As informações que seguem nesse ensaio são oriundas das minhas experiências empíricas, pesquisas acadêmicas e autônomas sobre a afro-religiosidade e a quimbanda. No que tange às experiências empíricas, ressalto que eu, Pai Jean do Exu Capa Preta, sou um macumbeiro quimbandeiro e umbandista (de umbanda trançada), iniciado pelo Pai Aldacir do Exu Sete Ventanias, que me concedeu as prerrogativas sacerdotais. Em conjunto com a minha esposa, Mãe Érica de Oyá, eu dirijo o Terreiro Encruzilhada do Axé, cuja Casa de Kimbanda Doutor Capa Preta do Inferno faz parte da sua composição. No que tange às pesquisas acadêmicas, desde 2015 eu publico pesquisas de cunho acadêmico (TCC, dissertação de mestrado, tese doutorado, capítulo de livro, artigos em periódicos) sobre a afro-religiosidade e sua etnobotânica, etnografia, relações socioambientais, territórios e cosmopolíticas. Muitas dessas informações auxiliaram para fundamentar os escritos que aqui seguem. No que tange às “pesquisas autônomas”, se tratam de informações onde se inserem os livros e produções independentes publicadas sacerdotes/sacerdotisas afro-religiosos, que auxiliam em diversas reflexões, especialmente da quimbanda.
Esse é um texto destinado para a introdução à quimbanda e compreensão de seus elementos básicos de ritualísticas, heranças filosóficas, culturais e mágicas dos povos congo-angolanos (principalmente), iorubás e fons, indígenas, e de segmentos da bruxaria ibérica e ocultismo. Também será desdobrada uma discussão a partir da etimologia do quimbundu da palavra quimbanda, que proporciona interessantes reflexões sobre as polaridades da arte de curar e de demandar entre o povo quimbandeiro (iniciados e entidades).
A quimbanda é uma manifestação mágico-religiosa afro-brasileira que pertence aos Exus e Pombas-Giras, que são os protagonistas das suas doutrinas. Expressões afro-religiosas como as “santidades”, calundus, cabulas, macumbas cariocas, candomblés de angola, candomblés de caboclo, os batuques e a linha cruzada do Rio Grande do Sul, e a própria umbanda, precederam a quimbanda e forneceram o arcabouço epistêmico e mágico para a sua proliferação em solo brasileiro no formato atual.
Existe uma multiplicidade de compreensões gerais e específicas da quimbanda que podem ser similares e diferentes de acordo com as peculiaridades de cada terreiro. Vale ressaltar a máxima da religiosidade afro-brasileira descrita pelo antropólogo Barbosa Neto (2012) que diz que “cada casa é um caso” (BARBOSA NETO, 2012), e assim, conceitos, filosofias, epistemes, que são relevantes para um terreiro, podem ser triviais, ou inexistentes noutro. Deste modo, cada terreiro pode conceber o termo quimbanda de modo diferente, com significados e sentidos diferenciados. Não me cabe efetuar o julgamento de qual definição de quimbanda é mais adequada, contudo, me cabe apontar a diversidade de compreensões que se agregam ao termo quimbanda, a partir dos diálogos que são possíveis tecer.
De modo geral, realço que a quimbanda é compreendida como um culto dos Exus e Pombas-Giras, com filosofias, rituais e estéticas que são centralizadas nesses seres. Embora ela possa ser compreendida como uma linha espiritual “de esquerda”, ou, do “lado esquerdo do cosmos” em muitos lugares, ela não é circunscrita a uma mera linha esquerda dos rituais umbandistas antigos, e possui um conjunto de práticas que caracteriza e lhe diferencia atualmente.
Cada terreiro ou segmento que diz tocar quimbanda tem as suas próprias formas de legitimar o que é ou não quimbanda. Existe uma diversidade de concepções. Contudo, em meu entender, de acordo com as minhas vivências, entre os principais elementos que configuram uma quimbanda estão a presença dos assentamentos1 dos Exus e Pombas-Giras – que são as entidades protagonistas da quimbanda –, o sacríficio sagrado dos animais por meio da faca recebida no ritual de assentamento (axé da faca)2, incorporação dos Exus3 e os trabalhos para caminhos abertos, amor, cura e principalmente demanda, seja para se defender ou atacar.
A quimbanda é conformada pelo cruzamento de lógicas e práticas de diferentes povos e religiões, dos povos iorubás, fons, congo-angolanos (do tronco linguístico bantu), indígenas (principalmente tupi-guaranis), da bruxaria ibérica e seu diabolismo popular, do ocultismo ocidental (especificamente da goecia e de certos aspectos da numerologia cabalística), do povo cigano, entre outros. Cada influência cultural pode se destacar em maior ou menor proporção a depender do segmento de cada terreiro de quimbanda.
Os povos congo-angolanos forneceram o substrato mágico e filosófico pelo qual a quimbanda opera. Os congo-angolanos pertencem ao tronco linguístico banto, cujo grupo é muito subestimado em estudos mais clássicos sobre as religiões afro-brasileiras, pelo fato das suas lógicas favorecerem entrecruzamentos diversos com elementos de outros povos. Foi, a partir da cosmovisão destes povos, que os signos da cruz e da encruzilhada (Mpambu Nzila), emergiram com potência nas cosmologias afro-brasileiras, em especial na quimbanda, sintetizando a relação e os cruzamentos do mundo visível com o invisível, sendo reproduzidas por meio da multiplicidade dos pontos-riscados, assentamentos, divindades e da lógica de entrecruzamentos.
Na cosmovisão dos congos, o cosmograma de cruz e a encruzilhada é nominado de dikenga (Figura 01), e remete a significados de encontros e desencontros do tempo, e processos de vida e morte, tal como afirma o professor e sacerdote afro-religioso Luiz Antônio Simas (2021, p.101):
A cosmopercepção dos congos é representada pelo dikenga, uma mandala marcada por um círculo dividido por uma cruz, que apresenta os mistérios da vida, do universo e do tempo a partir dos quatro momentos do sol: o nascer, na alvorada; o auge do brilho, ao meio-dia; o poente, à meia-noite, quando o astro brilha no outro mundo. Se o círculo da mandala representa a órbita circular do espírito (nascimento, vida, morte e renascimento em outro mundo), a cruz é expressão da encruzilhada dos fluxos e encontros entre as dimensões do visível e do invisível, do mundo dos vivos e do mundo dos espíritos (SIMAS, 2021, p.101).
Figura 01: representação da dikenga, o cosmograma fundacional do cosmos congolês. Fonte da figura: google imagens (2023).
A encruzilhada é um conceito fundamental para compreensão da quimbanda. Ela deriva do cosmograma bacongo dikenga, e está presente no imaginário coletivo da relação da humanidade com os espíritos desde os tempos da antiguidade, tal como Simas (2021) aponta:
As encruzilhadas são lugares de encantamentos e exemplos não faltam: os gregos e romanos ofertavam à Hécate, a deusa dos mistérios do fogo e da lua nova, oferendas nas encruzilhadas. No Alto Araguaia, era costume indígena oferecer comidas propiciatórias para boa sorte no entroncamento dos caminhos. O padre José de Anchieta menciona presentes que os tupis ofertavam ao curupira nas encruzilhadas dos atalhos. O profeta Ezequiel, segundo o relato do Antigo Testamento, viu o rei da Babilônia consultando a sorte numa encruzilhada. Gil Vicente, no Auto das fadas, conta a história da feiticeira Genebra Pereira, que vivia pelas encruzilhadas evocando o poder feminino. Apesar dos exemplos, é na cultura dos congos que as encruzilhadas, sobretudo em formato de cruz, adquirem com maior ênfase o papel de excelência das dinâmicas espirituais do tempo, da vida e da morte (SIMAS, 2021, p. 100).
O modelo da encruzilhada fundamenta vários elementos, grafias, e sentidos presentes na quimbanda: os pontos-riscados, pontos-cantados, tridentes dos Exus e Pombas-Giras, os atributos, comportamentos e modos de atuação das entidades, entre outros.
A encruzilhada, é um território que expressa a plenitude da lógica da quimbanda, que além de ser um ponto-de-força (lugar sagrado) de cruzamento de ruas e avenidas onde trabalhos importantíssimos são efetuados, também é, um modelo de pensamento espaço-temporal, pelo qual todas as formas do culto podem ser compreendidas e acionadas. Ela irrompe na manifestação de diversos momentos, principalmente pela continuidade entre domínios existenciais, tal como a vida e a morte, o presente e o passado, a pessoa e o assentamento, entre outras.
É possível observar a encruzilhada em diversos momentos do cotidiano quimbandeiro/macumbeiro, desde os encontros das entidades com os corpos humanos e não humanos em variados arranjos: por meio das incorporações, que são entendidas enquanto “uma experiência radical de alteridade, “outro” introduzido no “mesmo”” (ANJOS, 2006, p.21); por meio das iniciações, de aprontamentos dos corpos e assentamentos, pelos quais existe uma relação permanente e recíproca da potência cósmica com o humano, pela mediação de múltiplos elementos, onde os entes ocupam os corpos, e fazem do “terreiro um lugar de sobreposição de territórios” (ibidem); por meio das oferendas, nos quais humanos com os seus desejos e necessidades se encontram com os entes mediados por alimentos, vegetais, animais e outros elementos de axé para buscarem realizações; nos pontos-de-forças (além das encruzilhadas propriamente ditas, mas também as matas, calungas, e outros) que são ocupados pelo encontro de sentidos, significados e uma diversidade sócio-cósmica afro-religiosa, entre outros.
Vale ressaltar também, que foi a partir da lógica dos povos congo-angolanos que o culto aos ancestrais proliferou nas religiões afro-brasileiras, os quais permeiam as falanges dos Exus e Pombas-Giras, bem como os vocábulos litúrgicos, tais como, Tata (além de sacerdote de matriz bantu, também designava conjunto de espíritos cultuados na cabula e macumba), Kalunga (que além de designar o campo santo, também designava o espírito do mar, ou ser supremo), embanda (sacerdote da cabula e da macumba), cambone (auxiliar dos sacerdotes), engira (que significa caminho, e também é a sessão ritual), os pontos-riscados, entre muitos outros elementos.
Dos povos fons e iorubás os Exus e Pombas-Giras de quimbanda herdaram o comportamento, ofícios cósmicos e modos de atuação muito similares ao Orixá Exu e ao Vodum Legbá, donos das encruzilhadas, mediadores das divindades, que apenas trabalham mediante os pagamentos, suas atuações como tricksters dos panteões, os atributos de erotismo e formas sensuais, entre outros.
Já os povos indígenas emergem na quimbanda por meio de elementos da cosmologia tupi-guarani, da utilização de bebidas alcóolicas e tabaco para potencializar a comunicação e ação dos espíritos. O uso ervas na quimbanda, seja para banhos, defumações, beberagens, garrafadas, chás, remédios, entre outros, é subsidiada pelo contato dos povos indígenas com os povos africanos, e os intercâmbios de conhecimentos da flora brasileira. Da influência indígena, vale apontar a presença da floresta, que é o ponto-de-força e reino das matas, e dos caboclos quimbandeiros: Exu Pantera Negra, Exu Cobra, Exu Arranca-Toco, Pomba-Gira Sete Cobras, entre outros.
No que tange às influências da bruxaria ibérica e do ocultismo, entre outros elementos do imaginário europeu (repleto de feitiçarias, santos e bruxas) que se entrecruzou à quimbanda, vale ressaltar que a sua presença, de acordo com o Dr. Sá Júnior (2007) já se encontrava nas macumbas cariocas4 e outros cultos que precederam a quimbanda. Os elementos da feitiçaria medieval foram assimilados a partir dos “livros malditos” combatidos pelo Santo Ofício em outrora, tais como o Livro das Bruxas, Livro de São Cipriano, Grimório Verum, Legemeton, dentre outras obras correlatas, junto às invocações e acordos com entidades ligadas ao imaginário infernal europeu, tais como Lúcifer, Belzebu e Maria Padilha, eram assimiladas desde às macumbas, e foram salientadas em algumas quimbandas, visando curar doenças, atrair prosperidade, proteção, adquirir novas habilidades espirituais, efetuar amarrações amorosas, sortilégios e resoluções para qualquer espécie de problema para a comunidade do terreiro e seus clientes.
Nessa conjuntura de diferentes influências culturais e seus diversos entrecruzamentos, a quimbanda também pode ser diferenciada em vertentes pelos seus praticantes, embora nem todo terreiro quimbandeiro se identifique com uma vertente específica. São várias as vertentes: quimbanda mussurumin, quimbanda das almas, quimbandas de almas e angola, quimbanda mista, quimbanda cruzada, quimbanda nagô, quimbanda luciferiana, quimbanda mussifim, quimbanda xambá, quimbanda malei, quimbanda congo, entre outras. Cada segmento possui suas idiossincrasias e segredos, que são aprendidos apenas com um sacerdote ou sacerdotisa preparados nesses segmentos.
Entre os quimbundos, o kimbanda era um sacerdote que também era médico da sua comunidade, cuja natureza participava dos seus ofícios curativos. O nome substantivo, etimologicamente, significa cura, e no prefixo da palavra quimbundo, se substituído o “k” pelo “u”, compõe a palavra umbanda, significando a arte e/ou ofício de curar, que era exercido pelos kimbandas.
Bandeira (1961) alega que a etimologia da palavra umbanda pertence à língua quimbundo e é pronunciada em Angola, Congo, Guiné, entre outros diversos territórios da zona banto, em África e, até mesmo, em rituais de nação jêje, na Bahia, tal como explicita:
[...] da língua quimbundo, comum a várias tribos e dialetos, especialmente entre os Umbundos, e segundo o etnólogo Pe. Carlos Estermann (Etnografia do Sudoeste de Angola), é bastante usado entre os Nhaneka-Umbi e igualmente pelos Cunhamas, embora nestes com menos frequência em seus cultos, entretanto não se restringe a Angola, pois é encontrado na Guiné nos cânticos de invocação espiritual. Abrange alguns significados semelhantes: arte de curar, magia (BANDEIRA, 1961, p.31).
Nesta conjuntura, vale apontar que o quimbandeiro é sobretudo um curador, que a partir das técnicas afro-religiosas, como os ebós, banhos de ervas, benzeduras, chás, despachos, defumações, oferendas, sacrifícios de animais, entre outras, mobilizam práticas ancestrais de cura, da medicina dos antigos africanos kimbandas, ngangas, babalorixás, entre outros zeladores dos espíritos, deuses e ancestrais. Os procedimentos acionados pelos quimbandeiros (e outros sacerdotes-feiticeiros afro-religiosos em geral) favorecem a cura por meio de “tratamento e prevenção de doenças que cujos métodos e eficácia diferem do tratamento convencional” (NETO, 2012, p. 234). Tal como afirma Mãe Irma, da linha cruzada e do batuque afro-gaúcho na etnografia de Ramos (2015), “a religião é como uma medicina”.
O entendimento da cura pela perspectiva afrorreligiosa não é circunscrita apenas à cura das doenças, vícios, traumas, e aspectos fisiológicos da natureza humana, apesar da existência de múltiplos trabalhos que tratam dessas questões. Os trabalhos e obrigações rituais da macumba trocam axés entre os mundos, proporcionando o reestabelecimento contínuo da saúde, do bem-estar e dos caminhos abertos.
Sendo o quimbanda um curador, é interessante apontar a etimologia da palavra cura para ampliação do entendimento da quimbanda.
Curar, em latim, significa literalmente "cuidar". Muitos termos do português conservaram esse sentido literal: curador, curatela, curioso. Outros termos há, como procurar, descurar, segurar (de securus, sem cuidado), que literalmente significam cuidar de alguma coisa [...] A cura, então, pode ser entendida como cuidado e como resultado desse cuidado, a recuperação da saúde. (PAIVA, 2007, p. 99-100).
Assim, cura também é cuidado. Cuidar dos seus Exus e Pombas-Giras é o dever dos iniciados na quimbanda, mediante oferendas em suas firmezas e assentamentos – que são extensões do iniciado –, ser um zelador deles, é um ato de cura/cuidado. Deste modo, quando o quimbandeiro semanalmente nutre os seus assentamentos com os axés e oferendas, e atende a comunidade que recorre aos seus serviços, nesse entendimento mais amplo, ele está exercendo o ofício da cura, que trata de cuidados coletivos com a saúde e para manter os caminhos da vida abertos e livres de obstruções energéticas nocivas.
Vale ressaltar que o bruxo quimbandeiro sabe manipular as ervas e oferendas para múltiplas finalidades, de modo que pode promover a cura, ou o seu contrário, que é o envenenamento, ou demanda (que não é circunscrito ao corpo físico, mas também toma proporções espirituais). Quem sabe curar também sabe envenenar. Por exemplo, na cosmologia iorubá se compreende que todas as folhas (ewes) são que nem o seu Orixá regente, Ossaim, elas possuem os dois lados, o benéfico e curador, e o maléfico e envenador, que podem ser acionados de acordo com o conhecimento e necessidade do feiticeiro. Embora não exista a presença direta de Ossaim na quimbanda, existe o amplo uso das ervas – indispensáveis para quase todos os rituais –, cuja lógica ioruba do uso das folhas se faz presente cruzada no culto, e o quimbandeiro enquanto um curador que usa das folhas e outros elementos da natureza para abrir os caminhos e trazer saúde, também pode se valer delas para trancar os caminhos e trazer doenças. Parafraseando Paracelso, o que diferencia o remédio do veneno é a dosagem, e o quimbandeiro é um verdadeiro mestre da dosagem dos elementos ritualísticos para promover o bem ou o mal.
Um exemplo interessante que cabe nesse raciocínio, se trata do uso da pimenta, um vegetal de Exu por excelência, a qual, a presença da sua semente no trabalho ativa suas potências curadoras, para imunizar o corpo espiritual, proteger das demandas e emanações nocivas, reestabelecer a saúde, reavivar a paixão de um relacionamento amoroso, entre outros benefícios, que lhes destacam como poderoso remédio. Contudo, se as suas sementes forem retiradas, junto a técnicas adequadas e a outros elementos, são ativadas suas propriedades tóxicas, que causam queimaduras no campo energético de outrem, incitam brigas, doenças gastrointestinais, incômodos diversos, além de fomentarem a fúria das entidades a quem são endereçadas. Mesmo quando acionadas apenas em seu aspecto curador, se deve ter parcimônia com seus usos, que devem ser dosados com cuidado, para não desencadear efeitos reversos.
Essa relação, que diz respeito à arte de ter cuidado (arte de curar, quimbanda) e suas dosagens, se conecta ao diálogo com a noção de pharmakon, que, de acordo com a filósofa da ciência Stengers (2015),
[...] O que caracteriza o pharmakon é, a um só tempo, sua eficácia e ausência de identidade: ele pode ser conforme a dosagem e o uso, tanto o veneno quanto o remédio [...] Que “eles podem ser perigosos” é óbvio – qualquer pharmakon pode ser perigoso. É o valor de objeção desse enunciado que é importante colocar em suspenso ao se fazer referência à instabilidade do pharmakon, remédio ou veneno [...] (STENGERS, 2015, p.94-95)
Realço que a potência de curar ou envenenar relativa à dosagem e técnica, é especialidade dos quimbandeiros, dos diversos dirigentes espirituais afro-brasileiros e de todos os Exus e Pombas-Giras, assim como daqueles que detém títulos de curandeiros, feiticeiros, bruxos, magos, xamãs5, macumbeiros, rezadores, guardiões, tatas, entre outros que exprimem os conhecimentos cosmofarmacológicos. Por exemplo, o Exu Capa Preta, é reconhecido nos terreiros como “Espada de dois gumes”, pois “corta ora para o bem, ora para a mal”, quando ele se apresenta com tridente (no astral ou em terra/incorporado), vem para demandar, nominado de Bruxo Capa Preta, mas se estiver com sua bengala, vem para curar, ensinar, e destrancar caminhos, nominado de Doutor Capa Preta. Essas qualidades evocadas pelos títulos, Bruxo e Doutor, exprimem as polaridades curadoras e feiticeiras da natureza dessa entidade.
É possível, ainda, analisar inúmeros outros exemplos – que não são apenas vegetais – que atuam por meio das suas polaridades, dosagens e técnicas. A exemplo de alguns trabalhos com ovo de galinha, que com a clara e enterrado nos pés de uma árvore, endereçado ao Exu do Lodo, ou entidades do povo Lodo, pode trazer virilidade, contudo, se retirada suas claras e enterrada num brejo, endereçada às mesmas, pode causar impotência sexual. Outro exemplo, se trata do fruto da manga, muito trabalhado com Exu Mangueira, o qual pode revitalizar, ampliar a saúde, fortalecer a cabeça, trazer bom humor, paixão e alegria, ou seus contrários.
Nessa lógica, mesmo os vegetais, entidades e elementos que contém uma potência tóxica, são poderosos para operar a cura para as mais diversas situações, tais como Exu Cobra6, Exu Morcego7, Exu do Lodo, Exu Sete Venenos, Exu Sapo, Omolu Afoman8, Exus e Pombas-giras do povo do lixo, flores de trombeta9, sementes de mamona, folhas de comigo-ninguém-pode, folhas de jibóia, tabaco, animais peçonhentos secos, entre outros, que podem derrubar, adoecer, intoxicar e levar à miséria quaisquer seres caso seus mistérios negativos sejam trabalhados. Porém, se ativados com a dosagem e o saber adequado, levantam as pessoas das situações mais difíceis, dolorosas e instáveis, cujas entidades brandas são incapazes de alcançar. Assim, vale ressaltar que os quimbandeiros sabem conviver com as alteridades de cada coisa, não importa quão estranhas, marginais, horripilantes e disformes sejam. Eles respeitam as suas naturezas, identificam suas potencialidades e movimentam seus poderes, fazendo-os participantes da realidade, sejam eles a eguns, Exus, Pombas-Giras, demônios, animais, vegetais, humanos marginalizados, ou quaisquer outros.
Se tratando do lado de demanda (feiticeiro, destrutivo, envenenador) da quimbanda, vale ressaltar que ela possui ritualísticas especializadas em ataques e defesas espirituais. A demanda sempre foi uma arma dos feiticeiros afro-religiosos para se defenderem das injustiças sociais impugnadas por 350 anos de escravidão, racismo estrutural e institucional e violências diversas impugnadas pelo sistema dominante e seus difusores. Até pouco menos de um século as práticas afro-religiosas eram consideradas criminosas, os terreiros eram invadidos pela polícia, e diversas lideranças eram assassinadas e violentadas. Neste contexto as demandas emergiram como formas eficazes para se defender, resistir e continuar a existência. Cada feiticeiro tem os seus motivos para demandar ou não. Não cabe ao quimbandeiro o julgamento do malefício que o outro faz ou deixa de fazer.
Nessa conjuntura é possível compreender a quimbanda e os quimbandeiros na complexidade e diversidade de cruzamentos, influências histórico-culturais, vertentes, polaridades cósmicas da cura às demandas e elementos que lhes conformam. Vale ressaltar que a quimbanda é uma religião de resistência, oriunda dos quilombos e das favelas, cuja prática de demandas da qual é especialista se trata de um modo de enfrentar o sistema dominante e lograr segurança e continuidade da existência afro-religiosa.
Notas:
1 São "fetiches" com terras de pontos de forças (encruzilhada, calunga, matas, rios, praias, etc), otás (pedras), pontos riscados em ferros, tridentes, facas, armas, entre outros arregimentados num vaso de barro ou panela de ferro. Eles são o corpo físico dos Exus, possuem diversos portais pelos quais eles transitam, filtram e direcionam as energias do terreiro. É recomendável que mensalmente os assentamentos sejam nutridos com o sangue dos sacrifícios.
2 Não existe quimbanda sem a menga (sangue dos animais sacrificiais). A mão de faca é recebida ritualmente de outro sacerdote/sacerdotisa no momento do assentamento do Exu/Pomba-gira, afinal, esse é o sentido de um culto ancestral.
3 O oráculo tradicional de quimbanda é a incorporação. A entidade que fala diretamente no corpo, os demais oráculos de quimbanda que surgiram, emergiram e foram adaptados a partir das instruções de entidades incorporadas. Há pessoas que dizem ser mestres de quimbanda e não incorporam, não acho certo, mas não acho inválido, desde que tenha um modo de conversar com as entidades.
4 Por exemplo, os elementos mágicos do catolicismo popular, que eram comuns para o camponês medieval – não reconhecido, combatido e menosprezado pelo Vaticano –, eram manifestos por meio das famosas “rezas fortes” contra mau-olhado, infortúnios, doenças, esterilidade, promessas efetuadas para a Virgem Maria e diversos santos, relatos de milagres, etc. (BASTIDE, 1971; RAMOS, 2001).
5 Título cunhado principalmente a entidades do povo das matas, como os diversos caboclos quimbandeiros.
6 Bruxa Fernanda (2010) e Coppini (2015) lhes apresentam como grande alquimista.
7 Especialista em curar ou incitar problemas mentais (COPPINI, 2015). Certa vez, um falecido pai de santo, em Dois Vizinhos-PR, me contou que antigamente curou um câncer de uma mulher ao incorporar Exu Morcego, que matou um frango com os dentes no pescoço, lhe absorveu o sangue, e fez a transfusão sanguínea com seus dentes na consulente. O mesmo relata que todos os filhos da casa e pessoas presentes ficaram demasiadamente estarrecidos com o modo que o trabalho foi realizado.
8 Qualidade de Omolu cruzado com Exu na linha do candomblé, que anda pela terra com sacolas que contém doenças, e pode retirar as doenças das pessoas e guardar em suas sacolas, ou tirar as doenças das mesmas e coloca-las sobre as pessoas.
9 A Datura stramonium L., conhecida como erva do diabo, trombeta de anjo, ou trombeta do diabo, figueira do inferno, é empregada para banhos de descarrego e trabalhos para incitar Exu agir com grande força e agressividade, com a possibilidade de livrar pessoas de difíceis situações. No contexto investigado não existe a sua consagração como enteógeno para fins de expansão de consciência.
Referências bibliográficas:
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BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuições a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: EdUSP, 1971.
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Sobre o autor:
Pai Jean do Exu Capa Preta (Jean Filipe Favaro). Doutor e Mestre em Desenvolvimento Regional. Engenheiro florestal. Pesquisador de religiões afro-brasileiras. Dirigente do Terreiro de Makumba, Umbanda e Kimbanda Encruzilhada do Axé. E-mail: jeanfilipe.favaro93@gmail.com.
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