Ignácio Rangel: um profeta do neo liberalismo brasileiro

Ignácio Rangel (1914-1994) nasceu em São Luis, no Maranhão. Formado em Direito, e autodidata em História e Economia, é considerado um dos patronos da economia brasileira. Participou do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL). Na década de 1930 a carreira desse economista foi marcada por sua filiação ao Partido Comunista do Brasil (PCB), do qual foi se afastando na medida em que cresciam as divergências ideológicas entre ambos, sobretudo no que se refere à ideia defendida pelo partido de que a industrialização seria impossibilitada sem a realização de reforma agrária. Participou com 16 anos da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e da “intentona comunista” em 1935. Por conta das suas atividades revolucionárias, que o levou a organizar duzentos camponeses no interior do Maranhão para a luta pela reforma agrária, chegou a cumprir prisão no Rio de Janeiro (onde também estavam Graciliano Ramos, Carlos Marighella e outros comunistas).

Ignácio Rangel nos anos 1950 trabalhava na Assessoria Econômica de Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, aonde permaneceu até a sua aposentadoria. E ajudou a criar a Petrobrás, a Eletrobras e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Atuou no Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Em 1964 foi convidado para ocupar o Ministério da Fazenda pelo Presidente João Goulart, mas não aceitou. 

Socialista, formulou uma construção analítica própria, divergindo de todos em seu tempo. Rangel se integrou e depois dissidiu do ISEB, do CEPAL e do PCB. A sua principal invenção foi a teoria da dualidade básica do Brasil. A História do Brasil a partir do século XIX, de acordo com a sua teoria, foi a sucessão de três etapas de dualidade. Em cada uma etapa, a dualidade era composta por duas formações dominantes, uma no pólo interno da economia considerado estagnado (agricultura) e a outra no pólo externo, dinâmico (comércio, serviços, governo, indústrias, etc.), sempre em crises e cada pólo possuía uma parte interna com dinâmica própria e uma parte externa ligada ao pólo externo.

Ignácio Rangel

A primeira dualidade aconteceu entre 1808 e 1822, cujos pólos interno e externo eram, respectivamente, o escravismo e o capitalismo mercantil. Após a abolição do comércio de trabalhadores africanos, os pólos eram formados pelo latifúndio internamente feudal e pelo capitalismo mercantil internacional. Com a depressão econômica de 1929, ocorreu a terceira fase da dualidade brasileira, e os pólos eram o latifúndio feudal e o capitalismo industrial. A quarta dualidade ainda não tinha acontecido na época de Rangel.

Na década de 1950, Rangel fez pós-graduação na CEPAL, quando desenvolveu a teoria dualidade brasileira, publicada em 1957 sob o título “Dualidade Básica da Economia Brasileira”. A teoria da dualidade foi introduzida no Brasil a partir dos franceses Jacques Lambert e Roger Bastide. Lambert afirmou por exemplo que a economia dualista, ou a estrutura social dualista, não é uma característica peculiar à realidade brasileira, mas está presente em todos os países desigualmente desenvolvidos. A tese da dualidade de Rangel consistia na teoria da existência simultânea de dois modos de produção ao longo da História do Brasil. Em 1962, o economista passou a pensar na contrapartida política para a dinâmica da dualidade e a sua ideia central era que a super-estrutura política acompanhava as mudanças da infra-estrutura dual. Em cada etapa da dualidade havia duas classes dirigentes, uma em cada pólo, expressadas em pactos de poder, e em cada transformação dual surgiam novos elementos progressistas entre as classes dirigentes, que eram formadas por um sócio menor e um sócio maior. O Golpe de 1930, foi um ato homologatório do novo pacto de poder, que expulsava a classe comerciante da direção da política nacional e se estabelecia uma aliança, dessa vez, entre a classe latifundiária e a nova classe industrial. Com a Era Vargas se iniciava uma etapa decisiva da dualidade brasileira, que surgiu graças ao desenvolvimento brasileiro como um complemento das economias desenvolvidas. Com Vargas, começava a última fase da dualidade da economia brasileira, quando o capitalismo privado se convertia em um capitalismo de estado cujo o novo pacto de poder seria entre capitalistas e trabalhadores, estruturando a via brasileira para o socialismo.




Charge de Getúlio Vargas


No artigo “A história da dualidade brasileira” de 1981, Rangel mencionou os padrões que aconteceram nas transições entre uma dualidade e outra, que possuem a mesma lógica das leis dos movimentos planetários do sistema solar de Kepler. 


Rangel simplificava sua tese em “Dualidade da básica da economia brasileira” (1957), da seguinte maneira: “A economia brasileira [enquanto economia complementar à européia] se rege basicamente, em todos os níveis, por duas ordens de leis tendências que imperam respectivamente no campo das relações internas de produção e no das relações externas de produção [formações em constante conflito]”.


Rangel em seus debates enfatizava a necessidade da criação do sistema financeiro nacional, do desenvolvimento industrial, utilizava conceitos keynesianos (embora para responder a questões próprias do marxismo), e defendia que a estrutura agrária não oferecia obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. A própria dinâmica do processo de substituição das importações criava contínua expansão do mercado nacional para a produção doméstica, dispensando modificações na estrutura agrária, e a reforma agrária era politicamente inviável. A solução para a crise agrária viria de fora da agricultura, resultaria do desenvolvimento do capitalismo industrial. A reforma agrária, seria, portanto, um produto inevitável do desenvolvimento capitalista. O papel benéfico da inflação também era outra bandeira de Rangel. A análise da inflação ocupava lugar central nas suas reflexões. Ele a via como parte dos movimentos de reorganização do capital.

Enquanto marxista, Rangel tinha influências dos pensamentos de Lenin, Gramsci e Lukács. Ignorado, atualmente, pelas escolas de orientação neoliberal ou da economia neoclássica e posto no ostracismo por pesquisadores marxistas, é de se reconhecer que o socialista Ignácio Rangel foi um criativo e original analista do desenvolvimento capitalista no Brasil. Escreveu as obras: “A Dualidade Básica da Economia Brasileira”, “Introdução ao Desenvolvimento Econômico Brasileiro”, “Desenvolvimento e Projeto”, “Elementos de Economia do Projetamento”, “A Questão Agrária Brasileira”, “A Inflação Brasileira”, “Recursos Ociosos e Política Econômica”, “Ciclo, Tecnologia e Crescimento”, “Economia, Milagre e Anti-Milagre”, “Economia Brasileira Contemporânea”, “Do Ponto de Vista Nacional”. O que caracterizava sua escrita eram as poucas citações, apenas apresentava os resultados prontos das suas interpretações, sem indicar o desenvolvimento de seu raciocínio. 

Ignácio Rangel foi também um profeta e um pioneiro. Antecipou-se ao neo liberalismo. Profetizou o futuro da sua terra. Foi precursor da tendência que nos sequestrou. Diante de uma crise econômica, em 1978 afirmava que a solução era privatizar atividades do serviço público. 

Frases de Ignácio Rangel retiradas de “A história da dualidade brasileira” e “Dualidade básica da economia brasileira”: 

“A independência do Brasil foi um incidente da Grande Revolução Francesa.” 

“Daí resulta que o feudalismo surgido no Brasil a partir do Tratado de Tordesilhas, passou a ter, e não em caráter temporário, um conteúdo não feudal.” 

“O Brasil nascia, pois, como uma formação feudal, que associava, em união dialética, um lado feudal com outro pré-feudal.” 

“Nossa economia nasceu e se desenvolveu como complemento de uma economia heterogênea e sempre esteve sujeita às suas vicissitudes.” 

“Já observou alguém que o Brasil é um país no qual se pode estudar a história universal viajando do litoral para o interior.”



Referências:

PERICAS, Luiz Bernardo; SECCO, Lincoln Ferreira (orgs.). Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014.

RANGEL, Ignácio. Dualidade básica da economia brasileira (1957), In: Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 1º vol.


Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio comunitária A Voz do Morro. Colunista no Jornal de Viamão.

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