Novelas históricas feitas por grandes estúdios e produtoras de televisão são problemáticas. Por um lado, são capazes de trazer temas relacionados à história e despertam o interesse de muitas pessoas que, na maioria das vezes, acham a história ensinada nas escolas uma matéria chata e enfadonha. Por outro, alguns autores e autoras de novela, contaminados pelo desejo de falar mais de nossa época do que do momento histórico que pretendem retratar em suas obras, acabam descambando para erros grosseiros – verdadeiros "crimes contra a história". Esta situação tem ocorrido com certa frequência na novela “Nos Tempos do Imperador”, que passa de segunda a sábado na faixa das 18 horas.
Como historiador, tenho o dever de fazer a crítica. Que fique a lição para futuras produções que buscam retratar certos períodos da nossa história. Vamos lá.
A trama retrata o Brasil do século XIX, mais especificamente o “romance” entre o imperador d. Pedro II (interpretado pelo ator Selto Mello) e a Condessa de Barral (interpretada por Mariana Ximenes) – sendo que o imperador era casado com Teresa Cristina (Letícia Sabatella). No desenvolvimento desta trama, os mais diversos tipos de personagens aparecem, representando (ou não) alguns grupos sociais da época – escravizados, mulheres, políticos entre outros.
Ocorre que a novela cai sempre no erro grosseiro de “romantizar” personagens históricos, e não encará-los como eles realmente foram: seres humanos com suas motivações, contradições e interesses pessoais. D. Pedro II, por exemplo, é retratado da forma oposta do que realmente era. Na novela aparece como um homem preocupado com o Brasil, esperançoso quanto ao futuro do país e com as questões sociais; um homem “esclarecido”, preocupado com a educação, humanista etc. Na realidade, d. Pedro II estava longe deste ideal. Sua preocupação com a educação e o esclarecimento era restrito a sua família. Só para se fazer um paralelo, no Brasil imperial não havia nenhuma universidade, enquanto em outros países da América Latina já tinham essas instituições de ensino superior desde o século XVI! A primeira universidade brasileira só foi fundada no período republicano, já no século XX. Que imperador esclarecido é este que nem ao menos criou uma rede de ensino básico para seu país? E ainda tem a questão da escravidão. A novela praticamente isenta d. Pedro II de qualquer coisa relacionada às práticas escravocratas – sendo que na realidade a base de apoio político de d. Pedro II eram justamente os escravocratas.
No capítulo de estreia, 09 de agosto, um diálogo esdruxulo entre d. Pedro II e o presidente paraguaio Solano Lopez (Roberto Berindelli). D. Pedro II diz a Solano que “O Brasil nunca se renderá a um ditador, nunca”. Ora, mas o Brasil daquela época era praticamente uma ditadura: um país escravocrata onde só podia votar e ser eleito quem tinha renda muito elevada (voto censitário). D. Pedro II era um típico ditador, com poderes sobre toda política brasileira: Poder Moderador, garantido pela constituição absolutista de 1824. Se este é um modelo de democracia para os roteiristas da Globo não é de se estranhar porque ajudaram tanto o bolsonarismo a crescer com as narrativas lavajatistas no Jornal Nacional.
Um dos personagens principais da novela é Jorge/Samuel (interpretado por Michel Gomes), um ex-escravizado. Ele tem um relacionamento com uma moça branca chamada Pilar (Gabriela Medvedoski). Pilar sonha em ser a primeira médica do Brasil. A relação entre os dois, que poderia dar uma ampla margem para a questão do racismo estrutural (tão comentada nos últimos anos e que ganhou destaque em muitos programas da própria Globo) é totalmente esvaziada. O enredo da novela dá uma ênfase muito maior ao sonho da jovem Pilar. E a maioria dos diálogos de ambos os personagens giram em torno disso e não da questão racial ou do preconceito! Para piorar a situação, em um diálogo entre os dois personagens, exibido no capítulo do dia 21 de agosto, Samuel fala sobre a “rejeição” de Pilar em viver em seu quilombo (chamado Pequena África). A cena é claramente um “racismo reverso”. Ora, já é muito documentado que os quilombos eram lugares plurais, onde negros, brancos, indígenas e mestiços viviam em comunidade. Essa fala da personagem pegou tão mal que a autora da novela pediu desculpas publicamente1. Mas isso não é tudo, os diálogos entre esses dois personagens ocorrem sempre em lugares públicos, movimentados. Na época (a novela se passa em 1856), negros, mesmo livres, que andassem pelas ruas poderiam sofrer punições.
No capítulo exibido no dia 18 de setembro, há outro estranho diálogo desta vez entre Samuel/Jorge e imperador d. Pedro II. Na cena, Samuel é acusado de um roubo que não cometeu. D. Pedro II diz ao jovem que não pode fazer nada sobre a escravidão, pois segundo o próprio imperador “ele reina, mas não governa”. Ora, o mínimo de noção de história do Brasil já mostra o quão equivocado é esta frase de d. Pedro II. A Constituição de 1824, como já mencionado, dava ao imperador um poder absoluto (Poder Moderador), pelo qual o imperador podia dissolver o parlamento, nomear juízes e senadores (que eram vitalícios). A frase “reino, mas não governo” cabe mais a Inglaterra, que tem até hoje uma monarquia constitucional, do que para o Brasil imperial – onde havia na prática um verdadeiro “absolutismo constitucional”. Não é a toa que o modelo político brasileiro era chamado de “parlamentarismo às avessas”, pois o imperador tinha amplos poderes sobre deputados e senadores, além de ser o próprio imperador que nomeava o primeiro-ministro, e não o parlamento (como ocorre na Inglaterra e na maioria dos países parlamentaristas). Em outras palavras, d. Pedro II reinava e governava.
É preciso lembrar, também, que a escravidão no Brasil acabou (legalmente) através de uma lei assinada pela filha de d. Pedro II, Isabel, que estava usando as prerrogativas do Poder Moderador. Ou seja, bastava um decreto para a escravidão acabar, como de fato aconteceu. Logo a ideia de que d. Pedro II “reina, mas não governa” é uma mentira histórica – e torna a novela um desserviço em relação ao próprio público.
A boa qualidade técnica de cenários, figurinos e fotografias é proporcionalmente avessa à péssima qualidade no que se refere ao contexto histórico. E esta situação abre o debate para o seguinte problema: Por que a Globo, com toda sua tradição em novelas e jornalismo, não contratou algum historiador ou historiadora pelo menos para dar um apoio ao que se refere aos diálogos e a realidade histórica retratada? Historiadores liberais não faltam no Brasil – mais adequados aos ideais neoliberais das empresas Globo. Ou, também, podiam pedir o suporte de um jornalista competente como Laurentino Gomes, que tem uma obra extensa sobre a escravidão e o Brasil do século XIX.
A novela segue sendo exibida, mas os capítulos com os diálogos estranhos, descontextualizados, já foram ao ar. As desculpas por erros grosseiros foram dadas pela autora, mas o que foi transmitido já não pode ser “destransmitido”. Talvez venha mais nos próximos capítulos. Cabia a rede globo chamar o debate sobre os erros em sua novela nos programas que transmite. Quem sabe até a audiência da novela cresceria ao apontar seus próprios erros e crimes cometidos contra a história.
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