BARATA E A SOCIEDADE QUE O PROTAGONIZOU: reflexões sobre contextos ignorados

Uma das funções da história é ensinar ou reforçar valores. Para tanto procuramos heróis que melhor se enquadrem nos modelos que queremos propagar. Porém, muitas vezes, tais escolhas podem ir além de, meramente, ajudarem a exaltar ideologias. Como é o caso do patrono deste grupo de estudos, Cipriano Barata (1762-1838). 

Escolhido não só pelo seu vasto histórico que lhe valeu a alcunha de “revolucionário de todas as revoluções”. Como também por melhor ter se enquadrado na nossa proposta de não legitimar heróis, mas sim problematizar temas de estudo. Como já havia sido explicado no texto “Porque Cipriano Barata?” de 07 de abril de 2014. Ou seja, mais do que exaltar, compreender. Criar subsídios à reflexão.

Por isso esta análise sobre a sociedade que protagonizou a muitos dos eventos em que ele tomou parte. Tais como a “Conjuração Baiana” (1798), a “Revolução Pernambucana” (1817), sua passagem como parlamentar por duas vezes (1821 e 1823) e a “Confederação do Equador” (1824). Além dos mais de 13 anos de intensa atividade jornalística. Fatos que valem a pena ser vistos não somente pela ótica romântica dos heróis derrotados, mas obstinados. Vencidos, mas não esquecidos.

Uma vez que a trajetória de vultos como o deste médico e jornalista baiano também nos é uma oportunidade de querer refletir o que os livros de história, não raro, ignoram: por que a maioria destes movimentos fracassara? Será que os grupos contrários a eles eram assim tão poderosos? Pode o sucesso, destas mobilizações, ter ido inviabilizado pela própria história?

Retrato de Cipriano Barata, pintado a óleo sobre tela em 2001, pelo artista baiano Henrique Passos,

Questões que valem a pena ser levantadas se nós queremos, realmente, a transformação de nosso mundo em algo do melhor do que o é agora. Numa sociedade mais justa, que seja possível não somente em nossos sonhos. O que nos exige a coragem de querer descobrir e admitir os erros e acertos cometidos por estes idealistas. E disso tentar aprender sobre o que insistir ou rever.

Tarefa esta que não pode ser realizada em poucas páginas de um texto. Requerendo, para tanto, um demorado analisar de todo o contexto que lhes cercava. De modo que nos ateremos apenas a observar alguns aspectos deste Brasil que Barata presenciou. Uma sociedade em boa parte condicionada a ser passiva. Ensinada a esperar e não a agir. Uma vez que de cada três brasileiros, de acordo com Laurentino Gomes (na obra “1822”), dois eram escravos, negros forros, índios ou mestiços. 

Formando uma massa ignorante onde apenas uma em cada dez pessoas sabia ler e escrever. Onde mesmo até os mais ricos, comumente se faziam tão ignorantes como os seus subordinados. O que facilitava as constantes rivalidades de grupos locais, apegados a necessidades mesquinhas sem grande visão de futuro. 

Um exemplo disso se pode ver com a Revolução Pernambucana de 1817. Ao vermos que seu fracasso em boa parte de se deveu a esta desconfiança das demais províncias nordestinas para com estes separatistas. Podendo, como exemplo, destacar a prisão do emissário Abreu e Lima (também chamado de Padre Roma) quando tentava convencer as lideranças baianas a apoiarem esta insurreição dos pernambucanos. 

Assim como a omissão pura e simples de lideranças de discurso semelhante ao destes revolucionários, como o jornalista Hipólito da Costa. Por justamente não confiarem no sucesso deste projeto político. Vendo a ele como inviável tal como muitos viram a todos os planos de ruptura com o atual modelo sócio econômico em que então viviam. 

Um sistema sem grandes expectativas, mas previsível. Motivo pelo qual, muitos receavam quaisquer propostas de uma mudança muito radical. Sendo que o movimento seguinte, o de 1824, sentiu seu maior golpe, justamente por isso. Não tanto pela repressão governamental, quanto pelas deserções dos que se assustam com a proposta de seus líderes em abolir a escravidão. 

Aspectos que podemos resumir em só termo: atraso cultural. Um obstáculo que só poderia ser vencido atraindo a confiança daqueles que mais poderiam ganhar com a mudança. Processo a ser forjado somente por meio de um gradual aprendizado oferecido a esta massa (incluindo povo e elites). Abrindo seus horizontes para novas perspectivas. 

Mas quem promoveria este esclarecimento? Um governo igualmente estúpido como o que nos regia? Uma vez que Portugal, neste mesmo contexto se fazia uma das nações mais atrasadas da Europa. Esperar que as elites locais demais acomodadas se decidissem mudar por si só? 

Ou crer ingenuamente que poderiam, uma vez tomando o poder, impor sua visão a todo um povo? Como tantas ditaduras ao longo da história da América Latina tentaram fazer isso: Jacques Dessalines (Haiti), Andrés de Santa Cruz (Peru e Bolívia), José Antônio Paez (Venezuela) dentre muitos outros. 

Lista em que mesmo o Libertador das Américas, Simón Bolívar se encontra. De homens que acreditavam no que teriam que fazer e por isso não se intimidaram em determinar de modo autoritário as suas reformas. Acontecendo que, entretanto, todos eles, de um modo ou de outro, fracassaram no que mais queriam ter mudado. 

E que também foi o caso de um contemporâneo de Cipriano Barata, o paulista José Bonifácio de Andrada. Quando o poderoso ministro do Império Brasileiro tentara abruptamente articular o fim da escravidão, deste modo caindo da noite para o dia. Logo, o mais duradouro projeto revolucionário não deveria visar primeiro a mudança de mentalidade que antecederia a mudança material? 

Debatendo, analisando, refletindo sobre como um processo diferente pode ser mais viável para a sua sociedade. Seja ele de cunho político, econômico ou social. Oferecendo a alternativa conforme igualmente se demonstra como a estrutura que está a se criticar pode estar obsoleta. Assim como criando brechas para que o ideal se faça realmente prática, mesmo que de modo tímido inicialmente. 

Talvez para tanto tendo mesmo que ceder. Quem sabe dialogando com quem não queiramos diálogo, porém, assim o requerendo. Certamente não o caminho ideal, mas que pode ser o mais real. Um caminho que não pode se confundir com um jogo de manutenção do poder para o próprio proveito de quem o alcança. Quando o ceder só pode visar o ganho coletivo. Ou será certo nos apegarmos unicamente ao ponto de vista radical, nunca ceder, nunca recuar? 

É essa dúvida que provoco em busca de respostas. Respostas que não tremam diante de questionamentos que outros façam. Tentando justamente entender porque que todos os anseios que as revoluções sociais brasileiras deflagradas nos séculos XVIII e XIX não puderam se cumprir. Precisando então que outros movimentos conseguissem o que elas buscavam. Muitas vezes criticados, contudo, tendo trazido a mudança. Por mais que muitas expectativas até hoje são aguardadas acontecer. 

Tanto que somente 66 anos depois da nossa independência que a escravidão se acabará aqui. Sem o ter sido feito pela ação de um projeto radical. Tal qual somente a partir da década de 1930 que o Brasil começará a ser uma democracia até agora em desenvolvimento. Assim como unicamente às portas do século XXI que o analfabetismo deixaria de ser uma realidade tão gritante em nossa sociedade. 

Ao passo não temos ideia de quando se farão reformas, como no sentido da não mais sacrificar aos que realmente produzem para o bem de nosso país. Como é o caso dos pequenos produtores rurais. Ou nossa classe trabalhadora, como um todo, asfixiada por uma classe política parasita. Sobre a qual nos limitamos a falar mal dela, sem ousar propor mudar esta estrutura. Que, como se acha é um convite constantemente ao fisiologismo. Males que, inclusive, já eram denunciados por estes revolucionários. 

Contudo, creio que há muitos outros aspectos que podem ser interessantes desde já serem provocados. Nisso, porque não voltarmos à mesma Revolução de 1817? Onde podemos constatar o fato de que lideranças que aderiram a ela tiveram a oposição da população que a diziam querer defender. Como foi o caso do senhor de engenho André de Albuquerque Maranhão, no Rio Grande do Norte (a despeito de que hoje ele é visto como um herói, tendo até uma praça com seu nome na capital Natal).

André de Albuquerque Maranhão

Em dados casos unicamente pela ignorância das massas que achavam errado afrontar à autoridade do rei, do imperador ou outro líder ensinado como intocável. Já em outros, como Eric Hobsbawn em seu “A Era das Revoluções” expõe sobre o fracasso de movimentos semelhantes na Europa, por causa de uma desconfiança bem justificável. 

Nisso precisando que se entenda: no capítulo 6 deste seu livro, Hobsbawn cometa sobre o fato de que muitos revolucionários advinham da baixa nobreza decadente e de intelectuais. Elementos distantes da identificação que atraísse a estas massas para o sucesso de seus movimentos. Por razões diferentes. 

No primeiro caso quando as populações locais viam que, muitas vezes, eram os seus velhos exploradores os ditos defensores da mudança. Somente porque o atual jogo político já não lhes era mais conveniente. Nisso, podendo concluir que os mais oprimidos pela velha ordem, só a defendiam por verem à alternativa para ela como um mal maior. 

Uma vez que estes velhos poderosos locais tinham como se prevalecer muito mais do que as autoridades distantes destas pessoas. Por mais que concluir até que ponto este mesmo contexto se aplica à realidade do Brasil só possa ser possível numa análise voltada unicamente para este fim. Sim, um convite aos que queiram o desafio de ajudar a construir um entendimento mais amplo deste tema. 

Podendo, por ora, nos atermos agora aos intelectuais que insistiam no erro de projetos que não condiziam com a realidade que enfrentariam. Demais levados pela paixão ideológica que lhes impediam de ter um projeto político aplicável. Como foi o caso, no entender de Hobsbawn, de Giusseppe Mazzini (185-1872), precursor da unificação italiana. Um ponto que se faz interessante para se pensar sobre as ideologias cultivadas em universidades e na possibilidade de uma prática sem uma ideologia específica. 

Colocações que não se confundam com o jogo do poder para ter o poder e o manter. Como já o fizeram grandes promessas de grandes reformistas sobre os quais se justificam que eles não tiveram outra escolha. Crer que serve apenas para ofuscar a visão de muitos que não conseguem enxergar outra perspectiva, preferindo esta ilusão. 

Portanto, o que discuto é a viabilidade de mudanças que por vezes podem acabar adiadas por atritos oriundos de qualquer radicalismo ideológico. Sejam quais forem. Direcionamentos como os que tanto já dividiram movimentos entre os homens que queriam o mesmo, contudo, o enxergando obter por caminhos diferentes. 

Como quando por ocasião da primeira constituição do Brasil que era escrita em 1823. Em que a constante arena entre monarquistas liberais, absolutistas e republicanos gerou 18 meses de conflitos que deram o pretexto para que Dom Pedro I calasse a todos e ele mesmo impusesse sua própria constituição no ano seguinte. 

Logo, que conclusões nós podemos retirar de todos estes contextos ignorados? Certamente a de que tendemos a simplificar o passado e assim subestimar aos desafios do presente. De modo que a verdadeira revolução deve acontecer considerando não apenas o fim, como também o meio. Observar aos percursos que pode tomar e todas as possibilidades de consequências a quem possam atingir. 

Nisso gerando revoluções em seu verdadeiro sentido. Já que, ao consultarmos um dicionário, veremos que a revolução (do latim revolutio que significa revolver, revirar) é uma grande mudança que estoura. Não o processo violento em si, quando sim a transformação por ela criada. Logo, o resultado que para acontecer, precisa do vencer. 

Vencer o jogo bruto das relações de poder. Vencer os medos daqueles que queremos cativar. Vencer nossas limitações de pensamento. E o mais importante: vencer as tentações em não se corromper. Para isso sendo importante o vencer democrático. Não por voto ou apelos, mas a democracia em dar voz a todos, a todos permitir suas críticas e não se furtar às cobranças de que possa estar errando. 

Certamente, como “o revolucionário de todas as revoluções” também o fez. Espalhando também a sua revolução pelo exemplo de seus textos. Inclusive por meio dos inúmeros jornais “Sentinela da Liberdade” que nasceram a imitar não só ao nome do periódico por ele criado. 

Fervilhando pelo país, dispostos a continuar de onde um guerreiro cansado de 72 anos decidiu parar, quando em 1835 ele publicara a última edição seu jornal. Uma vez entendendo que a sua obra poderia continuar sem ele, encerrando uma trajetória de acertos e erros com a qual até hoje lhe ficamos em dívida. Em vista de que com ela ainda podemos muito aprender e vencer. Se de fato quisermos aprender e vencer.


Sobre o Autor:
LUIS MARCELO SANTOS: é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.

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