Marinheiros posando para foto |
1. Introdução
O Brasil foi o último país da América a acabar (pelo menos legalmente) com o regime de escravidão – no ano de 1888. Mas o impacto de seu fim não se deu imediatamente, em todas as partes do país. Cada estrato social sentiu de forma diferente o fim da escravatura. Os negros, em geral, em toda parte do país, foram relegados a condições precárias de sobrevivência: não receberam se quer um pedaço de terra ou ajuda do governo para trabalharem e se manter dignamente.
Um dos setores sociais que mais sentiu o fim da escravidão foi a Marinha brasileira. Pela tradição naval portuguesa, e por grande influência da família real que se mudou para o Brasil em 1808, a Marinha do Brasil foi construída em cima da classe dos nobres que aqui chegaram, ou dos filhos dos grandes proprietários de terra e escravos mais próximos ao poder governamental exercido pela monarquia Bragança e sua descendência que aqui permaneceu governando – dom Pedro I e Pedro II. No início do período republicano a maior parte dos marinheiros provinha de classes pobres urbanas e rurais, que buscavam nas forças armadas melhores condições de vida. Negros que não conseguiam emprego ou estudo no pós abolição vislumbravam no ingresso às forças armadas uma possibilidade de colocação e ascensão social.
Sendo assim, por sua natureza “nobre”, não é de se estranhar que mesmo após o fim da escravidão, alguns oficiais da marinha brasileira mantivessem algumas práticas comuns no período em que a escravidão era vigente. Entre elas estava a chibata: que consistia em castigos corporais com chicotes. Isto era mais frequente quando os marinheiros eram negros. Obviamente os marinheiros denunciaram os maus tratos. Entre os mais aguerridos opositores aos castigos e às péssimas condições de vida dos marinheiros nos navios, destacou-se o marinheiro João Cândido (1880-1969).
Era uma imensa contradição para a época: o governo republicano (instalado em 1889) queria modernizar a marinha, comprando da França e da Inglaterra modernos navios de guerra (os dreadnoughts), mas a situação dos marinheiros ainda era semelhante à da escravidão – modernizar pra que(m)?!
2. A Revolta
A revolta ocorreu no ano de 1910. Este ano foi bastante emblemático dentro do período da República Velha (1889-1930).
O cenário político em 1910 era tenso. As eleições daquele ano foram disputadas entre o marechal Hermes da Fonseca e Rui Barbosa.
Hermes representava uma facção das oligarquias que se opunha à política do café com leite, na qual as oligarquias paulistas e mineiras revezavam o poder no governo federal. Alguns historiadores apontam a eleição de 1910 como a primeira onde o clima de disputa realmente contagiou os eleitores – que votavam a cabresto. Eleito, Hermes da Fonseca, que era um militar (e por isso mesmo corporativista), não teve nenhuma habilidade política para atender a revindicação dos marinheiros que queriam o fim dos castigos corporais. Mesmo após inúmeras denúncias, pouco foi feito.
O estopim para a revolta foi o castigo recebido pelo marinheiro Marcelino Rodrigues Meneses após uma briga: 250 chibatadas nas costas!
Com a repercussão do castigo, os marinheiros, que estavam mobilizados há alguns anos contra essas torturas, resolveram tomar os encouraçados São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Deodoro, na noite do dia 22 de novembro de 1910. Houve resistências por parte da tripulação contrária a revolta; até mesmo algumas mortes.
3. O Manifesto dos Marinheiros
Após a tomada dos navios, os rebeldes publicaram a seguinte mensagem:
“Rio de Janeiro, 22 de Novembro de 1910.
Ilmo. Sr. Presidente da República Brasileira.
Cumpre-nos comunicar a V. Excelência como Chefe da Nação Brasileira:
Nós marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a pátria nos dá e até então não chegou, rompemos o negro véu que nos cobria os olhos do patriótico e enganado povo.
Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo ao seu bordo prisioneiros todos os oficiais, os quais, tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratarmos como cidadãos fardados em defesa da pátria.
Mandamos esta mensagem para V. Exa. faça aos Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com as desordens e nos dando gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira, bem assim como, retirar os oficiais incompetentes e indignos de servirem a Nação Brasileira; reformar o Código imoral e vergonhoso que nos rege; a fim de que desapareça a chibata, o bolo e outros castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo pelos últimos planos do Senador José Carlos de Carvalho; educar os Marinheiros que não tem competência para vestirem a orgulhosa farda; mandar por em vigor a tabela de serviço diário, que a acompanha.
Tem Vossa Excelência o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória sob pena de ver a pátria aniquilada. – Bordo do Encouraçado São Paulo em 22 de novembro de 1910. Nota: não poderá ser interrompida a ida e volta do mensageiro.
Marinheiros”.[1]
4. Consequências
Após o ultimato dos revoltosos, o presidente Hermes da Fonseca os enganou, pedindo para que eles depusessem as armas e garantindo anistia. Logo em seguida o presidente prendeu alguns dos envolvidos no episódio. Parte dos presos foi enviada a Ilha das Cobras; enquanto que outra parte foi enviada ao Acre para realizar trabalhos forçados (a mentalidade escravista mais viva do que nunca!). Isto bastou para que uma outra revolta estourasse, justamente na Ilha das Cobras. Desta vez, os revoltosos foram esmagados pelas forças governamentais. Mas os castigos sessaram, aparentemente.
Os envolvidos na revolta foram novamente presos, alguns mortos (em circunstâncias pouco esclarecidas até hoje) ou expulsos da Marinha – sem nem mesmo ter direito a pensão. João Cândido, por exemplo, chegou a ser internado num hospital de alienados. Perseguido pela Marinha pelo resto de sua vida – só para se ter uma ideia em 1959 o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, tentou prestar uma merecida homenagem ao “Almirante Negro”, mas a Marinha não permitiu. João Cândido morreu pobre em 1969 no Rio de Janeiro. Ele só foi anistiado em 2008 (39 anos após sua morte!), mas não reintegrado simbolicamente à Marinha.
Seria a nossa Revolta da Chibata de 1910 uma inspiração do Motim do Encouraçado Potemkin, na Rússia em 1905?
É difícil dizer com precisão até que ponto a revolta russa influenciou a brasileira; embora muitas revindicações fossem comuns. Mas o fato é que João Cândido, o grande líder do movimento, esteve na Inglaterra, junto com outros marinheiros por volta de 1908, acompanhando as construções de navios encomendados pelo governo brasileiro. Provavelmente neste período ele ficou sabendo com mais detalhes sobre o acontecimento na Rússia.
Por mais que uma suposta “história oficial” tenha tentado apagar a Revolta da Chibata, hoje não se pode compreender a sociedade na República Velha sem entender o que representou este movimento.
Para saber mais e ver mais imagens da Revolta da Chibata acesse:
Notas:
bisneto do líder João Cândido.
Fábio Melo: Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio A Voz do Morro. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
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