As grandes cidades tem sido o espaço de criação e acumulação de capital. Isto se apresenta de várias formas: pela especulação imobiliária, pela isenção de tributos a grandes empresas multinacionais; espaços onde bens e serviços são criados e/ou negociados. Mas também são locais de trabalho, estudo e lazer. Enquanto alguns grupos enriquecem no espaço urbano, nossos trabalhadores e estudantes nem sempre tem condições dignas de se viver em uma cidade. Nesta conjuntura a moradia acabou se tornando uma demanda fundamental. Quantos trabalhadores tem sua casa própria ou tem condições de pagar, com seu salário, um aluguel e ainda vestir-se e alimentar seus filhos, ou buscar algum tipo de lazer?
A história da urbanização brasileira no século XX, está intimamente ligada aos processos de adequação de nossa economia à Divisão Internacional do Trabalho. “A partir da crise mundial de 1929, que alcançou o ciclo do café paulista e empurrou grandes contingentes de desempregados em direção às cidades, passando pelos efeitos da 2a Guerra Mundial no estímulo à produção fabril, até o final da década de 70 do século XX, caracterizada por grandes investimentos públicos em infra estrutura de transportes e comunicações, o Brasil foi marcado por um processo de concentração progressiva e acentuada da população em núcleos urbanos.”[1]
Ao mesmo tempo em que esta concentração acontecia, os governos hospedeiros dos grandes grupos capitalistas do nosso país, se preocuparam em transformar as cidades em espaços para os mais ricos – jogando os pobres para as periferias sem qualquer tipo de estrutura. Um caso muito peculiar é o da chamada Colônia Africana de Porto Alegre; quando negros que habitavam uma zona da cidade que estava no “caminho do desenvolvimento” foram obrigados a ir para áreas mais distantes do núcleo central da cidade, graças ao aumento progressivo do IPTU – que as pessoas que moravam ali não conseguiam pagar[2]. Hoje os bairros que compõe a antiga Colônia Africana são bairros de classe média alta. Para piorar, o cenário urbano é quase todo regido pela especulação imobiliária. Isto jogou, ao longo das décadas, milhares de famílias para as periferias das grandes cidades. Enquanto bairros inteiros crescem e se desenvolvem com planejamento, água encanada, eletricidade, escolas e acesso à saúde e lazer, outros crescem sem recurso ou planejamento algum. Morar é um direito humano que se desmancha no ar corrosivo do capital.
Para tentar “frear” esta avalanche de especulações imobiliárias, o governo sancionou a Lei 10257 de junho de 2001, conhecido como Estatuto da Cidade. No artigo 2º deste estatuto está posto que: “Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; [...][3]
Mesmo com as tentativas de “freio” à voracidade do capital, a sua gula continua insaciável. Basta ver que nos últimos anos houve um crescimento nas ocupações urbanas: movimentos de trabalhadores, estudantes e militantes sociais se organizaram para ocupar prédios abandonados; imóveis que não cumprem função social alguma. É o caso da ocupação Lanceiros Negros, no centro de Porto Alegre, organizada pelo Movimento de Luta dos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Para saber mais sobre a ocupação Lanceiros Negros veja o História em Pauta no 27:
https://www.youtube.com/watch?v=qYY_Q7TsEDA
Mas esta não é a única ocupação de Porto Alegre. Também é preciso destacar a ocupação Pandorga (assunto do História em Pauta no 44: https://www.youtube.com/watch?v=8sCZybFpErw). E o Assentamento 20 de Novembro, organizado pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) – para saber mais assista o História em Pauta no 40: https://www.youtube.com/watch?v=leSnaZ3FRRY.”
“Como se sabe, diferentemente do que ocorre nos demais setores produtivos, que formam preços pela agregação dos custos acrescidos da expectativa de remuneração do capital, a incorporação imobiliária determina seus preços pelo caminho inverso. Primeiro estabelece o valor máximo que o mercado se dispõe a pagar pelo imóvel a ser produzido para, só então, verificar em que custos pode incorrer. Qualquer economia na cadeia produtiva, ao invés de resultar em menor preço, propicia maior lucro. Mas, nesse caso, apesar das vantagens injustificadas, há capital investido, ainda que excessivamente remunerado. Pior que todas essas distorções é a formação de fortunas sem que o beneficiário tenha sequer que recorrer à chamada especulação imobiliária (no sentido da apropriação privada do esforço coletivo) ou aos fartos lucros da incorporação. Pois basta haver um acréscimo de área edificável, ou uma alteração do uso originalmente permitido, para que patrimônios particulares se elevem bruscamente. Nem o alargamento do direito de construir nem o novo uso autorizado precisam ser efetivamente utilizados para que se opere o milagre da multiplicação patrimonial, verdadeiro enriquecimento sem causa. Afinal, se não é capital nem trabalho, qual é o 'fator de produção' que realiza essa mágica? Chama-se outorga de direito. E quem outorga direito? O art. 1º da Constituição responde: 'Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.' Ora, a população municipal, titular do direito, deveria ser também beneficiária dele. Mas não é o que tem ocorrido nas cidades brasileiras, onde ainda predomina, com poucas exceções, a arcaica concepção individualista da propriedade.[4]”
Manifestação pela reforma urbana |
O mais próximo que se chegou a uma verdadeira reforma urbana no Brasil, foi o projeto das Reformas de Base do governo trabalhista de João Goulart, no início dos anos 1960. Contudo, o golpe abortou esta tentativa de reforma – até com taxações de aluguéis. Nos dias atuais, os movimentos que organizam as ocupações, e militantes que apoiam a causa, devem juntos, formular um programa comum, baseado ou não no Estatuto da Cidade e nas Reformas de Base, para pressionar os governos (que estão cada vez mais lacaios do neoliberalismo), partidos e políticos para a realização de uma efetiva reforma urbana, preparada para nosso tempo. É, sem dúvida, algo ousado, para muitos utópico e inviável, mas neste mundo cada vez mais desigual ou inventamos ou erramos. Ou lutamos, ou permaneceremos no limbo da história.
Notas:
1 BASSUL, José Roberto. Reforma Urbana e Estatuto da Cidade. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612002008400008
2 Para saber mais sobre a Colônia Africana assista o História em Pauta no 39: https://www.youtube.com/watch?v=24z9F4dTJzQ
3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm
4 BASSUL, José Roberto. Reforma Urbana e Estatuto da Cidade. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612002008400008
Fábio Melo: Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio A Voz do Morro. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário