ALIMENTOS: Uma perspectiva histórica

 

1.

Andando pelas ruas de uma grande cidade, como Porto Alegre, temos acesso a uma variedade enorme de restaurantes, lanchonetes e cafés. Na região do centro histórico da cidade, principalmente, as opções são ainda maiores. 

Existem restaurantes com comida de outros países e culturas longínquas: comida árabe, japonesa, chinesa, italiana, francesa, tailandesa, mexicana, uruguaia etc. 

Esse intercâmbio alimentar é algo relativamente novo. Deu-se graças a invasão e colonização da América a partir do século XV e da integração de partes da África e Ásia no sistema mundial capitalista, mais estruturado em fins do século XIX apenas. 

Quando a espécie homo sapiens surgiu no planeta, há cerca de 300 mil anos, ela iniciou uma grande jornada, a maior de nossa história, e se deslocou em direção a Eurásia. Na região europeia encontrou com neandertais, na Ásia encontrou com outras espécies é assim foi se assimilando, eliminando outros gêneros e, claro, se alimentando do que podia caçar ou coletar no ambiente

Após essa dispersão original, grupos humanos viveram em um relativo isolamento principalmente na América, na região central e do oriente asiático e na África subsaariana. Ao longo de milênios, esses grupos formaram um mosaico de povos diferenciados, com cultura, língua e alimentação própria. 

Não caberia neste breve artigo, uma exposição mais longa sobre os desenvolvimentos de tais povos e civilizações ao longo de mais de 30 mil anos. Mas o que interessa para nosso objetivo aqui é que por volta do século XIV e XV já haviam sociedades complexas distintas em todo mundo, e em pouco tempo elas estariam conectadas num sistema mundial maior, que estava se formando com a colonização da América. Essas sociedades, em cada lugar, tinham seu próprio tipo de alimentação. Daí que a formação do capitalismo em escala mundial também possibilitou o intercâmbio alimentar. Aliás, as “grandes navegações” europeias se deram justamente por causa de alimentos, no caso as especiarias.


2.

Qual a contribuição dos povos originais da América no intercâmbio alimentar no mundo?

Os astecas, ao norte, cultivavam milho, cultura que provavelmente foi domesticada por povos muito mais antigos que os astecas e se espalhou pela região da Mesoamérica. Eles também eram responsáveis por cultivar o abacate, abóbora, cacau e variedades de feijões (frijoles) e pimentas (chilli)

Os incas ao sul a batata era o principal cultivo. Além dela, eles cultivavam tomate e quinoa. Os povos originais do território que corresponde ao Brasil (tupi-guarani), também cultivavam tomate, abóbora, feijões e mandioca. O mamão e o cacau também eram consumidos.

No mapa abaixo, é possível visualizar os alimentos originários de cada região do mundo – claro que, o mapa não mostra que existem variedades desses alimentos, dependendo da região.

Imagem disponível em: https://catracalivre.com.br/gastronomia/historia-dos-alimentos-mapa-destaca-origem-dos-alimentos-como-banana-coco-e-manga/#google_vignette


Em relação a proteínas os incas comiam carne de alpaca. Os astecas tinham uma dieta mais rústica, sua principal fonte de proteína vinha de insetos como chapulins (uma espécie de gafanhoto) formigas e lagartas (vermes do magey).


3.

Sabendo dessa variedade toda, podemos voltar ao presente e perceber o impacto do intercâmbio alimentar.

Vejamos o exemplo da batata. Como dito acima, ela foi cultivada (domesticada) pelos povos andinos, os incas e seus tributários. Com a invasão/colonização europeia, esse alimento acabou se difundindo pela Europa, e já no final do século XVI chegou à Inglaterra, onde se tornou um alimento bem popular, pela facilidade do cultivo na região. No século XIX, com o crescimento da industrialização, a batata se tornou um alimento barato para a classe trabalhadora, a ponto de se tornar um dos pratos símbolos do país, o fish and chips (peixe com batata frita).

A batata foi apropriada de tal forma pelos ingleses que hoje é conhecida como batata inglêsa. A própria variedade da batata cultivada no Brasil é de origem inglesa! Isso tem uma explicação. No final do século XIX, muitos ingleses vieram para o Brasil para trabalhar na parte da engenharia de ferrovias, que se espalhavam por alguns estados de modo a facilitar o escoamento de mercadorias brasileiras para a Europa. Esses ingleses, vindos do país do fish and chips, exigiam batatas em suas refeições. Daí o nome “batata inglesa” pegou¹.

Hoje em dia, quem costuma frequentar os junk fast foods ao estilo McDonalds ou Burger King pede, na maioria das vezes, o hamburguer com batatas fritas.

O chocolate é outro caso emblemático. O cacau, sua matéria-prima, é cultivado na Mesoamérica e no Brasil há mais de 10 mil anos. Os astecas utilizavam uma infusão com cacau, à qual chamavam de chocoatl, para rituais religiosos.

Segundo a lenda, foi Hernán Cortez que teria levado as primeiras sementes de cacau para a Europa. Porém, foi somente no século XVIII que uma bebida de cacau se espalhou pelo continente. E já no início do século XIX surgiu o chocolate ao leite, na Suíça, país que é sempre lembrado quando se fala em chocolate.


4.

O economista francês Jacques Attali, em seu livro A Epopeia da Comida, traz um importante alerta sobre o significado prático, social, político e filosófico da alimentação no nosso cotidiano:

Se quisermos que a humanidade perdure, e que cada um possa viver plenamente, naturalmente, saudavelmente, uma vida humana de verdade, será preciso transformar a maneira como são produzidos e distribuídos os alimentos hoje; é necessário bastante tempo para pensar neles, para prepará-los, servi-los, consumi-los, desenvolver relações sociais em torno deles; e entender como os poderes que os envolvem são construídos e desfeitos. É preciso que saiamos da sociedade do silêncio vigiado, na qual todos são condenados a comer, mudos, uma alimentação que só beneficia uma indústria cada vez mais gananciosa e cínica, e que conta com nossa solidão para nos levar a consumir ainda mais” (ATTALI, 2021, p. 225).

A alimentação é nossa necessidade mais básica. Graças a ela, as sociedades foram construídas, impérios formaram e redes de troca capitalistas se estabeleceram no mundo.

Hoje sabemos o quanto grandes empresas influenciam na nossa visão do alimento e a forma como nos alimentamos. Pensar nos alimentos é, também, pensar nas relações de poder, economia, ciência, filosofia, sociologia e, claro, na história da humanidade.


NOTAS:

¹ https://g1.globo.com/pr/parana/caminhos-do-campo/noticia/2021/02/07/da-cordilheira-dos-andes-a-inglaterra-conheca-a-historia-da-batata.ghtml


REFERÊNCIAS:

ATTALI, Jacques. A epopeia da comida: Uma breve história da nossa alimentação. São Paulo: Vestígio, 2021.


Sobre os autor:

 
Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata (GEACB). Professor de escola pública. Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Desenhista amador, tem um blog sobre quadrinhos, com resenhas e ênfase em histórias autorais: https://guerrilhacomix.blogspot.com/

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