria um valioso debate que enriquece muito mais o estudo histórico.

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