A TERCEIRA VIA NA AMÉRICA LATINA

Vias do capitalismo

Proponho dividir a história econômica do capitalismo pós-crise de 1929 em quatro fases. A primeira fase vai de 1930 até o final da segunda guerra mundial (1945); é a fase da “reconstrução”. Ao longo deste período, os governos, as corporações e as organizações operárias em muitos países contribuíram para reconstruir as economias nacionais após a crise capitalista de 1929. Essa reconstrução só foi possível dentro do capitalismo porque as elites econômicas tiveram que ceder; era necessário abrir mão de certos privilégios para manter o sistema – e evitar a revolução socialista. Importantes direitos sociais, como as leis trabalhistas, a previdência, o voto popular e o voto feminino, são desta época. O Estado se redefiniu como organizador da economia nacional. Nos países subdesenvolvidos, periferia do núcleo capitalista dentro da Divisão Internacional do Trabalho[1], essa fase favoreceu a industrialização, através da “substituição de importações”.

A segunda fase vai de 1945 até cerca de 1980; é a fase do Estado de Bem-estar Social (welfare state). Após a consolidação de muitos direitos políticos e sociais, houve um grande esforço de governos, empresas e trabalhadores em garantir a manutenção e ampliação desses benefícios sociais. O padrão de vida aumentou. As classes médias foram ampliadas. Os serviços públicos cresceram. Nos países subdesenvolvidos que haviam alcançado uma relativa industrialização do período anterior (como Brasil, Argentina, México, Chile) este período foi o do chamado “nacional- desenvolvimentismo”, ou desenvolvimentismo, ou “capitalismo autônomo” (de relativa autonomia). 

A terceira fase vai de 1980 até cerca de 2000. É a fase do neoliberalismo. Este período é marcado pelas privatizações. Pelo incentivo as especulações financeiras. Pelo poder absoluto dos bancos e rentistas nas economias nacionais. Os governos de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos marcam a aplicação e expansão do neoliberalismo no mundo (embora o “ensaio geral” de aplicação desse modelo tenha sido no Chile, a partir de 1973, através da violenta ditadura de Augusto Pinochet[2]). Em países da América Latina, como Brasil, Argentina e México, houve o desmonte de todo parque industrial dos períodos anteriores.

Por fim, o último período que proponho aqui, a quarta fase, é a “Terceira Via”, que é o foco deste texto.

Antes é preciso deixar claro que muitas das políticas econômicas apresentadas nas fases acima nem sempre surgiram dentro dos períodos citados. Por exemplo, a previdência social surgiu no Império Alemão conservador de Bismarck e do kaiser Guilherme I. Porém, essa ideia (de origem socialista) só se espalhou pelo mundo ao longo do século XX, principalmente entre as décadas de 1930 e 1950.

O que é a “Terceira Via”? É uma tentativa de síntese (ou conciliação) entre o neoliberalismo econômico e algumas políticas sociais. Essa ideia surgiu no início da década de 1990, dentro de um grupo de trabalhistas ingleses (do “novo trabalhismo”). Por isso “terceira via”: nem a “via neoliberal extrema”, nem a via “socialista”.

Entre os adeptos da terceira via estão o sociólogo inglês Anthony Giddens e o político Tony Blair, também inglês e membro da ala direita do Labour Party, partido que estabeleceu as bases do Estado de Bem-estar social no Reino Unido nos anos 1940-1950. Ainda nos anos 1990, a ideia da terceira via chegou aos Estados Unidos, ganhando força no governo do democrata Bill Clinton (presidente em dois mandatos de 1993 até 2001). A partir de então muitos que defendiam a Terceira Via se autoproclamaram “sociais liberais” ou “liberais sociais”. Atenção: o neoliberalismo não terminou nessa fase, ele apenas ganhou um verniz timidamente (muito tímido, quase inexpressivo) “social”. Apesar de sucessivas crises, o neoliberalismo e suas premissas seguem fortes em todo mundo.

Na América Latina, que possui uma realidade histórica particular e dinâmicas sociais, políticas e econômicas bem diversas do que ocorre nos países capitalistas mais avançados, essa ideia de “terceira via” foi absorvida por partidos ditos de esquerda.

Um dos exemplos mais evidentes disso é o do Brasil. Ao longo da década de 1990, os governos brasileiros desenvolveram políticas nitidamente neoliberais. As privatizações, a partir do governo Fernando Collor seguidas por Fernando Henrique Cardoso, e a criação do Plano Real, seguindo as receitas do FMI, Banco Mundial e do Consenso de Washington. Curioso é que Fernando Henrique Cardoso (FHC), que governou o Brasil de 1994 até 2002, é do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), contudo, tanto seu partido como seu governo são adeptos do neoliberalismo (principalmente no que diz respeito a privatizações e parcerias público-privadas). O governo FHC foi eficaz na implantação inicial da terceira via no Brasil: manteve o neoliberalismo e iniciou um tímido programa de distribuição de renda e políticas sociais, tais como o Bolsa-Escola, o auxílio gás e o Programa Renda Mínima. Esses programas foram continuados pelo presidente Lula, a partir de 2003, e até ampliados, como o Bolsa Família. Contudo, o poder dos bancos, as flexibilizações nas leis e direitos trabalhistas e a transferência de renda pública para grandes corporações econômicas também marcaram esses governos.

Sendo assim, no caso brasileiro, o governo do PT foi muito mais próximo da Terceira Via do que de uma política realmente de esquerda. Visto que os anos nos quais o Partido dos Trabalhadores (primeiro com Lula e depois com Dilma Rousseff) governou, de 2003 até 2016, não houve uma grande reforma agrária, ou reforma urbana, ou controle dos bancos ou um combate mais efetivo a desigualdade social (que ainda persiste, apesar de muita coisa feita ao longo desses governos).

Porém, o Brasil não é o único caso em que a Terceira Via foi absorvida por partidos de esquerda que chegaram ao poder. Na América Latina, muitos analistas e historiadores ao tratar do período no qual governos de esquerda chegaram o poder dentro dessa lógica da terceira via usam termos diferentes: “novo desenvolvimentismo”, “período progressista”, “governos de esquerda” etc. Independente do nome que se dá, esse período se estende de 1999, quando da posse de Hugo Chavez na Venezuela, até a queda de Dilma Rousseff em 2016, no Brasil. Durante esse tempo, os Kirchner (Nestor e Cristina) chegaram ao poder na Argentina, em 2003; a Frente Ampla uruguaia se manteve no governo desde 2005 (até recentemente – 2020); Evo Morales na Bolívia, em 2006; e Rafael Correa no Equador, em 2007. Todos esses governaram num amplo espectro da Terceira Via, que vai do modelo mais radical de enfrentamento (Venezuela) ao modelo mais conservador de conciliação com o neoliberalismo (Brasil e México). Esses governos não romperam totalmente com o neoliberalismo, com o capital financeiro mundial, embora em muitos casos, como na Bolívia e na Venezuela, reformais sociais tiveram grande disseminação em setores excluídos ou marginalizados nas respectivas sociedades (como a reforma agrária e nacionalizações). Na prática, a tal “onda progressista” foi sem dúvida uma “onda da terceira via”. O erro de parte da esquerda que participou desses processos e governos em alguns países foi não enxergar os limites e contradições dessa conciliação – e não acreditar que os governos “progressistas” não faziam os enfrentamentos possíveis, principalmente em países que tinham boas condições para fazê-lo, como foi o caso do Brasil.

Essa “onda da terceira via” chegou ao fim de diferentes modos nos diversos países latino- americanos que se instalou. Mas podemos definir como “marco” para o fim do período o ano de 2016. Evidente que esses governo de terceira via (pintados de esquerda radical pelos mais conservadores e reacionários) enfrentaram resistências ao longo dos anos que estiveram no poder, mesmo de suas políticas mais moderadas. Porém, o ano de 2016 é preciso graças a dois fatos: a eleição do republicano Donald Trump nos Estados Unidos, e o golpe/impeachment de Dilma Rousseff no Brasil. É também a partir de 2016 que uma verdadeira onda conservadora/obscurantista/conspiracionista/reacionária e ultraliberal ganhou força e arregimentou uma legião de fanáticos em redes sociais que foram as ruas protestar por coisas absurdas (como no Brasil). Esses elementos estavam sendo gestados pelo menos desde a crise de 2008.

Essa “onda obscurantista” mostrou claramente os limites e as fragilidades da terceira via latino-americana. Contudo, há resistências. Na Venezuela, apesar de muitos erros e acertos, Nicolas Maduro segue resistindo aos ataques nacionais e internacionais que pretendem aprofundar o neoliberalismo imperialista no país. Na Bolívia, Evo Morales renunciou em 2019 após denúncias de fraude por parte da OEA (organização pró Estados Unidos, portanto contrária aos interesses nacionais bolivianos).

Este texto, evidentemente, não tem a pretensão de analisar cada país latino-americano. Minha ideia foi apenas pontuar algumas questões dentro dessa ideia de que a “terceira via” latino- americana pretendeu ser de esquerda mas acabou mostrando os limites e contradições desse modelo aplicado a uma região periférica do capitalismo que é “moldada” pelos organismos financeiros internacionais do sistema para ser eternamente uma região fornecedora de matérias-primas (commodities) para os núcleos de onde o capital erradia seus tentáculos.


Notas:

[1] http://geaciprianobarata.blogspot.com/2017/01/miseria-das-nacoes-divisao.html

[2] http://geaciprianobarata.blogspot.com/2016/09/chile-1973-o-outro-11-de-setembro.html



Referências

ALLEN, Robert C. História econômica global: uma breve introdução. Porto Alegre: L&PM,
2017.
HARVEY, David. O Neoliberalismo, história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
__________. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016.
DABENE, Olivier. América Latina no século XX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
KISHTAINY, Niall. Uma breve história da economia. Porto Alegre: L&PM, 2018.
SANTOS, Fábio Luís Barbosa dos. Uma história da onda progressista sul-americana (1999-
2016). São Paulo: Elefante, 2018.



Sobre o Autor:
 
Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio web e FM A Voz do Morro. Professor de História e Geografia. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.


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