Muitos historiadores apontam que o motivo da guerra civil dos Estados Unidos, de 1860- 1865, foi o “antagonismo” entre o norte industrial e capitalista e o sul agrícola escravista.
A questão, porém, é bem mais ampla. Para começar, as economias do norte e do sul não eram nada antagônicas. Conforme o capitão sulista Pike, de Nova Orleans: “desde os chocalhos que a babá encosta no ouvido do bebê até a mortalha que cobre as formas rígidas dos mortos, tudo do sul provém do norte. Acordamos envoltos em lençóis tecidos nos teares nortistas, deitados em travesseiros repletos de penas nortistas, lavamos o rosto em bacias fabricadas no norte, secamos a barba com toalhas nortistas, vestimo-nos com roupas fabricadas com tecidos do norte; [...][1] ”. Pike disse isto em 1855, poucos anos antes da guerra civil começar.
Então porque houve a guerra civil?
Houve guerra porque o “pacto” constitucional, que fez de Estados com contrastes tão profundos um país chamado Estados Unidos, se desgastou. E porque se desgastou? Foram muitos fatores. Vamos analisá-los.
Em primeiro lugar, o “pacto constitucional” se desgastou devido a expansão para o Oeste. A fronteira estadunidense estava em expansão no início do século XIX. Após a guerra contra o México (1846-1848), os Estados Unidos anexaram muita terra, e elas eram praticamente desabitadas. Ainda havia o genocídio indígena, movido pelo governo[2] . Estas terras, outrora vazias ou roubadas dos indígenas, foram se organizando em Estados; que logo requisitavam sua admissão à União. Mas havia um grande problema a ser resolvido: os novos Estados seriam escravistas? Permitiriam a escravidão? Ou seriam “Estados livres”, com mão de obra assalariada? Estas questões foram abafadas pelo Compromisso de Missouri de 1820. Por este compromisso, a escravidão seria proibida acima do paralelo 36º. Note que, as questões foram “abafadas”, mas não resolvidas. As terras anexadas nas guerras contra o México e contra os indígenas ficavam em sua maioria abaixo do paralelo estabelecido pelo compromisso. Assim, a questão retornou ao debate nacional.
Esta situação nos leva a outro fator de desgaste entre o norte e o sul: a política. A expansão da escravidão nos novos Estados constituídos trazia um “desequilíbrio” na balança política do país.Mais deputados escravistas eram eleitos para o Congresso, e assim eles tinham força para aprovar projetos que lhes beneficiassem economicamente.
A escravidão é um dos pilares fundamentais para a manutenção das monoculturas extensivas. E o sul dos Estados Unidos obtinham seus lucros das monoculturas de tabaco e algodão.
A partir de 1820, a Revolução Industrial aprimorava cada vez mais suas máquinas, que necessitavam cada vez mais de matérias-primas. O algodão, principal matéria-prima da indústria têxtil (tanto inglesa quanto estadunidense), se tornou o produto mais importante para os fazendeiros escravistas do sul. Era tão importante que muitos chamavam o algodão de “o rei do sul”. Quanto mais algodão, melhor para os fazendeiros. E para obter mais era preciso cultivar em mais terras – expandir o cultivo do algodão era expandir a escravidão.
Para os fazendeiros sulistas donos de escravos interessava muito atingir mercados internacionais. Neste sentido, era necessário baixar os impostos de importação e exportação, garantindo um preço atrativo nesses mercados. Para os Estados nortistas, a diminuição destes impostos era prejudicial, pois a indústria nacional não queria concorrência com os produtos estrangeiros; e a melhor forma de evitar essa concorrência era elevando as taxas de importação e exportação – garantindo matérias-primas nacionais baratas e mercados internos para os produtos industrializados. Os nortistas queriam uma política protecionista.
Além destas questões políticas e econômicas, outro fator contribuía para desgastar as relações entre norte e sul: o movimento abolicionista.
Desde a época da Declaração de Independência de 1776, foram criadas inúmeras sociedades abolicionistas – a Constituição de 1787 não dispunha especificamente sobre a escravidão. Em 1850, havia mais de 2000 organizações; algumas mais radicais e outras mais moderadas.
Alguns abolicionistas, se tornaram muito famosos. Como é o caso de John Brown[3]
Enquanto as campanhas abolicionistas cresciam, sejam radicais, sejam moderadas, outros grupos utilizavam métodos mais conservadores, sem recorrer ao enfrentamento. Um caso emblemático foi o da American Society of Clonization (ou Sociedade Americana de Colonização para Pessoas de Cor dos Estados Unidos). Fundada pelo pastor protestante e acadêmico Robert Finley. A lógica desta sociedade era a seguinte: os negros libertos, jamais conseguiriam se “ajustar” aos padrões da sociedade estadunidense. Sendo assim, a única coisa a se fazer era enviar os negros de volta a África! Finley e os demais membros da American Society of Colonization, trataram de comprar terras na costa ocidental africana e enviar negros para lá a partir de 1820. As terras compradas logo se organizaram como um Estado. Em 1824, a colonia de negros estadunidenses recebeu o nome de Libéria (ou “terra da liberdade”). Sua capital foi nomeada de Monróvia, em homenagem ao presidente estadunidense branco James Monroe. Uma colônia de negros, onde quem mandava eram os administradores brancos e que se chamava Libéria; quanta contradição...
Para muitos negros, a “terra da liberdade” não era muito diferente dos Estados Unidos.
Estes fatores estavam transformando a sociedade num caldeirão prestes a explodir. No final da década de 1850 parecia ter se esgotado qualquer possibilidade de acordo entre os grupos políticos e econômicos divergentes. E as eleições de 1860 foi a “válvula de escape” para que todos os grupos descontentes emergissem para a luta no campo político. A grande questão que permeou os debates eleitorais para presidente foi a escravidão.
O Partido Republicano, reconfigurado em 1854, agregou muitos militantes do efêmero Partido Whig. Entre esses membros do novo Partido Republicano (hoje em dia conhecido como Grand Old Party – GOP), estava o advogado e senador Abraham Lincoln. Os republicanos, representavam essencialmente os interesses nortistas, mas não tinham um consenso sobre como chegar ao fim da escravidão. O próprio Lincoln, candidato republicano nas eleições de 1860, era muito moderado; não era um abolicionista mas acreditava que a escravidão deveria terminar – algum dia...
Mesmo não colocando como prioridade de seu governo a questão da escravidão, Lincoln não agradava aos sulistas que a defendiam. Muitos já falavam em se separar da União. Em sua campanha, Lincoln declarava que não toleraria uma secessão. Ele defendia a União a todo custo. Sendo assim, quando foi eleito, os Estados do sul ameaçaram se separar. Lincoln, que de início não achava que os sulistas iriam se separar de fato, esperou pra ver. Grande parte da “opinião pública” sulista era defensora da separação, e essa ideia começou a ganhar muitos adeptos. Então, a Carolina do Sul convocou um congresso às pressas que anulou a Constituição de 1787. Com isso, o Estado estava formalmente fora da União. Outros Estados seguiram essa atitude. Alabama, Flórida, Mississipi, Geórgia, Texas e parte da Virgínia (a parte ocidental se manteve fiel aos nortistas, formando mais tarde o Estado de Virgínia Ocidental) também anularam a Constituição e se uniram a Carolina do Sul, formando os Estados Confederados da América, elegendo Jefferson Davis, um veterano da guerra contra o México.
A guerra estava deflagrada. Lincoln, que não tolerava a secessão, moveu suas tropas para a Carolina do Sul, até o forte Sumter, em Charleston, onde uma tropa de confederados estava amotinada.
No primeiro ano de guerra, ambos os lados estavam tomados de euforia. Lutavam aguerridamente pelos seus propósitos. Mas com o prolongamento do conflito, logo ficou evidente que os Estados do norte tinham vários trunfos ao seu favor. Primeiramente, a indústria bélica do norte, tinha poder de fabricar armas, enquanto o sul tinha que importar seu arsenal. O norte, contava com uma rede ferroviária mais desenvolvida, favorecendo o deslocamento de tropas; enquanto que o os confederados se deslocavam basicamente por vias fluviais. Além do que, logo que as lutas iniciaram, as tropas do norte foram invadindo territórios confederados, arruinando a produção e as provisões dos exércitos sulistas.
Os sulistas, esperavam uma intervenção estrangeira de seus aliados comerciais, algo que não ocorreu, pois a Inglaterra, principal consumidora do algodão sulista, procurou o produto em outros países – principalmente no Brasil.
Outro grande problema dos sulistas era seu contingente de soldados. Só eram admitidos para o serviço militar homens maiores de 21 anos e brancos. Nos anos finais da guerra, alguns sulistas escravistas chegavam a enviar seus trabalhadores escravizados para a linha de frente. Obviamente, esses trabalhadores não iriam lutar para manter sua condição de trabalhos forçados, e acabavam desertando do exército para as “terras livres”, onde a escravidão era proibida.
Enquanto as lutas seguiam destruindo e matando vorazmente, de ambos os lados, o Congresso da União, com a ausência dos confederados do sul, aproveitou para elaborar algumas leis. Entre elas está a famosa lei de terras dos Estados Unidos, chamada de Homestead Act, de 1862. Por esta lei, era concedido um pedaço de terra a qualquer pessoa que quisesse cultivá-la. Na prática, a lei se tornou uma verdadeira reforma agrária. Muitos pobres e imigrantes da populosa costa leste migraram para o interior onde se tornaram proprietários rurais.
Combatentes mortos na Guerra civil dos Estados Unidos |
Outra lei de grande importância para a vitória nortista foi a “lei do Confisco”, de 1861. Segundo ela, toda e qualquer propriedade dos confederados que acabasse sendo invadida pelos exércitos do norte seria confiscada. Como “propriedade” se entendia terras, gados, fazendas, armazéns de matérias primas e, principalmente, trabalhadores escravizados – que em mãos nortistas eram libertados.
A lei que declarou a liberdade dos escravizados veio somente em janeiro de 1863, mas só valia para territórios da União, ou naqueles que as tropas nortistas conseguissem tomar dos confederados. A emenda constitucional que declarou o fim da escravidão em todos os Estados Unidos (a 13º emenda) só foi promulgada em 1865, no fim da guerra.
Nos campos de batalha, o norte que se achava mais bem preparado, previa uma guerra curta. Contudo, o conflito se estendeu por quatro longos anos. Os grandes trunfos militares dos confederados sulistas estavam nas mãos do general Robert E. Lee, enquanto os nortistas contavam com os generais George Meade e Ulysses Grant.
A partir de 1863, as tropas federais impuseram derrotas decisivas aos exércitos confederados, como por exemplo na batalha de Gettysburg, na Pensilvânia.
Em abril de 1865, ambos os lados já estavam desgastados. O general Grant cercou Lee em Appomattox, Virgínia. O general confederado concordou em assinar sua rendição e a guerra terminou. O saldo de mortos deixado nas sangrentas batalhas foi de 560 mil pessoas. A maioria dos nortistas mortos era de pobres que se concentravam nas grandes cidades: um cidadão que pagasse ao governo quantia de 300 dólares estava dispensado do serviço militar – na época 300 dólares era uma quantia que poucos tinham a disposição. Muitos chegavam a declarar que a guerra civil era uma “guerra dos ricos na qual lutam os pobres”.
A Guerra de Secessão foi a primeira guerra industrial da história. Isto porque, a indústria contribuiu de forma decisiva para a vitória dos capitalistas do norte. Novas tecnologias estavam surgindo e se desenvolvendo. Os telégrafos auxiliaram nas comunicações a longa distância. Os navios a vapor (criados a partir do barco a vapor do engenheiro estadunidense Robert Fulton) davam mais agilidade aos deslocamentos de tropas; assim como os trens. A indústria bélica então, deu saltos nunca antes vistos. Navios blindados e com canhões de alta precisão. Canhões em trilhos de trens. Fuzis e metralhadoras entravam em cena para ceifar vidas.
Após a guerra civil, o “rei algodão” do sul deu lugar aos “reis” do aço (Andrew Carnegie), das ferrovias (Cornelius Vanderbilt) e do petróleo (John Rockfeller) do norte.
A guerra civil dos Estados Unidos, passou a ser idealizada pela história (contada pelos vencedores da guerra) como uma guerra “humanitária” contra a instituição da escravidão; escondendo os reais interesses de ambos os lados e a dependência econômica entre o norte e o sul.
Notas:
[1] HUBERMAN, Leo. História da riqueza dos EUA (Nós, o povo). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 160.
[2] Para saber mais leia Guerra contra os Estados Unidos! A resistência indígena no século XIX. Disponível em:
[3] Para saber mais leia John Brown e a abolição radical. Disponível em:
Fábio Melo: Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio A Voz do Morro. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
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