Nos debates sobre a nossa chã como o saber histórico se desenvolve por meio de contradições.

Uma forma motivadora de entender a História da América é, certamente, através da leitura textos de debate, aonde são confrontadas ideias sobre os mais variados assuntos. “Crítica à Revolução Brasileira de Caio Prado júnior” é o nome de um texto escrito no México em 1967 por Ruy Mauro Marini. Ele criticou a ausência da pequena burguesia, do socialismo e das contradições entre capital e trabalho na clássica obra de Caio Prado. As frases muitas vezes poderão soar ácidas ao leitor, como quando o representante da Teoria Marxista da Dependência afirmou que o historiador paulista “não considera em nenhum momento [...] a própria natureza do desenvolvimento capitalista brasileiro”(2012, p. 105). Não são apenas comentários negativos, nas apenas seis páginas, pois também há apontamentos sobre quais são as melhores páginas do livro. Sem ataques pessoais, mas focado, principalmente, nos vazios presentes na obra. Marini transformou o historiador considerado erroneamente como o pioneiro no uso do materialismo histórico para a interpretação do Brasil em um intelectual que se aproxima do historicismo, que se perdia no particular, sem fazer relações com o geral, nem com a América Latina, ou com o imperialismo estadunidense.

Em 1997, no Perú, Luis Vitale palestrou sobre a vigência e as limitações de José Carlos Mariátegui sobre os povos originários. Nesta fala, reconhecia que o socialista mexicano era um herege, ao incorporar em seu pensamento teorias díspares, de intelectuais como Marx, Bergston, Sorel e Nietzsche. Apesar de reconhecer a relação etnia-classe, nos escritos do autor de “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana” não conteriam um objetivo estratégico para as comunidades indígenas. O socialismo peruano deveria ser alcançado por meio da vanguarda proletária em um partido único, que se solidarizaria com as reivindicações indígenas. O profissional de imprensa e autodidata teria se perdido ao definir a identidade peruana, e confundido terra com território. Afirmou Vitale: “Mariátegui intento uma ruptura com el eurocentrismo, pero no alcanzó a romper com la concepción eurocêntrica del Estado (1997, p. 18). Logo, Estado-nação foi a idéia defendida por Mariátegui, que para Vitale, foi a instituição herdada dos invasores europeus, e aonde existem diversas nacionalidades oprimidas. Os ideólogos dos países dominantes inventaram o termo Estado-nação, que permitiu subjugar as nacionalidades originais com a formação do Estado. O Estado, que foi princípio absoluto de Hegel, foi gerado pela violência armada, sendo magnificado pelas esquerdas. Para Luis Vitale, também sendo um produto histórico, e assim como apareceu, também vai desaparecer quando não existirem mais classes sociais.

Este rico debate denuncia que Mariátegui, apesar de sua importância, também esteve limitado ideologicamente. Não vislumbrou toda a complexidade da Questão Nacional. Desprezou o papel dos movimentos sociais, sem integrar eles em uma teoria de mudança social revolucionária. Luis Vitale em sua crítica não desmereceu Mariátegui, pelo contrário, finalizou a sua fala alertando que toda a América Latina está em dívida com o amauta, como num brado. Vimos que José Carlos Mariátegui, como Caio Prado Júnior, foram alvos destas duas polêmicas, ao focarem a questão agrária da América. Foram dois “Intérpretes da Nossa América”, portanto. Eles interpretavam a realidade que visavam transformar em suas raízes. Como também fez Octávio Brandão, desde Alagoas.

Octávio Brandão
O farmacêutico lutava tanto pela reforma agrária que esteve marcado para morrer, e por isso, clandestinamente foi para a capital da República Velha. Anarquista, migrou para o comunismo por influência de Astrojildo Pereira. Polêmico, julgava o PCB um colaborador do assassinato de Olga Benário pela Gestapo. Antes de Caio Prado Júnior publicar em 1933 “Evolução política do Brasil. Ensaio de interpretação materialista da história do Brasil”, Brandão lançou “Agrarismo e industrialismo. Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil”. A pauta principal foi o Movimento Tenentista, foi lançado sob um falso nome e com uma indicação também falsa de lugar, Buenos Aires. O livro foi muito lido, e influenciou o início do PCB. Para o autor, a autocrítica era um dever dele com o povo brasileiro, e ela veio, e foi severa. Falhas diversas, e muitos desvios mecanicistas na obra clássica, foram apontados em um artigo de sua autoria em 1957. Leandro Konder zombou, o chamando de “um Lenin que não deu certo.” (2014, p. 21).

De erros em erros, de Octavio Brandão, a Caio Prado Júnior, até Luis Vitale e Ruy Mauro Marini, a interpretação marxista da nossa História sofreu incontestáveis saltos de qualidade. Devido a influência em profundidade que o materialismo histórico, o fundamento científico do marxismo, possui na História, é hoje impossível dizer que agora algum historiador é um idealista em absoluto. Esta ciência que está em todas as outras, devido a sua forte conotação de terra, se desenvolve, e arrisco propor, que linear progressivamente.



Referências:

PERICÁS, Luiz Bernardo. SECCO, Lincoln (ORGS.). Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014.
STEDILE, João Pedro (ORG.). A questão agrária no Brasil. O debate na esquerda- 1960- 1980. São Paulo: Expressão Popular, 2012. Disponível em: http://marxismo21.org/wp-content/uploads/2014/10/A-Quest%C3%A3o-Agr%C3%A1ria-no-Brasil-2.pdf. Acesso em: 25/07/2016.
VITALE, Luis. Vigencia y limitaciones de Mariategui acerca de los pueblos originários. Santiago, 1997. ( Ponencia al Simposio Internacional Amauta y su época. Lima, 3 al 6 septiembre 1997). Disponível em: http://mazinger.sisib.uchile.cl/repositorio/lb/filosofia_y_humanidades/vitale/obras/sys/epo/b.pdf.Acesso  em 25/07/2016.

Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no Jornal de Viamão.

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