O trabalho formal é definido como aquele que dispõe de algum tipo de legislação que regula e dá garantias e direitos por parte dos governos e empresas aos trabalhadores e trabalhadoras. Essa ideia de direitos do trabalho é relativamente recente, datam do final do século XIX e da primeira metade do XX, princialmente após as revindicações de trabalhadoras e trabalhadores, organizados em sindicatos e partidos políticos. O trabalho formal veio no conjunto de transformações políticas e sociais decorrentes da industrialização, principalmente nas grandes e médias cidades. Sendo assim, no campo não haviam regras definindo alguns direitos como salário, horas de trabalho, férias etc. O trabalhador do campo dependia unicamente de seu pedaço de terra para cultivar e de sua força de trabalho.
Após séculos de colonização e reorganizações políticas e econômicas, foi se estabelecendo redes de comércio entre campo e cidade através de camponeses, transportadores, comerciantes e até uma burocracia governamental responsável por cobrar impostos e organizar esses fluxos. Na América Latina a tímida industrialização do início do século XX recrutou um pequeno estrato da população para ser mão de obra nas indústrias. Nesta época, o pequeno, mas combativo, movimento operário vai começar a pressionar por direitos, ao mesmo tempo em que o Estado precisa ampliar seus serviços para suprir as demandas de uma população crescente. Os trabalhadores da indústria, do comércio e os funcionários públicos são os primeiros a adquirir legislações específicas em relação aos direitos de deveres. São as primeiras categorias a se enquadrar como trabalhadores formais. No Brasil, por exemplo, a carteira de trabalho, criada na década de 1930, era um símbolo da dignidade do trabalhador e ter um registro empregatício era a passagem para a formalidade acompanhada de todos seus direitos e benefícios.
Enquanto isso, os trabalhadores e trabalhadoras do campo continuam sem qualquer tipo de amparo em direitos. Em grande parte isso decorre da estrutura colonial da economia latino-americana: baseada na exportação de produtos agrícolas e minérios. A configuração rural latino-americana é um mosaico de relações de produção em propriedades que vão desde o latifúndio extensivo até os ejidos mexicanos; dentro de cada uma estabelecem-se as mais diversas relações de trabalho: de cooperativas agrícolas ao trabalhador “boia fria”, do assalariado rural ao sistema de colonato, do arrendamento ao trabalho análogo a escravidão1. Essa diversidade dificulta, e dificultou ao longo da história, maior permeabilidade de direitos no campo, bem como a resistência do agronegócio (herdeiros diretos do colonialismo) em estabelecer limites e reformar a precária estrutura agrária. Ao longo do século XX, essa falta de direitos no campo e os avanços das relações capitalistas no espaço rural, acabou empobrecendo pequenos e médios agricultores, que só tinham uma opção: ir para as cidades em busca dos direitos que os trabalhadores da indústria e comércio tinham; ou seja, em busca do trabalho formal.
Porém, a realidade encontrada por esses migrantes foi bastante dura. Na América Latina, as décadas de 1950, 1960 e 1970 foram de intenso deslocamento do campo para a cidade – ao mesmo tempo em que houve uma relativa "mecanização" das zonas rurais, com emprego cada vez maior de tecnologias como máquinas, fertilizantes e sementes modificadas. Em alguns países como Colômbia e Peru no meio rural também se desenvolvem movimentos guerrilheiros enquanto “esquadrões da morte” massacram as populações camponesas; obrigando grandes parcelas da população a migrar.
Mas as cidades não estavam preparadas para a chegada desses retirantes. Mal planejadas, as cidades latino-americanas “incharam”. As populações urbanas cresceram e em poucas décadas ultrapassou a população rural. Assim, as pessoas foram construindo suas casas com materiais precários nos únicos espaços que lhes restavam nas zonas urbanas: as periferias.
A indústria e o comércio das cidades não eram capazes de absorver todos os migrantes do campo. Também não havia muito espaço no setor produtivo “formal” para a população urbana que há gerações não tinha acesso a uma boa educação e qualificação profissional. Desta forma se formou ao longo do tempo um grande contingente populacional que não encontrou o caminho do trabalho formal, com todos os benefícios e direitos. Assim, a única alternativa de vida para essas pessoas “marginalizadas” pelos governo foi ganhar a vida da forma que podia; ou seja, no “trabalho informal”: sem qualquer amparado social e nenhum tipo de lei que lhes garantissem o mínimo para sobreviver.
Ao longo dos anos 1980 e 1990, quando os países latino-americanos se comprometeram a adotar o neoliberalismo vomitado pelos Estados Unidos, o pouco que havia de leis trabalhistas ficou refém de governos que desejavam transformar as populações de seus países apenas em uma grande “massa” de mão de obra barata, com pouca ou nenhuma qualificação, unicamente para atrair os “investimentos” das grandes e vorazes multinacionais. Conforme a jornalista Naomi Klein: “Para atender às exigências de investimentos multinacionais, governos do mundo todo deixaram de atender às necessidades das pessoas que os elegeram. Algumas dessas necessidades não atendidas eram básicas e urgentes – remédios, habitação, terra, água; outras eram menos tangíveis – espaços culturais não-comerciais para comunicar, reunir e compartilhar, seja internet, em ondas de rádio públicas ou nas ruas”.
Com essa guinada neoliberal, os governos deixaram a formalidade se precarizar. Ou seja, um trabalhador ou trabalhadora com carteira assinada não mais tinha um padrão de vida razoável de décadas anteriores. Essa onda de trabalho precarizado se intensificou nos países latino-americanos em fins do século XX e início do XXI. Baixos salários, jornadas longas e cansativas, contratos precários e falta de representação sindical são as bases dessa nova forma de trabalho. Um exemplo bastante expressivo são as empresas maquiladoras no México, que ganham enorme expressão econômica após os acordos do NAFTA (North American Free Trade Agreement – Acordo de Livre Comércio da América do Norte). Empregando mais de 1 milhão de trabalhadores (em sua maioria mulheres), as maquiladoras fornecem produtos semi-acabados para multinacionais da área eletrônica (Sony, Sansung, Panasonic, Hewlett Packard), em Tijuana, e automobilística (Ford Motors), em Hermosillo2. A principal característica das maquiladoras são os baixos salários e as extenuantes jornadas de trabalho – condições que trabalhadoras e trabalhadores aceitam justamente para não enfrentar as incertezas da informalidade.
Ao mesmo tempo em que trabalhadoras e trabalhadores disputam o pouco espaço na “formalidade precária”, os únicos empregos que garantem uma certa estabilidade social são aqueles ligados ao funcionalismo público. Porém, dentro da realidade latino-americana, os estáveis cargos na máquina pública acabam sendo “reservados” as frações de classes médias e baixa que conseguem ter um pouco mais de estudo em nível superior, geralmente em nível técnico e de graduação. Por isso, muitos trabalhadores precários ou informais apostam na educação de seus filhos, para que com isso tenham acesso, ou pelo menos condições de disputar, funções na máquina pública, única garantia (por enquanto) de estabilidade.
Como se pode ver, a informalidade e a precarização são uma constante na realidade do trabalho latino-americano. E isso se estende ao longo dos séculos. É possível até dizer que, o trabalho formal, bons salários, estabilidade e previdência são a exceção e não a regra.
Organismos internacionais, tais como o Banco Mundial e a Organização Internacional do trabalho (OIT) estimam que cerca de 50% da população latino-americana vive do trabalho informal3. Além dos motivos históricos já elencados, um número tão grande de pessoas ainda vive nessa realidade por vários fatores: a falta de instrução de uma parte significativa da população (a parte mais pobre), serviços públicos insuficientes e precários, falta de oportunidades em certas regiões da periferia das grandes e médias cidades, o que obriga os moradores desses lugares a uma organização econômica local, disponibilizando certos serviços (como venda de roupas, sapatos, manicure, cabeleireiro, reparos mecânicos, pintura, elétrica). E, mais recentemente, uma mentalidade “empreendedora” disseminada pela mídia que tira a identidade de classe desses precarizados informais e os faz acreditar que estão “acima” de trabalhadores – eles se veem como “empreendedores”, “empresários de si mesmos”; que na prática não é algo muito diferente de uma “gestão da pobreza” (nesse espectro “empreendedor” se enquadram muitos trabalhadores de aplicativos, na chamada uberização).
Contudo, é necessário reforçar que os países latino-americanos tem graus variáveis de trabalho informal. Alguns países, devido a sua configuração histórica, apresentam índices maiores. Segundo um relatório de 2019 do Fundo Monetário Internacional4 os países com maiores índices de trabalho informal são Peru, Colômbia, México, Brasil, Argentina e Chile. Essa tendência está em alta, junto com a precarização do trabalho. No caso do Brasil, cerca de 38 milhões de trabalhadores vivem na informalidade, segundo dados de 20195. Provavelmente esse número seja maior, devido, talvez, as dificuldades das pessoas em se declarar informais.
Diante de uma realidade histórica tão consolidada através de séculos, cabe aos trabalhadores, desempregados e políticos trabalharem juntos para reverter essa situação ou revolucionar o sistema. É preciso encontrar um novo modelo de Estado de bem-estar social onde haja pleno emprego, bons salários, férias, previdência e sindicatos fortes. Sem esses elementos não é possível mudar e melhorar a vida de trabalhadores e trabalhadoras latino-americanos a curto prazo.
1https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-02/trabalho-escravo-tem-relacao-com-informalidade-e-desemprego
2http://revistaprincipios.com.br/artigos/48/cat/1536/maquiladores-no-méxico-um-retrato-do-capitalismo-global-.html
4Disponível em:https://www.imf.org/~/media/Files/Publications/REO/WHD/2019/October/Portuguese/por-labor-market.ashx
5https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/informalidade-cai-mas-atinge-38-milhoes-de-trabalhadores
Referências:
ANTUNES Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2020.
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
KLEIN, Naomi. Cercas e Janela: na linha de frente do debate sobre globalização. Rio de Janeiro: Record, 2003.
MARTINEZ, Paulo. Multinacionais: desenvolvimento ou exploração? São Paulo: Moderna, 1993.
Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Professor de História e Geografia. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
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