Algumas das ideias ocultadas em “Abolição” de Antônio Torres Montenegro

José D’Assunção Barros assinalava que a História não deve ser tratada como ciência natural ou exata, aonde o predomínio de um paradigma único resulta de sua fase mais amadurecida. Com a História, a principal ciência social, acontece o exato oposto: quanto mais evolui ou se desenvolve, mais surgem novos paradigmas. O historiador dividiu a História dos paradigmas historiográficos em cinco grupos (positivismo, historicismo, materialismo histórico, paradigma da descontinuidade e paradigma da complexidade) para mostrar que os historiadores convivem com múltiplas maneiras de indagar a realidade e ver o passado. Para o profissional da História a confusão paradigmática é o estado normal das coisas.

Intelectuais americanos a partir de paradigmas diversos estudaram a História brasileira almejando a sua transformação e ficaram conhecidos, devido a isso, como “intérpretes do Brasil”. Todos eles, como se fossem historicistas tardios, por seus projetos intelectivos particularizantes, mas também variando entre utopias iluministas e pessimismos românticos, produziram uma historiografia ricamente vitimada por críticas injustas, geralmente produzidas por falta de leitura.

Artigos ou livros repletos de citações de frases soltas, retiradas simplesmente de parágrafos sem maiores explicações, bastam para asseverar que Caio Prado Jr. dividiu a sociedade colonial brasileira em duas únicas classes sociais, ou que ele defendia o imperialismo econômico. Debates sem cuidados com a leitura dos seus escritos, servem para criticá-lo por inventar um capitalismo no Brasil, mais antigo que o europeu. Ora, o modo de produção capitalista originou-se na Europa. Mesmo na História, que é a ciência do dissenso por excelência, ninguém nega que as relações burguesas no mundo nasceram dentro do feudalismo, que apenas predominou na Europa. A citada crítica é errônea, mesmo porque até hoje ninguém mostrou a citação clara aonde esta ideia está posta. Antônio Torres Montenegro, tentando mostrar um Caio Prado Jr. conservador e racista, citou um trecho do livro “Evolução política do Brasil”, que bastaria para mostrar que o bacharel em Direito e militante do partidão considerava o Brasil capitalista somente depois de nossa autonomia política e após o fim do trabalho escravizado. Para ele, o Brasil foi, desde a sua origem, um país de economia colonial.

Caio Prado Júnior

Defender Caio Prado Jr. das injustiças que foi vitimado através de críticas sem base empírica, não significa considerá-lo perfeito. Independente das razões, considerar o povo negro responsável pela diminuição do nível da formação brasileira foi um dos limites do pioneiro no uso do método marxista na historiografia brasileira. Este limite foi bem percebido por Antônio Torres Montenegro em “Abolição”. Outro restringimento, decorrente do seu vanguardismo teórico, foi mesclar a lógica das ciências exatas com a lógica marxista, para ele bastante próxima do construtivismo de Piaget, e contrariando José D’Assunção Barros. Em um dos seus escritos sobre a teoria e o método de Marx, chamado “Teoria marxista do conhecimento e método dialético materialista”, Caio Prado Jr. desta maneira explica como Marx teria elaborado a sua “economia política”:

É nisto que essencialmente consiste a análise ou operação de analisar. A saber, repetindo, totalizar elementos num sistema integrado de relações onde esses elementos, e por isso mesmo que compõem um sistema integrado, se determinam todos eles mutuamente e em função do todo que integram para alcançar esse relacionamento generalizado e integrado em um sistema único de conjunto haverá que descobrir relações ainda não consideradas, elos faltantes com que se fará possível a integração visada. Será a “incógnita”, que no caso da operação algébrica da análise a que recorremos acima, se obterá afinal, uma vez formalizada a equação através de simples algoritmos predeterminados. E que nos casos ordinários da elaboração científica- que é o que temos aqui sob as vistas que foi o caso de Marx- dependerá da observação do material pesquisado. (p. 50-51)

Mais adiante a lógica matemática como explicativa e essencial na teoria e no método de Marx foi ressaltada novamente:

É primeiramente a resposta a uma indagação que Marx busca; a solução de um problema. E para isto realiza aquilo que essencialmente coincide com o equacionamento matemático que propusemos acima como método de análise. (p. 54)

Através de um marxismo enviesado, Caio Prado Jr. buscou no sentido da colonização a formação do Brasil contemporâneo. A questão racial tornou-se para ele minúcia secundária para a compreensão do nosso essencial: a historicidade de nossa base material que determinou as classes sociais em luta, como a dos trabalhadores negros escravizados. Eles formaram a maioria da grande massa que trabalhava, produzia, era explorada e oprimida pelos proprietários, conforme “Evolução política do Brasil”. A evolução econômica da América portuguesa mudava as percepções e conformava as agitações políticas na Colônia. O estágio do progresso econômico motivava e restringia os interesses das classes que participavam das revoltas populares, uma delas a da Independência: uma revolução apenas política devido a impossibilidade de uma visão de conjunto dos problemas nacionais pela classe dominante.

Livro oculta idéias importantes de Caio Prado júnior

Feitas estas considerações sobre o uso do método de Marx por Caio Prado Jr., que restringem e delimitam o tratamento dado pelo autor à questão racial brasileira, restam desconfianças quanto as simplificações feitas por Montenegro e o que as motivaram. Outras citações que poderiam ter sido feitas suscitariam uma nova conclusão. Quanto a quantidade de africanos na formação étnica do Brasil: “A contribuição que traz é considerável, e certamente, muito superior à do índio”; bem como: “A notável participação do elemento negro na população brasileira se exprime por números elevados”. Outras reflexões estão presentes no livro “Formação do Brasil contemporâneo” sobre a relação entre a classificação étnica do indivíduo e a sua posição social, os preconceitos arraigados contra o negro, a presença de sangue negro disseminado no Brasil Colônia através da mestiçagem. E o “baixo nível”, o “primitivismo”, seriam substituídos por “superior”, “notável” e “considerável”.

Mas Montenegro retirou somente três linhas sem maiores explicações, como se quisesse adulterar o sentido original para confirmar idéias já formadas de antemão. Embora desta desconfiança, somente exista subjetividade. O que há de objetivo, neste caso, para não repetir o erro cometido em “Abolição” por Antônio Torres Montenegro acerca de Caio Prado Jr., será fixar a qualquer preço, como tarefas: a inicial será, estudar. A próxima, estudar. E, depois, estudar. Para comprovar que o entendimento sobre este intérprete do Brasil não deveria ser reduzido ao academicismo e as suas práticas de negarem as idéias de Caio Prado Jr., afirmando apenas as palavras ou nomes por ele usados.


Referências

BARROS, José D’Assunção. Teoria da História. Volume 1. Princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.

MONTENEGRO, Antônio Torres. Abolição. São Paulo, Ática, 1988.

PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no Jornal de Viamão.

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