Insurgência pernambucana de 1817

Vale a pena conhecer a História de Pernambuco. Foi aonde aconteceu a luta contra a invasão holandesa no século XVII e aonde existiu uma República dos Negros, o maior movimento de resistência de trabalhadores na História do Brasil, os quilombos de Palmares. Foi a nossa Guerra de Arauco. Depois aconteceu a importante Guerra dos Mascates, e, na primeira metade do século XIX, houve cinco rebeliões sucessivas em nome da independência, da democracia liberal e, inclusive, do socialismo. Na segunda metade, expressivos movimentos abolicionistas e republicanos, assim como importantes lutas populares, no século XX, entre muitos outros eventos. 

Havia um histórico em Pernambuco de expulsão de governantes portugueses: em 1660, tudo começou com a extrusão de Jerônimo de Mendonça Furtado (cujo apelido era “Xumbregas”); depois, em 1710, no início da Guerra dos Mascates, foi a vez de Sebastião de Castro Caldas ser repelido; em 1817, Caetano Pinto Montenegro foi deposto pela Revolução de 1817; seguido de Luis do Rego, rechaçado em 1821; sem esquecermos que em 1688 Fernão Cabral foi morto no exercício do seu mandato, provavelmente envenenado. Pernambuco merece, por várias razões, ocupar um espaço maior na nossa História.

O “Pardo de Recife” foi o Dessalines brasileiro

Pedro da Silva Pedroso participou da Insurreição Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador de 1824. Foi um abolicionista radical, que tentou fazer do Brasil um país de negros e de mestiços. Logo no início do primeiro evento, na ocupação de Recife, assumiu o comando do Regimento de Artilharia, quando proclamou o começo do levante, que em poucos dias foi apoiado por Paraíba e Rio Grande do Norte. Quando o Governo Provisório foi instalado, Pedroso invadiu a sala aonde estavam os cinco governantes interinos, ameaçando de morte um deles, o advogado José Luis Mendonça, o forçando a retirar uma proposta de buscar acordo com o príncipe Dom João. E com muita luta, foi responsável por arrancar daquele governo o primeiro ato abolicionista decretado no Brasil, concedendo alforria aos negros escravizados que se alistassem no exército. Foi ele quem treinou a primeira tropa negra em Pernambuco. O mesmo Governo Provisório que proclamava em 15 de março de 1817 a “emancipação indistintiva dos homens de cor escravos” depois defendia a “inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade”, causando insatisfação a Pedroso e ao seu grupo. Dessa forma Pedroso foi caracterizado por Alfredo de Carvalho (2003):

Alto e bem-apessoado, tez cor de bronze, semblante enérgico e voluntarioso, ao qual o longo cavanhaque luzidio e bastos bigodes negros davam certo cunho marcial; altivo e vaidoso da sua reputação de bravura, Pedroso, habitualmente de maneiras ilhanas e afáveis, era, porém, sujeito a acessos duma cólera explosiva quando, inteiramente desvairado, se deixava impelir aos maiores desatinos (p. 257).
O “Pardo de Recife”, como ele mesmo se apelidou, considerava os governantes revolucionários frouxos, talvez tendo isso em vista que ele mesmo mandava fuzilar os desertores. Com diversos outros insurgentes foi preso e enviado para a Bahia. Em 1821 foi anistiado e poucos anos depois voltou a participar de rebeliões. Sérgio Buarque de Holanda considerava que o movimento era formado por representantes de duas posições, porque existia um choque entre esquerda e direita. Pedroso seria da ala mais radical, de extrema esquerda, o nosso Jean Jacques Dessalines brasileiro, que possuía tendências igualitárias. Desta forma o historiador paulista se referia ao revolucionário de 1817:
Ao aturdimento inicial segue-se, graças à capacidade de liderança do Capitão Pedro Pedroso, que se patenteou, ao lado do Tenente Antônio Henriques, um homem de ação, certa estabilidade no movimento, que embora urdido secretamente- falava-se estar a sua explosão fixada para a Páscoa, coincidentemente, em 1817, com o mês de abril- nascera de um acontecimento imprevisto. O Capitão Pedroso era um radical completo, o único capaz de medidas extremadas, e que se revelou integrado naquele mesmo espírito que inspirou a ditadura jacobina (p. 248).

Outro líder da Insurreição Pernambucana de 1817 foi o general Domingos Teutônio, que tentou implantar uma democracia representativa, indo ao patíbulo por ela. Quando Recife estava com seus portos bloqueados e prestes a ser retomada pelos monarquistas, o Governo Provisório o elegeu comandante único com plenos poderes. Teotônio foi um dos causadores da derrota republicana, ao fazer o exército revolucionário retomar o recrutamento forçado, algo que era praticado pela monarquia e alimentou o ódio dos pobres a Portugal. O entusiasmo popular foi diminuindo, e as vitórias portuguesas nos conflitos foram se tornando uma rotina. Na terceira semana de maio de 1817, muitas pessoas ligadas ao Governo Provisório defendiam a rendição. Mas Teutônio não concordava, e por isso enviou embaixadores para negociar com os portugueses. Diante da resposta de “submissão sem condições” pelo representante da metrópole, ameaçou degolar todos os portugueses que ainda viviam na cidade e incendiar Recife. Algo que ele mesmo sabia que era impossível realizar. Enquanto o enviado negociava, o general reuniu as tropas e partiu para a última batalha da Guerra de 1817. No dia 20 de maio a coluna que restava se dispersou e começou a repressão portuguesa. Ao todo foram 1600 mártires, entre mortos e feridos, mais de 800 foram degredados. O comerciante, membro do Governo Provisório, Domingos José Martins foi fuzilado na Bahia. Dezenas de republicanos foram executados, tendo suas cabeças e mãos cortadas e expostas em praça pública. Não foram apenas as pessoas perseguidas pela restauração, como também a memória. Apenas na República Velha a Revolução de 1817 voltou a ser conhecida. Mas ainda hoje é pouco lembrada.

O general Domingos Teutônio foi pioneiro em tentar implantar uma democracia através de uma ditadura

Poucas mulheres tiveram seus nomes registrados na História, por participarem da Rebelião de 1817. Maria Teodora da Costa, como “Noiva da Revolução”. Bárbara de Alencar, viúva de posses, futura avó de José de Alencar, liderou o levante no distrito de Crato, Ceará, sendo por isso detida e encarcerada na Bahia. A revolucionária Gertrudes Marques, cuja única informação é que esteve presa por 45 dias.

O ódio era geral e antigo de brasileiros contra os portugueses, manifestado desde o século XVIII. E em Pernambuco, havia uma repulsa enorme ao governador de Pernambuco, que era português: 
Em 1817 governava Pernambuco o Capitão General Caetano Pinto de Miranda Montenegro, uma das figuras mais discutidas da época. Uns o apontam como indolente, desidioso, fraco, avarento, de mentalidade estreita e tacanha, aferrado a idéias e formas retrógradas e principalmente de uma benevolência que tocava as raias do absurdo. [...] A verve popular tão pronta em dar alcunhas, dizia do governador o seguinte: que era Caetano no nome, Pinto na falta de coragem, Monte na altura e Negro nas ações (CAHU, 1951, p. 26).
Uma das causas da deposição do governador foi justamente a falta de execução das leis, que contribuía com a corrupção generalizada. Nesse contexto, o Miranda Montenegro foi deposto. Provavelmente a “verve popular” que o major Sylvio de Mello Cahu, autor de “A revolução nativista pernambucana de 1817” mencionava se referia a opinião dos proprietários e escravistas da região. Misturavam-se motivações conservadoras com razões progressistas. Os pernambucanos se queixavam do monopólio da mandioca, do encarecimento do custo de vida e dos pesados tributos. Havia descontentamento das tropas que não recebiam os seus soldos, insatisfação devido as lutas no Rio do Prata, o influxo das idéias da maçonaria, dos pastores, igrejas e padres. Havia uma presença muito grande de portugueses na administração pública, em funções que eram proibidas para os brasileiros ocuparem. A grande seca de 1816, aumentava a fome e a miséria. As diversas causas, algumas delas apontadas acima, nos mostram que a adjetivação para a “revolução” de “nativista” oculta as motivações econômicas e políticas do movimento.

O Governo Revolucionário de 1817 era colegiado e interino, formado pelo comerciante Domingos Martins, pelo padre João Ribeiro, pelo senhor de engenho Manoel Correia de Araújo, pelo advogado José Luiz Mendonça e pelo general Domingos Teotônio Jorge. O trabalho administrativo ficou ao cargo de três religiosos: padre Miguelino, frei Caneca e vigário Tenório. Devido a forte participação de religiosos, esse acontecimento também ficou conhecido como Revolução dos Padres. O Governo Provisório deu início a criação de exército, marinha, constituição, polícia, bandeira e diplomacia. A bandeira da Revolução originou a versão atual do estado de Pernambuco.

Logo que foi instalado em Recife, o Governo Provisório diminuiu os preços dos alimentos, já que os comerciantes portugueses especulavam os preços livremente, e eram também responsáveis pela fome. O novo governo adquiriu alimentos e os revendia a preço de custo. Estimulou os agricultores a produzirem alimentos além de apenas cana e algodão. Essa medida era urgente, pois a fome foi uma das causas da derrota do movimento, não somente uma das suas motivações. Em 11 de abril de 1817, uma esquadra portuguesa bloqueou o porto de Recife, desgastando o apoio popular, devido a fome que voltou. O Governo Provisório também extinguiu a distinção social, decretando a abolição do tratamento de “senhor” e “vosmecê” para pessoas consideradas importantes, e todos passaram a usar os termos “patriotas” e “vós” em suas relações. Os pobres não precisavam mais dar passagem quando cruzavam com pessoas ricas nas ruas. Os maracatus, “batuques de negro”, que eram proibidos, foram liberados, o que provocou uma comemoração popular. Outras providências dos novos governantes foi a criação da primeira polícia nacional, trazendo tranqüilidade a muitos moradores. O Governo Provisório abaixou alguns impostos e aboliu outros, libertou presos políticos, aumentou o salário de militares, organizou uma Assembleia Constituinte com representantes eleitos, separando os poderes. O catolicismo foi mantido como religião oficial, mas respeitando o livre exercício de todas as demais religiões. Foi reconhecida a liberdade de imprensa, mas como o movimento era heterogêneo, a escravidão negra foi mantida. Nas missas a aguardente substituiu o vinho e a hóstia passou a ser feita de mandioca no lugar de trigo, estes foram alguns dos elementos nativistas presentes em 1817.

Oliveira Lima, em seu clássico livro chamado “Formação histórica da nacionalidade brasileira”, afirmava que antes aconteceram outras tentativas de emancipação do Brasil, mas pela primeira vez, em 1817, estiveram presentes elementos populares. Os mestiços abandonaram sua tradicional submissão a realeza, e participaram deste movimento que foi inequivocamente nacionalista, mas que foi alvo de reação conservadora, devido a sua forma republicana. Essa Sublevação teria marcado profundamente o Brasil, quando a sua metrópole estava caduca. Ainda que Oliveira Lima tenha reconhecido a relevância da Insurreição de 1817, nessa obra a abordou muito pouco. Talvez por ter sido uma rebelião contra a opressão da monarquia de além mar, que ele admirava, pois a caracterizava como personificação da “autoridade sem a tirania, a força sem a violência, a moralidade sem a hipocrisia e a liberdade sem a indisciplina” (p. 129).

Já Sérgio Buarque de Holanda em sua “História geral da civilização brasileira”, deteve-se mais na insurgência nordestina, baseando-se um pouco em Oliveira Viana. Explicou que a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil e a Abertura dos Portos de 1808 trouxeram uma euforia, devido as novidades: escolas, uma imprensa régia, uma livraria, museu, o Jardim Botânico, um esboço de universidade, com um Instituto Acadêmico, dirigido por José Bonifácio. O que a Colônia não obtivera em três séculos, obteve em menos de uma década! Defendeu a importância do ecletismo na História Brasileira no século XIX, que criou um curioso liberalismo brasileiro colonial que era monarquista: o ecletismo foi a filosofia que mais profundas raízes criou na alma brasileira. A “Intentona” de 1817, como o autor de “Raízes do Brasil” a chamava, foi liberal, mas uma manifestação de republicanismo embalado pela independência dos Estados Unidos da América e pelas lutas na América Espanhola. Refletia também uma oposição entre os nascidos no Brasil e os nascidos em Portugal. Pelas suas classes dominantes, o nosso país era compelido a compor-se ao ritmo das idéias europeias do seu tempo, que logo mais foi envolvido pela confusão existente nas novas nações irrequietas das repúblicas sul americanas. A especificidade brasileira quanto o restante da América Latina encontra-se em ambos os autores (Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda). Outra síntese possível, foi demarcarem a Insurreição de 1817 como singular. Para Sérgio Buarque de Holanda, o ecletismo foi subvertido pelos insurgentes, justamente porque foi uma manifestação de republicanismo. 

A política era proibida e praticada às escondidas nas lojas maçônicas. O preparo das idéias para a Insurgência se realizava nos clubes e lojas secretos da maçonaria, aonde se debatia a emancipação do Brasil. A força política da maçonaria ameaçava o estado colonial ao ponto de Dom João expedir em 1818 um alvará criminalizando todas as sociedades secretas. Os clubes maçônicos divulgavam a Revolução Francesa. Mas o germe pernambucano da Insurgência foi a Conspiração dos Suassunas, que ficou no plano das idéias, sendo realizada em ações em 1817. A sociedade secreta defensora da inconfidência foi o Areópago de Itambé, fundado em 1796. A Conspiração dos Suassunas foi um precedente que resultou em diversos boatos, como o das mulheres pernambucanas que assassinariam os seus maridos portugueses. As facções dos “nativos” (brasileiros) e dos “reinóis” (portugueses) se enfrentavam com xingamentos e agressões físicas. O 6 de março de 1817 foi um golpe de estado consumado rapidamente. O Governo Provisório foi constituído seguindo o modelo francês de 1795. As medidas iniciais do novo governo foram inspiradas na Revolução Francesa, como a elaboração de uma Lei Orgânica, provavelmente de autoria de Frei Caneca, inspirada na “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”. Oliveira Lima considerou a Lei Orgânica, um esboço de Constituição. Havia idéias federalistas no movimento, João Ribeiro escreveu em uma carta aos “patriotas paraibanos”, que Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará deveriam formar uma única República. É notória, por conseguinte, a afluência de causas internas e externas para o advento da Insurreição de 1817.

Bandeira da Insurgência Pernambucana de 1817

A Insurgência de 1817 teve grande repercussão internacional na época e foi uma das influências para os maçons portugueses, que promoveram a Revolta do Porto em 1820. Em grande parte devido a uma inteligente propaganda do movimento de 1817 pelo seu militante Manuel Arruda Câmara, maçom que se correspondia com grandes chefes da maçonaria de Portugal. Esse evento, em Portugal, foi decisivo para a Independência do Brasil em 1822. Remanescentes de 1817 protagonizaram outras rebeliões. Essas reflexões servem para sugerir que os insurgentes foram também um modelo para agitações políticas posteriores, dentro e fora do Brasil.

A Insurgência Pernambucana de 1817 teve um caráter de acontecimento fundador do Brasil no cenário internacional e foi fundamental para o processo da independência, no âmbito da história nacional. Qual o espaço que este acontecimento deveria ter dentro da História do Brasil, se as repercussões internacionais de sua eclosão significaram o início da percepção do Brasil como entidade nacional a se separar de Portugal? De 6 de março de 1817 até 20 de maio do mesmo ano, durante setenta e cinco dias, o Brasil foi palco de uma guerra de libertação. A ausência de reverberação internacional de outros acontecimentos anteriores a 1817 atestam a pertinência de valorizar ainda mais esse fato histórico, ainda olvidado em nossa historiografia e em nossa memória nacional. Os proprietários dividiram-se entre apoiar o movimento e fazer a contra revolução, pois, como salientou Oliveira Lima, foi uma agitação política popular, trazendo o medo do Brasil se tornar outro Haiti, contribuindo para a opção monarquista de muitos que pugnaram pela independência do nosso país em 1822. Por outro lado, os aspectos revolucionários dessa Insurgência não encerram a sua complexidade e potencial riqueza analítica.

"A esquerdinha, em sua eterna ingenuidade, só admite uma revolução pronta e perfeita, como nunca sucedeu em parte alguma, dizem eles próprios. Enquanto não se alcança esta tola utopia, se opõem com horror a todo reformismo, preferindo entregar-se à direita como exóticos, mas fiéis serviçais da ordem". Tendo em vista o que Darcy Ribeiro disse em sua autobiografia “Confissões” e tudo o que foi mencionado até aqui, podemos considerar essa Insurgência, uma “revolução pernambucana” ocorrida em 1817? Sem temer a alcunha de “esquerdista”, propomos como hipótese que foi uma Insurgência protagonizada por um grupo diversificado de pessoas, que deveria ser mais pesquisada.




Referências:

CAHU, Major Sylvio de Mello. A Revolução Nativista Pernambucana de 1817. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1951.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Tomo II. O Brasil monárquico. Volume 3. O processo de emancipação. 9 ° ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
LIMA, Oliveira. Formação histórica da nacionalidade brasileira. 3 ° ed. Rio de Janeiro: Topbooks; São Paulo, Pubifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro)


Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no Jornal de Viamão.

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