NICARÁGUA: um homem, uma localidade ou apenas um curioso mal entendido?

Está aí um exemplo de como as pessoas precisam de histórias e não necessariamente de heróis para inspirá-las. Por mais que se ache o contrário, as referências de vida que buscamos, podem vir de vários locais que não de um rosto que ostente um “grandioso” nome. 

Como um acontecimento que facilmente é lembrado sem para isso precisarmos de um autor definido. Como a Revolução Francesa, cuja menção dispensa o comentar de suas inúmeras lideranças envolvidas nela. Ou um animal (como a águia que facilmente representa os EUA), tanto como uma árvore (podendo aí citar o nosso pau-brasil) ou até mesmo um herói. Seja ele real ou não. Uma vez que é a história em si é o que vale e não a quem se atribui ela.

De modo que o exemplo de que quero falar, trata de um homem que pode não ter sido um homem. Nem uma mulher. Porque pode ele nunca ter existido. Isso se não foram as adulterações dos fatos, feitas ao longo do tempo pela tradição oral que o condenaram a esta eterna dúvida.


Nicarao 

Ainda que as muitas versões sobre este vulto não tiram o real mérito de sua história. Ter impressionando tanto a posteridade a ponto de ter legado o seu nome para identificar, hoje, a todo um povo. O que, apesar das incertezas, não é pouca coisa.

Raros homens tiveram o imenso privilégio de passar o seu nome denominar a todo um país. Para nós, sul-americanos, talvez o caso mais conhecido seja o do líder militar venezuelano Simão Bolívar. O qual facilmente se percebe ter sido a origem do nome Bolívia, nação que ele ajudou a libertar da dominação colonial espanhola.

Contudo, quantos aqui sabem que um líder indígena, talvez, tenha conseguido façanha semelhante? Ou pelo menos, é a história mais contada sobre a origem do nome deste pequeno país da América Central: a Nicarágua.

Isso na versão de historiadores, como é o caso dos argentinos Enrique de Gandia e Ricardo Levene (em 1947), em que este Nicarágua (também chamado Nicarao) teria sido um rei (ou cacique) que em 1522, acolheu o explorador espanhol Gil González Dávila. 

Dando-lhe vários presentes e tendo se convertido ao cristianismo juntamente com todos os seus nove mil súditos. Colaboração tamanha que teria levado a chamarem a cidade, fundada no ano seguinte, de Leão de Nicarágua, estendo o nome desta a todo o território. 

Nesta visão dos fatos, assim, Nicarágua seria o líder dos Niquiranos, uma população Nahua (da mesma família do poderoso Império asteca) que ali se estabeleceu no século XII. Originários do centro do México, território que o abandonaram por volta do ano 800 d.C.

Sendo este Nicarao reconhecido como o mais poderoso governante desta região do Pacífico (Nicarágua e Costa Rica). Dominando desde o istmo de Rivas (Nicarágua) junto ao lago Nicarágua até a atual localidade de Guanacaste (na Costa Rica). Ou é o que muitos acreditam.

Representação de Nicarao numa nota de cinco Córdobas, moeda do país.

Mas, por outro lado, também ocorre que esse personagem que tanto encanta o imaginário da cultura nicaraguense (como pode se ver na ilustração acima), talvez não passe de uma lenda. Uma vez que é possível que Nicarágua em vez do nome de um cacique, seria apenas uma localidade indígena ao lado de um grande lago chamado Cocibolca (Lago Nicarágua hoje).

Nesse caso, o nome veria do idioma Nahuatl: “Aqui pela água” (Nic-Atl nauac). Quem pode ter certeza? Uma vez que também há outras versões que tornam a polêmica ainda mais interessante. Como a de que o nome Nicarágua teria vindo de uma advertência; “anahuac nic” (“aqui o Anahuac” ou “a Anahuac a partir daqui”).

Ou seja, os espanhóis teriam sido intimados com essa frase pelos nativos que os viam como aliados das populações mais ao norte, portanto, como inimigos seus. Ao passo que estes outros não teriam entendido o recado. Crendo que Nicarágua seria o nome do líder dessa gente.

Ainda que a tradição popular que se perpetuou não seja de todo incoerente, por mais que ela, possivelmente, nunca tenha como ser provada. Pois é fato que os espanhóis deram os nomes de certos territórios se usando da referência a chefes locais, porque era mais fácil a gravar os resultados.

Mas, por outro lado, só para apimentar um pouco mais essa controvérsia, não há como negar que esse relato se faz um tanto romântico. Visto que Nicarao, rapidamente, de modo muito simples, renuncia às suas crenças, ao que parece, meramente para cativar a amizade com os espanhóis e nada mais. Chegando a influenciar outro líder importante, Diriangén, que igualmente aceitara termo semelhante. 

Uma fábula sobre superioridade da fé cristã em relação às outras crenças? Ou uma história que esconderia outros fatos apagados da memória, pela ação do tempo? Quiçá, quem sabe, apenas o mito de um herói ao gosto do povo que o exalta: destacando sua fé cristã e a sua bravura, como veremos agora.

Dado que esta versão que crê no homem Nicarágua ter existido também contém um consolo aos muitos descendentes destes primeiros indígenas do país. De um passado que, real ou não, é um elemento de afirmação de que a este povo de que não ostenta somente um passado de vítimas a serem objeto de dó.

Uma vez que, neste relato, não muito tempo depois, a relação amistosa se desfez e os índios mostram a sua força. Ao criarem uma ardente resistência à intromissão espanhola em seus assuntos. A qual ele teria posto em xeque, por um longo período, o controle destes arrogantes invasores. 

O que pode, de fato, ser bem possível, visto que o controle europeu na América nunca foi de todo absoluto sobre as populações nativas que continuavam majoritárias.

Portanto, em suma: o célebre Nicarágua mesmo, quase certo de pertencer ao campo das lendas (seja em parte ou totalmente), não deixa de ser fazer um interessante elemento de afirmação da identidade nicaraguense. Da junção dos elementos indígena e espanhol; que bem ou mal; foi o elemento que originou a maior parte das nações latino-americanas. 

Assim como os relatos desta suposta riqueza de Nicarao (tendo ele dado a Gil Dávila 18.500 pesos em ouro, além de pérolas) e da sua resistência ao avanço de seus conquistadores quase aniquilados por ele. Feitos em um elemento de orgulho para estas pessoas serem o povo que são.

Não diferente de um Rômulo a que se atribui o nome e a glória de Roma. O país que construiu muito de seu espírito guerreiro com base neste seu suposto legado. Tanto quanto se tornou uma das nações mais respeitadas de seu tempo, em função de toda a sua força forjada em tal mito.

Portanto, uma das poucas referências, tão amplamente destacadas, ao passado pré-colombiano deste país, a república da Nicarágua. Uma terra tão duramente castigada por adversidades inúmeras, mas ainda assim, disposto a proclamar perante todos que “sim, nós temos um passado de que se ufanar”. 

Reflexão esta que espero fazer ver como muito mais do que um homem, uma história meramente é o que basta para dizer a um povo o que ele é. Como esta que em não é o homem Nicarágua que mais importa. Não mesmo.

Pois são as histórias de bravura, espírito acolhedor, amplas riquezas e vitórias, como esta, que poderiam ter qualquer outro protagonista, que fazem um povo exaltar à suas origens e seu amor próprio em razão disso. Um passado que pode ser ensinado a ser repetido, ao invés de apenas viver as suas supostas lembranças, há muito já passadas.


Áudio e Vídeo



Sobre o Autor:
LUIS MARCELO SANTOS: é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.

Um comentário:

  1. Ao ler este interessante artigo, reparei que ele estabelece um diálogo efetivo com outro, sobre a formação da autoimagem brasileira. Observe:

    "Toda sociedade, comunidade, tribo ou nação têm uma origem, um marco zero da autoimagem. A isto se dá o nome de mito fundador, cujas características estão intrinsecamente ligadas à memória histórica de um povo.

    Roma, por exemplo, tinha seu mito fundador encarnado por Remo e Rômulo; os EUA o têm na figura dos Peregrinos e dos Desbravadores (Self-made-man); o estado de São Paulo tem o seu nos Bandeirantes.

    Os mitos fundadores não são obra do acaso histórico, mas sim uma escolha da memória coletiva para ser a pedra fundamental da sociedade que se constrói.

    Os mitos fundadores não são obrigatoriamente perfeitos, não se referem a condutas irretocáveis e nem mesmo são sempre moralmente louváveis. Contudo, os mitos fundadores estão diretamente ligados à identidade do povo que neles se reconhece e marcam as suas virtudes, os vícios, a ética, a estética, a vida.

    Ao escolher um mito fundador a sociedade escolhe reforçar um determinado conjunto de traços, escolhe lembrar esses traços e esquecer outros".

    A quem interessar, a íntegra está aqui:

    http://wp.me/p4alqY-fl

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