Episódios de História Cruenta do Brasil durante o período regencial (1831-1840)

Câmara Cascudo possuía uma profunda amizade com Mário de Andrade, contribuindo para a elaboração do modernismo. Ademais, era músico, se interessava por História, estudos literários, etnografia, escrevia crônicas, ensaios, monografias, romances, poesias, memórias e livros de viagem. Era filho de um rico comerciante, que criou para ele um jornal, aonde começou a escrever, antes de publicar o seu primeiro livro quando contava vinte e três anos de idade. Enaltecia a originalidade, pesquisava principalmente o que era popular, como as superstições, o folclore, a cultura oral e as trovas. Seus argumentos políticos eram conservadores, apoiou o golpe de 1964, mas preferia o integralismo e a monarquia.

O autor de “Alma patrícia” era nordestino, como foi Gilberto Freyre. Ambos primaram pelo ecletismo metodológico, que o escritor pernambucano denominava “filosofia do fusionismo”. Desse modo, Freyre considerava o passado, o presente e o futuro um único tempo. O Brasil, a Espanha e Portugal uma única nação. Mas se Câmara Cascudo foi importante para o modernismo, Freyre foi essencial para o tropicalismo. Ambos foram “intérpretes do Brasil”, multidisciplinares, que estudavam particularmente o nordeste, e eram nostálgicos pela monarquia. Que monarquia foi essa que apaixonava alguns dos nossos principais pensadores? 

A História da monarquia brasileira vai até 1889. Um dos seus períodos mais agitados foi o regencial (1831-1840), antecedido pela Noite das Garrafadas. Mesmo após a independência do Brasil, portugueses continuavam com cargos no governo. D. Pedro I exercia um autoritarismo centralizador, embora negligente, parecia estar mais voltado as questões de Portugal, ainda mais depois do falecimento do rei D. João VI em 1826. Um dos principais adversários políticos do imperador D. Pedro I foi João batista Líbero Badaró, assassinado em 20 de novembro de 1831. Sua morte foi atribuída ao império português e o jornalista italiano tornou-se mártir dos liberais brasileiros exaltados, inspirando revoltas como o 13 de maio, quando iniciou a “Noite das garrafadas”. Durante mais de quatro dias, brasileiros lutaram contra portugueses em conflitos a céu aberto. Objetos diversos eram lançados entre os grupos rivais, entre pedras e garrafas. O episódio foi uma das causas para a abdicação de D. Pedro I ao trono do Brasil.


O historiador carioca José Honório Rodrigues, diferente de Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, propunha o desenvolvimento brasileiro por meio do enfrentamento em seu tempo do colonialismo interno, defendendo: “ O período colonial e sua sobrevivência determinam todo o subdesenvolvimento posterior.” Durante a monarquia, os governos brasileiros conciliavam pelo alto, a exemplo do período regencial, quando todas as nossas revoluções foram derrotadas. Para o autor de “Conciliação e reforma no Brasil: interpretação histórico-política”, os movimentos de contestação social durante a regência foram representações ora populares, ora das classes dominantes, como “a liberal de 1841, os Farrapos de 1835-1845” e tiveram como conseqüências concessões de caráter político, somente quando negociava com essas revoltas, do segundo tipo. A conciliação era sempre pelo alto. Todos os movimentos que discutiam o fim da escravidão foram eliminados violentamente.


Após a abdicação de D. Pedro I, o Brasil foi governado por quatro regências. A Regência Provisória Trina, a Regência Permanente Trina, a Regência Uma do Padre Feijó e a Regência Uma de Araújo Lima. Desde a primeira regência aconteceram revoltas. Entre 1931 e 1832 o Rio de Janeiro foi tomado por motins e levantes provocados por restauradores exaltados, reprimidos pela regência moderada, resultando na criação da Guarda Nacional. No dia 12 de junho aconteceu um levante no 26 ° Batalhão de Infantaria, dois dias depois no Batalhão da Polícia por libertação dos militares presos no levante anterior. Em 28 de novembro aconteceu um novo motim no Teatro Constitucional Fluminense. No mês seguinte com bombardeios, o Batalhão de Artilharia da Marinha ocupou o quartel na Ilha das Cobras. Em 3 de abril revoltaram-se guarnições das fortalezas de Villegaignom e Santa Cruz sob comando do major Miguel Frias. Em 17 do mesmo mês houve uma tentativa de golpe pelos caramurus ou restauradores, comandados por Augusto Hoiser, com participação de José Bonifácio.


As agitações também aconteceram no interior do Ceará, com levantes declarando nula a abdicação de D. Pedro I. O ardoroso restaurador, coronel Joaquim Pinto Madeira organizou um levante militar, sendo preso e executado em 1834. Em Pernambuco aconteceram os levantes com atos de indisciplina militar e manifestações subversivas à época, pois tinham como alvo os comerciantes portugueses, que levaram os nomes dos meses quando aconteceram: Setembrizada (1831), Novembrada (1831) e Abrilada (1832). Na Bahia tivemos a formação em fevereiro de 1832 de um governo provisório, que levou o nome de Federação dos Guanais, por força do nome do líder Bernardo Miguel Guanais Mineiro. Foi o resultado de agitações ocorridas em Salvador, durante os meses de abril, maio, agosto e outubro de 1831, pela deportação de portugueses. Com a Federação vencida, Guanais foi preso e enviado a Salvador, aonde foi encarcerado no forte do Mar. Um ano depois ainda conseguiu participar de outra revolta, chegando a bombardear a cidade. Os movimentos restauradores pararam de acontecer com a morte de D. Pedro I, em 1834.

Durante o decênio, compreendido entre 1835-1845, aconteceu a Guerra dos Farrapos, que iniciou com uma oposição política e desenvolveu uma revolta armada, unindo monarquistas e republicanos contra a centralização administrativa imperial. O movimento obteve vitórias militares, em parte devido as preocupações regenciais com levantes que ocorriam por praticamente todo o Brasil. Atingiu Santa Catarina, proclamando duas repúblicas escravistas durante o período imperial brasileiro. A principal data da Guerra Farrapa não foi 20 de setembro, mas 14 de novembro, quando aconteceu o Massacre de Porongos. Nos Anais do Arquivo Histórico encontra-se cópia integral das “instruções secretas” para desarmar e trair os combatentes negros:



Senhor Cel. Francisco Pedro de Abreu (…) Regule V.S. suas marchas de maneira que no dia 14, às duas horas da madrugada possa atacar as forças ao mando de Canabarro que estará neste dia no cerro dos Porongos (…) Suas marchas devem ser o mais ocultas que possível seja, inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter as suas observações sobre o lado oposto. No conflito, poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro. A relação justa é das pessoas a quem deve dar escapula, se por casualidade caírem prisioneiros. Não receie a infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro de seu general em chefe para entregar o cartuchame sob o pretexto de desconfiarem dele. Se Canabarro ou Lucas forem prisioneiros, deve dar-lhes escapula de maneira que ninguém possa nem levemente desconfiar, nem mesmo os outros que eles pedem que não sejam presos (…) 9 de novembro de 1844.Barão de Caxias” (AHRS. Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul-Volume 7. Porto Alegre, 1963. P.30/31).




Assista este documentário sobre o episódio “Massacre de Porongos”

Uma revolta que obteve maiores preocupações do Império aconteceu em 1835, em Salvador. Pouco antes houve dez revoltas na província, todas elas com participação de negros islamizados. Mas em 25 de janeiro centenas de negros armados com espadas, lanças, facas e pistolas atacaram a Câmara, pois no seu subsolo havia uma prisão, aonde estava uma liderança malê. O ataque a prisão não foi bem sucedido. Então os rebeldes saíram pelas ruas, pela manhã, aos gritos para acordar os negros escravizados buscando seu reforço. A Revolta dos Malês foi feita por trabalhadores escravizados urbanos e da lavoura, havia entre eles lavradores, remadores, domésticos, pedreiros, sapateiros, alfaiates, ferreiros, armeiros, barbeiros, vendedores ambulantes, carregadores de cadeiras, etc. Revoltas como a dos malês fez a insurreição de escravos constar nas leis do Império. Em agosto de 1835, o governo publicava o “Plano de segurança pública em qualquer ocasião de incêndio, tumulto ou insurreição de escravos.” A violência e a identidade negra e religiosa dessa revolta foram elementos comuns com o movimento haitiano vitorioso em 1804. Como o Império não conciliava com o povo, o fim da revolta penalizou os revoltosos de formas severas, como prisões simples ou com trabalho, açoites, mortes e deportação para a África. A expressão “malê”, vem de “imalê”, muçulmano em iorubá. A religiosidade foi um fator unificador dos revoltosos.

Durante cinco anos os governos regenciais enfrentaram a Revolução Social dos Cabanos, tão social que morreram cerca de 30.000 cabanos nos conflitos, segundo alguns autores chegando ao número de 100.000 mortos. Ao contrário da Guerra dos Farrapos, com o dobro de duração, e aproximadamente 10.000 morreram nas batalhas. O movimento ficou conhecido como “cabanagem” devido aos homens simples que participaram do evento, que viviam em casas simples, cobertas de palhas. Muitos usavam chapéus de palha, o que era comum entre o povo mais humilde da Amazônia. O movimento cabano teve diversas etapas, iniciando em Pernambuco em 1832, quando almejava a restauração do trono de D. Pedro I. Em 1835, com sua morte, os cabanos ocuparam Belém e colocaram na presidência o fazendeiro Félix Malcher, que traiu o movimento, sendo assassinado. O próximo presidente foi o lavrador Francisco Pedro Vinagre, sucedido por Eduardo Angelim. Nessa fase, o principal alvo foram os brancos, principalmente os portugueses mais abastados, devido ao ódio ao autoritarismo branco e português. Como os revolucionários pernambucanos de 1827, os cabanos se denominaram “patriotas”. De Belém, a “cabanagem” atravessou os rios amazônicos e o mar Atlântico, chegando as fronteiras do Brasil central, se aproximando do litoral norte e nordeste, gerando distúrbios na América Caribenha. Na fase de transição ocorrida dentro do movimento de 35, os cabanos publicaram nos meses entre setembro e outubro de 1834 o jornal “A sentinella maranhense na guarita do Pará”, que mostra a influência no movimento de Cipriano Barata e uma provavelmente forte componente teórica, olvidada por Caio Prado Júnior em “Evolução política do Brasil”. Certamente muitas idéias do movimento revolucionário são até hoje inalcançáveis, em parte devido a muitos documentos dos governos cabanos serem escritos na língua geral amazônica, o “nheengatu”. Populações inteiras de indígenas e quilombolas foram chamadas a luta armada contra o despotismo regencial carioca.

A Revolta da Cemiterada foi um movimento ocorrido no dia 25 de outubro de 1935, devido a uma lei que dava o monopólio por trinta anos dos enterros em Salvador, na Bahia, a uma empresa privada. Os enterros passariam a ser realizados no cemitério Campo Santo, não mais nas igrejas. As irmandades organizaram um protesto com cerca de quatro mil pessoas carregando cruzes e bandeiras remetendo a sua religiosidade. O presidente da província convocou uma reunião para rever a lei que foi revogada. Mesmo após a decisão do governo atendendo a vontade dos manifestantes, eles apedrejaram o escritório da companhia e destruíram o cemitério. Os policiais não puderam reprimir homens e mulheres que carregavam cruzes, e a “Cemiterada” só teve fim quando o Campo Santo foi destruído em 1836.


Um movimento alvo de muitas controvérsias foi a Sabinada ocorrida entre 1837 e 1838 na Bahia. O seu principal articulador foi o médico, professor e publicista mulato Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira. Os “sabinos” ocuparam a Câmara Municipal em 7 de novembro, proclamando a independência da província, criando um governo que durou mais de quatro meses. Como o movimento era dividido entre escravistas e abolicionistas, e entre republicanos e monarquistas, o novo governo mudou de idéia e decretou que a Bahia seria um estado independente até a maioridade do D. Pedro II. A polêmica entre os historiadores recaiu sobre a centralidade da parcela negra na Sabinada. Houve decreto com abolição da escravidão para os trabalhadores negros escravizados nascidos no Brasil, caso participassem das forças armadas do governo, e com proibição de saída dos negros escravizados de Salvador. Diversos negros foram incorporados no batalhão chamado “Libertos da Pátria”.



A Balaiada aconteceu de 1838 até 1841, no Piauí, no Maranhão e no Ceará. O conflito divida de um lado os grandes proprietários de terras e de gente, autoridades provinciais e comerciantes portugueses, do outro lado vaqueiros, artesãos, lavradores, negros escravizados, pequenos fazendeiros. O movimento ganhou o nome devido ao apelido de Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, um artesão de palha que foi um dos líderes mais importantes da revolta. Contra os balaios, a regência mobilizou tropas do Rio de Janeiro, Bahia, ceará, inúmeros mercenários, aventureiros e jagunços, ou seja, os balaios enfrentaram mais de seis mil soldados. A revolta pode ser considerada popular e radical, pois tinha nas suas fileiras pessoas como Cosme Bento das Chagas, conhecido como o Negro Cosme, o Imperador da Liberdade, entre outras alcunhas. A balaiada foi terminada quando o líder dos quilombolas foi derrotado, morto por enforcamento. Cearense, Negro Cosme defendia o fim da escravidão. Nasceu livre, aprendeu a ler e a escrever, por sobrevivência chegou a ser “homem do mato”. Sua primeira prisão foi em 1830, quando foi levado a São Luis. Cosme fugiu da cadeia em 1° de maio de 1833, depois de liderar um levante de presos, e passou a viver nos diversos quilombos que existiam na região de Itapecuru Mirim. Na Balaiada, Negro Cosme liderou aproximadamente três mil negros.


Representação de Negro Cosme

O período regencial brasileiro terminou em 1840, quando houve o golpe da maioridade, e D. Pedro II assumiu o trono do país com apenas 14 anos de idade. José Honório Rodrigues corretamente chamou o período de “história cruenta”, repleto de intolerância, ódio, intriga e intransigência do poder cristalizado como um “círculo de ferro”, jamais conciliando com o povo. Não há razões, portanto, para sentirmos saudades da monarquia brasileira, como fizeram Câmara Cascudo e Gilberto Freyre.


Referências:
MAIOR, Armando Souto. História do Brasil para o curso colegial. 4 ° ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
PERICAS, Luiz Bernardo; SECCO, Lincoln Ferreira (orgs.). Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014.


Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio comunitária A Voz do Morro. Colunista no Jornal de Viamão.

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