DOR, VINGANÇA E UM DILEMA: o massacre de 1804

Um episódio ocorrido no ano de 1804 no Haiti nos faz refletir sobre o quanto pode levar a desdobramentos trágicos apenas o remoer de mágoas passadas. Por mais que evidentemente a quem agride é mais fácil se esquecer do passado do que a quem é agredido. Isso é fato: se faz mais simples deixar para trás o passado aquele que ofende do que ao que é ofendido; ao que machuca muito mais do que ao machucado. Contudo, é certo se atribuir a um grupo, raça, cor de pele, etc. toda uma culpa? Como assim? Simples...

 

Pois foi isso o que aconteceu no episódio conhecido como o massacre do Haiti de 1804, quando o monarca negro do Haiti (isso mesmo, este deslumbrante país do Caribe já foi por duas vezes uma monarquia), Jean Jaques Dessalines, em janeiro deste ano determinou o extermínio de quase todos os brancos do país. Todos, levando isso a uma campanha de genocídio que se prolongou até o dia 22 de abril de 1804. Seu motivo para isso: vingar as atrocidades cometidas por ex-autoridades brancas e francesas, como Rochambeau e Leclerc, assim como retaliar a opressão dos brancos em geral aos então escravos negros. 

 

O que se torna uma questão delicada: certo ou reprovável ao oprimido agir igual ao opressor se tendo oportunidade? Apenas uma pergunta, não uma afirmação. A vingança pode ser também justiça? A vingança pode se fazer ainda mais terrível que os males provocados antes?

 

Enquanto pensamos, desde já é certo que esta história não de pessoas do povo simples comumente destroçadas pelas classes mais abastadas.  Pelo contrário. Os historiadores Nicholas A. Robins e Adam Jones descrevem o massacre como um "genocídio dos subalternos no qual um grupo oprimido usa meios genocidas para destruir seus opressores”.  Ou seja, vingança raivosa, cega, como pode se perceber na fala do secretário de Jaques Dessalines, Boisrond-Tonnerre: "Para nossa declaração de independência, devemos ter a pele de um homem branco como pergaminho, sua caveira como tinteiro, seu sangue como tinta e uma baioneta como caneta!"

 


 

Exagero? Depende do que podemos concluir sobre o que se seguiu: homens, mulheres, crianças perseguidos e mortos. Independente de sua responsabilidade ou não nos maus tratos aos negros antes. Sua cor, branca, já os fazia serem vistos como merecedores da vingança de sangue que agora começa. Porém, não se limitando somente ao extermínio puro e simples.

 

Não sem antes outros momentos de horror como o violentar de mulheres antes de serem abatidas. Não sem antes suas vítimas verem seus bens serem saqueados e suportarem intensas torturas físicas. Pois a vingança pode se tornar muito mais violenta que a violência que antes a instiga. 

 

Por isso a perseguição raivosa mesmo aos brancos que eram amigáveis e simpáticos à população negra. Nada disso importava, pois, como já foi dito a pouco, a cor de suas peles os tornavam merecedores somente da mais terrível e dolorosa morte. Ainda que é claro que houveram algumas situações que a tolerância foi mantida. Tendo sido uma das poucas exceções um contingente de soldados poloneses que abandonou as forças de Napoleão que antes tentaram retomar o controle do país a serviço da França. Mas isso só até eles terem se identificados muito mais com os negros que assim lhes concederam a anistia e a cidadania haitiana por tudo que fizeram pela causa dos haitianos. Tanto que sobre eles Dessalines se referiu como "os negros brancos da Europa", como expressão de sua solidariedade e gratidão.

 


 

 

Não se limitando somente a este caso, quando algumas outras exceções também foram o caso de mulheres brancas casadas com negros (ou dispostas a se casarem com negros, garantindo de qualquer forma o desaparecimento dos não negros no Haiti) e de uma comunidade alemã convidada pelo próprio Dessalines para se instalar no seu país. 

 

Mas aos demais apenas morte, inclusive as mulheres, porque Dessalines entendia que elas poderiam dar à luz outros filhos brancos. Puro extermínio de um grupo entendido como merecedor da morte e nada mais. Isso lembra algo? Muitos podem dizer que não há comparação. Até porque muitos podem justificar que foram apenas entre 3 a 5 mil mortes ocorridas neste evento. Numero pouco em vista que a população branca no Haiti era de fato pequena. Mas será que o pequeno numero pode amenizar o horror deste ato realmente?

 

Muitos podem dizer que Dessalines queria devolver somente todo o mal que antes receberam. Tanto que em uma proclamação oficial de 8 de abril de 1804, o monarca haitiano declarou: "Demos a esses verdadeiros canibais, guerra por guerra, crime por crime, ultraje por ultraje. Sim, salvei meu país, vinguei a América ". Contudo, como ter certeza que todos os brancos lá foram opressores dos negros?  Tanto que em sua defesa se dizem de rumores sobre a população branca intentar deixar o país para convencer potências estrangeiras a invadir e reintroduzir a escravidão no Haiti. Seria possível isso mesmo? Que cada um tire suas conclusões.

 


 

Polêmico, se criticar uma retaliação por outras violências antes sofridas, contudo, será possível se justificar qualquer forma de genocídio? Apenas uma pergunta. Não uma afirmação. Tanto que provavelmente os próprios subordinados de Dessalines sobre isso podem ter se perguntado. Pois apesar da ordem dada, foram relativamente poucas as mortes executadas até a chegada do monarca haitiano a cada uma das localidades onde ele fez questão de averiguar o cumprimento de seu decreto. Nenhum branco, principalmente se francês, (exceto  os casos já citados) ele queria ver poupado. 

 

Para tanto apelando ao ardil, como após certo tempo, prometer aos brancos sobreviventes que estivessem escondidos seria dada, enfim, a anistia. Mas como foi dito, apenas um ardil, pois uma vez se revelando o paradeiro dos últimos sobreviventes, a morte igualmente não tardou. De modo que após isso a população branca no Haiti é praticamente de todo eliminada. O historiador Philipp Girard escreve em sua obra Paradise Lost que "(...) os massacres foram tão imperdoáveis ​​quanto tolos". Pois este ato se fez em boa parte a vontade de um déspota que se fez o general Dessalines, não diferente dos caudilhos sul-americanos ou mesmo do soberbo Napoleão Bonaparte. 

 

E o pior que sua vingança ao fim só se fez uma vingança. Uma vez que Dessalines sentido receios de repercussões sobre este fato, em seguida não poupou esforços para garantir que o Haiti não seria uma ameaça para outras nações, inclusive firmando relações amigáveis até com as nações onde a escravidão ainda era permitida. Logo, fechando os olhos ao drama que antes viveram.

 


 

 

Contudo, toda essa brutalidade não se restringiu somente a este evento de 1804, muito menos a apenas um grupo. Inclusive com seu bisneto Cincinnatus Leconte ao se tornar presidente do Haiti em 1911escolhendo como inimigo a ser agora perseguido, o grupo de minorias sírias que viviam no país. Além de que revoltas semelhantes (como, por exemplo, no Brasil, a revolta dos Malês em 1835) igualmente idealizaram promover “justiça” igual.

 

Acontecendo que esta mesma violência acabaria enfim se voltando contra quem tanto a instigou. Sem exceções. Como com Dessalines que membros insatisfeitos com a sua administração tirânica, incluindo os generais Alexandre Pétion e Henri Christophe, começaram uma conspiração para lhe derrubar. Terminando com esse soberbo Dessalines assassinado ao norte da capital, Porto Príncipe, em Larnage (agora conhecido como Pont-Rouge), em 17 de outubro de 1806, com seu corpo desmembrado e mutilado. Não se entendendo o seu fim terrível como justiça, quando sim como consequência de uma onda de violência que tanto cresceu que ao fim engoliu aos que se achavam a salvo dela. 

 

Igual Leconte que um atentado deu fim a sua vida e ao seu governo no ano seguinte a sua posse. Tanto quanto ao fato de que essa revanche, em alguns aspectos, ao fim acabou até mesmo levando a outros caminhos que não um maior respeito aos negros de outras nações que testemunharam essa vingança de 1804. 

 


 

Pelo contrário, seu ato de vingança acabou, indiretamente, ajudando muitos anos mais tarde, pelo menos em uma situação, no mínimo irônica, aos interesses, dos opressores brancos. Pois na Guerra Civil dos Estados Unidos, de 1861 a 1865, um argumento para adesão de muitos brancos à causa dos escravagistas foi a alegação do medo de um genocídio semelhante ao Massacre do Haiti de 1804. Independente de o ser ou não possível que acontecesse. 

 

Logo, o objetivo deste fato ser aqui comentado é se refletir: É justo o oprimido se tornar opressor do antigo opressor? Até que ponto isto não o torna igual ou mesmo pior que o outro? Ou pelo contrário, poderia este fato ser entendido como uma demonstração de força a intimidar possíveis novos abusos? Podemos rotular a alguém por pertencer a um grupo entendido como, de alguma forma, mais privilegiado que outro? Podemos condenar a todos por um mesmo crime, mesmo os que vieram muito após o ocorrido? Apenas o relembrar das mágoas do passado é um caminho realmente viável? Fica assim um dilema aos que o queiram encarar decifrar.

 

Não que se queira minimizar aos crimes do passado, genocídios e todas as formas de humilhação que os povos negros por séculos tiveram de suportar. Mas será que apenas relembrar a culpa por crimes que os ancestrais das atuais e futuras gerações não corre o risco de fomentar rancores e ainda mais conflitos? Ou será que a justiça precisa necessariamente punir para se entender como justiça? Ou mesmo se não seria mais certo e simples mostrar as atuais gerações que a vergonha dos que os antecederam (no caso a exploração brutal de séculos imposta aos negros) precisa se corrigida com medidas que deem fim à exclusão e marginalização, invés de se preferir mais atirar ao rosto destas a culpa por estes males?

 

Sobre o autor:

 


LUIS MARCELO SANTOS: é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia e mestre em História pela UEPG, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.

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