A SOLIDARIEDADE ENTRE DITOS OPOSTOS: poloneses e negros unidos na luta pela emancipação do Haiti.

O Haiti: um país do arquipélago das Antilhas (Caribe). Hoje bastante conhecido, entre nós, brasileiros, pelas tragédias que o envolveram (como guerra civil e terremoto, dentre outras). Assim como pelo grande número de refugiados desses horrores que têm vindo para cá. Por mais que, como em tantas outras ilhas caribenhas, também é fácil se lembrar deste pequeno país (com apenas 27.750 km de extensão, sendo menor que o estado de Alagoas) pela sua população majoritariamente negra.


Fruto é claro, de uma maior migração (forçada pelo tráfico humano na época) de negros, muito mais expressiva do que a de brancos. Somando-se a isso a miscigenação e por fim um detalhe bastante peculiar, restrito a este pedaço de ilha. Tanto quanto traumático, nos mostrando o perigo de apenas se enfatizar ressentimentos e dores ao relembrarmos o passado. 

Que por sinal, é um fato até que bem mencionado nos livros escolares: os negros perseguiram e massacraram parte significativa da população branca. Motivado esse acontecimento por uma ignorância não muito diferente do que a de quem explora alguém sob a alegação da sua aparência exterior o fazer merecedor deste destino. 

Mas que causou empolgação em, pelo menos, outros dois pontos da América, com a possibilidade de virem a imitar essa mesma “proeza”. Um deles foi o Brasil. Por mais que tal exemplo que alguns ansiavam seguir nunca tenha vindo a ser concretizar: tomar o poder e promoverem igual vingança. Violência, não importando a alegação para ela, ainda sim violência.

Por mais que ela seja, como nessa situação, fruto de outras violências pelas quais eles quiseram “dar o troco”. Contudo, vendo a história deste tão sofredor e amável povo, é igualmente óbvio que toda a ação gera uma reação proporcional a ela. Em suma: como em qualquer ciclo, quanto mais violência é feita, mais se incita a sua continuidade.

Pensar este que me convida a outro ponto igualmente interessante. E, por sinal, muito pouco conhecido. Que mostra como pode haver muito maior identificação (e afeição) das pessoas por outras razões que não meramente a cor da pele. E nem só o mesmo o modo de falar ou uma religiosidade comum.

Logo, sobre essa distinção entre cor branca ou negra, o trecho da história do Haiti que vou começar a contar, mostra como enfatizar essa divisão pode ser algo estúpido. Por mais que militantes da consciência negra possam se ofender com essa afirmação de que o racismo nem sempre foi algo tão brutal assim. E que para combater esse mal, talvez, rememorar menos dor, enxergar mais amor, pudesse ser uma alternativa melhor. 

Ingenuidade minha? Querer crer que a maior solidariedade (ou até o oposto, como a aversão) se pode fazer mais facilmente sem o ser pelas semelhanças no aspecto exterior que apresentamos. Com que base? Nos exemplos que nos mostram como a nossa identificação com alguém pode ir muito além da superficialidade física.

Pois senão, como explicar casos como o do líder negro, Jean Kina que lutou ao lado dos escravocratas brancos no Haiti? Um comandante extremamente competente, que não mediu esforços para a continuidade do status quo de submissão aos negros que havia antes da revolução. E por quê? Simples: o que mais além da cor de pele ele teria de identificação com os outros ditos seus “iguais”? 

Enquanto que, por outro, lado, lutando ao lado dos ingleses quando estes queriam submeter essa colônia da França, o negro Kina, não só alcançou elevadíssima posição (e remuneração). Como também ele conquistou respeito irrestrito deste exército e da sua monarquia inglesa. Diante disso, devemos julgá-lo como um traidor de sua “raça”? Se o fizermos isso, não estaríamos caindo num maniqueísmo já obsoleto? 

Entendem? Queremos ver o mundo dividido, por exemplo, entre preto e branco pode até parecer aceitável a intelectuais, mas isso até não contraria a exemplos como o que veremos a seguir? 

Esse exemplo de afeto e solidariedade sem envolver nenhuma ligação de cor ou língua que se justifique no senso comum. Uma pequena ou grande (dependendo do ponto de vista de vista de cada um) dívida de gratidão que esse bravo país, o Haiti, tem para com os poloneses (ou polacos como muitos preferem dizer, apesar de por vezes ser pejorativa) na sua libertação (concluída em 1804). 

Mas como? Caso tenha se perguntado sobre isso com surpresa, é perfeitamente compreensível. Os livros não costumam destacar que, realmente, poloneses lutaram na independência do Haiti. Sim! Isso mesmo! 

Só que para entender este ocorrido, nós vamos ter que primeiro conhecer um detalhe sobre o tão falado poder militar do famoso general Napoleão Bonaparte. Este, o todo-poderoso governante da França na época. Que conforme foi dominando a Europa, igualmente soube tirar proveito dos anseios de liberdade de povos oprimidos por outras nações que ele então submeteu. Como foi o caso dos poloneses. 

Esperançosos de que a França assim ajudaria a sua nação a se libertar da dominação promovida pela Prússia (país que depois formaria a Alemanha, ao anexar outros reinos), pela Rússia e pela Áustria. Por essa razão que legiões de poloneses engrossaram as gigantescas tropas de Napoleão. 

Tanto em suas guerras na Europa, como na repressão ao movimento de emancipação de Saint Domingue (que era o nome na época da colônia do Haiti). Quando, em 1802, 50 navios franceses foram mandados por ordem do imperador francês para destituir o líder negro Toussaint L’Ouverture que então comandava a ilha. 

Onde, ao todo, 5.200 poloneses se achavam nesse contingente. Sendo que apesar da desesperada esperança de libertarem a sua terra natal, ao chegarem nesse novo território, não muito tempo depois, a afetividade se faz mais forte do que esse interesse inicial.

Batalha em San Domingo, pintado por January Suchodolski representando uma luta entre as tropas polonesas ao serviço francês e os rebeldes do Haiti.

Quando aconteceu que boa parte, desses mesmos polacos, acabou se identificando bem mais com os rebeldes haitianos, que deveriam continuar a reprimir, do que com os franceses. 

E assim estes, não muito tempo depois, mudaram de lado, não aceitando mais lutar contra a liberdade de um povo que queria apenas isso: ser livre. Tanto quanto esses poloneses que por isso um dia se dispuseram a lutar em nome de Napoleão. 

Portanto, agora combatendo às forças do antigo comandante ao qual serviam, pagando o terrível preço de que 4.000 homens dessa infantaria polaca faleceram. Tanto pela guerra como pelas doenças tropicais. E mesmo após a derrota e prisão de Toussaint, esses poloneses não abandonaram sua nova causa. 

Continuando a guerra, agora ao lado de Jean Jacques Dessalines, sucessor deste líder anterior que morreria longe de seu país numa prisão da França. Acontecendo que após a humilhante derrota de Napoleão e o novo país (que agora passa a se chamar Haiti) poder se consolidar como uma nação enfim, senhora do seu próprio destino, dos poloneses sobreviventes, 200 deles não quiseram mais ir embora. 

E aos que acharem que essa ajuda foi irrelevante vejam isso: O agora imperador do Haiti, Jean Jacques Dessalines, promoveu na constituição do Haiti em 1805, dois artigos (de número 12 e 13) em que apenas os alemães (de uma pequena comunidade lá, após serem convidados a morar nesse país) e os poloneses se fizeram os únicos brancos com direito a terem qualquer propriedade. 

Além disso, quando ainda em 1804, houve o extermínio de (quase) todos os brancos da ilha, apenas esses alemães e poloneses (além de alguns profissionais como médicos e militares, como também mulheres casadas com negros) foram poupados. Disso, ficando vários resquícios dessa interação dos poloneses com os haitianos. 

Dos quais o mais expressivo, a cidade de Cazale, a 70 quilômetros da capital Porto Príncipe, onde a cultura polonesa é facilmente percebida em seus habitantes, há gerações já bastante miscigenadas. Um fato, logo, deveras interessante pelas discussões que oportuniza. 

A solidariedade dos brancos poloneses com os negros haitianos, mesmo os dois lados sendo tão diferentes. A afetividade entre ambas as cores (assim o dizendo para reforçar como essa divisão que, se querendo se ver além, não precisa querer dizer nada), apesar do rancor enorme de muitos ex-escravos pelos brancos. 

Marcando uma vasta herança cultural dos poloneses num país que o senso comum dá entender apenas influências negras e francesas. E que deste modo nos desperta curiosidade em saber o que mais pode haver por aprendermos e nos surpreendermos. 

E que, infelizmente, não temos espaço (não sem se tornar cansativo) para contar mais sobre essa passagem da história raramente mencionada nos livros. Ou por acaso essa curiosidade é vastamente comentada? Razão pela qual, fiz esse artigo a mostrar, como vale a pena ver que mais do que a opressão, a cooperação entre grupos diferentes pode ser enfatizada no estudo sobre o passado. 

Diferentes, cuja diferença, somos nós que assim a vemos. E ensinamos a outros também a verem. Ironicamente, nos esquecendo de que se queremos um mundo realmente sem desigualdades, temos que lutar ao máximo para que todos sejam e se vejam como iguais. Sem remoerem mágoas que só machucam a qualquer lado. 

Iguais em que, um em relação ao outro, tem respeitada a sua diversidade, as suas peculiaridades. E assim, acima de tudo, iguais reconhecendo o que cada um tem de bom e de falhas, de méritos e de débitos. Débitos a serem pagos, tanto quanto méritos a não serem desprezados em nome disso. 

Sendo todos nós parte de uma mesma família. A despeito das suas vergonhas (como o foi e ainda é a exploração humana) que não podem ser esquecidas, é óbvio. 

Todavia, não mais enfatizadas do que as referências que nos inspirem ao bom caminho para o mundo que sonhamos e pode ser possível, desde que o forjemos em bases sólidas. Entre elas, essa solidariedade que nos irmana, que gera progressos e permite a paz. Esta, muito idealizada, mas nem sempre refletida como forjá-la. Como a criar no dia-a-dia, passo a passo. 

Um pensar que talvez alguns o vejam como irreal e então sobre isso pergunto: relacionamentos desgastados (como o de um casal, imaginemos) se reatam relembrando momentos ruins que o minaram ou buscando um esforço em enxergar a tudo que houve de bom e vale a pena tentar ser repetido? Ou será que somos tão ignorantes que precisamos crer que ser realista é só reconhecer o mal que nos cerca? 

Tal como o adorável Haiti que é muito mais do que uma história de sofrimentos e caos. Conforme descobrirmos histórias como essa que espero que tenham apreciado. Logo, porque não nos maravilharmos e aprendermos com isso também?


Sobre o Autor:
LUIS MARCELO SANTOS: é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.

2 comentários:

  1. Muito interessante quando se consegue quebrar parte do preconceito com fontes afirmativas mostrando que a mistura também e saudável, daria uma bela tese de mestrado. Só sinto o Haiti não se firmar . Na época que trabalhei no MEC, enviaram um Servidor( Companheiro) Petista de Plantão recém chegado na EPT para lá . Imagina teria como missão levar alguma experiência da educação profissional Brasileira lembrando que o cidadão nem professor era. .O mais temático e que a missão não deu em nada , sendo mais uma viagem Oba , Oba, muito comum naquela época e muito regular em nossa Republica .

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  2. Agradeço a contribuição de seu comentário, Lott. Muito interessante e triste a se saber de uma oportunidade como esta, que seria a de maior interação, troca de saberes, desperdiçada. Contudo, o pior disso, é que, nós sabemos ocorridos assim, comumente vemos tais fatos com conformismo de que isso é natural acontecer em nossa sociedade. Mas é para isso que estamos aqui, meu amigo, para buscarmos fazer nossa parte. E tenha certeza, com a ajuda de interações como a sua vamos conseguir, lentamente mudar tais fatos. Pois assim contribuímos pelo debate e pela reflexão para criar um pensar mais ético, menos individualista, mais livre (inclusive de nossos vícios). Mesmo que o sendo de modo muito, muito lento, igual a água que desgasta a pedra conforme bate sobre ela. Mas tal como a água não cessa seu ritmo, nós também vamos conseguir mudar realidades das quais hoje podemos sentir vergonha até de comentar. Tenha certeza disso! Um muito obrigado e me alegraria bastante novas interações. "Pessoas são um presente (...) Também você meu amigo. Também eu, somos um presente para os outros. Você para mim. Eu para você" (Roque Scheneider).

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