INFERNO DE MERDA: O trabalho degradante dos “tigres” no Brasil escravista

 

Atualmente, o saneamento básico segue sendo uma grande demanda das cidades brasileiras. Estima-se que 90 milhões de brasileiros não têm acesso a esgoto tratado. 32 milhões não têm acesso à água potável.¹ Percebe-se, portanto, que o saneamento é um problema histórico. Com efeito, se o quadro atual desnuda uma realidade brutal, o passado foi, talvez, muito pior. 

Com o crescimento significativo de algumas cidades brasileiras, em fins do século XIX, houve, consequentemente, uma maior produção de fezes humanas, restos de alimentos e demais materiais em decomposição, como cadáveres – todos esses, evidentemente, nocivos e vetores de doenças. O Rio de Janeiro, em particular, na condição de capital imperial, foi palco de epidemias de cólera, febre amarela e varíola.

Em 1855 e 1856 o Rio de Janeiro foi assolado, pela primeira vez, pela epidemia de cólera-morbo, com 4.828 vítimas. Entre 1857 e 1860, a mortalidade manteve tendência ascendente, oscilando anualmente em função da violência da febre amarela. Em 1865, novo pico de mortalidade em virtude de uma epidemia de varíola e de outras doenças favorecidas pela aglomeração das tropas com destino ao Paraguai. Em 1867 e 1868, a cólera-morbo grassou novamente.”²

A cidade era, portanto, um espaço extremamente insalubre. A cólera, por exemplo, é transmitida pela ingestão de água contaminada. Seus sintomas são diarreia e vômito. Sendo assim, seu surto epidêmico é resultado da falta de tratamento adequado à água.

A cidade do Rio de Janeiro cresceu em área e população principalmente com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. Acomodar a família real e cerca de 15 mil portugueses que a acompanharam não foi acompanhado de nenhum tipo de planejamento urbano – visto a emergência do evento (a família real estava fugindo dos exércitos de Napoleão). Mais pessoas, mais fezes para se livrar. Porém, a capital do Brasil à época não era a única a ter problemas com os dejetos humanos.

“Em São Paulo, o lixo se acumulava nas ruas ou nos rios que cortavam a cidade – a propósito, os rios e o mar sempre foram os principais sumidouros da sujeira urbana – e muita gente despejava os penicos pelas janelas. No Rio de Janeiro, em 1830, o lixo foi citado em uma lei sobre ‘desempachamento’ de ruas que incluía também remover loucos, bêbados e animais ferozes (presume-se que não para o mesmo lugar que o lixo)”.³ 

É nessa realidade histórica peculiar de imundice, insalubridade, podridão e descaso com recursos naturais que surge a figura do trabalhador escravizado encarregado de descartar as fezes, a urina e os vômitos, o escravizado denominado "tigre". 

Consta que o nome “tigre”, "tigreiro" (ou “tigrada”) teria origem nas marcas deixadas na pele desses trabalhadores pelo líquido, mistura de urina e fezes, que escorria pelas frestas dos baldes e tonéis que eles carregavam na cabeça. Os tigreiros são exemplos de como a escravidão estava entranhada nas mais profundas relações sociais brasileiras. Das amas de leite à produção agrícola, dos serviços de barbeiros até carregadores de fezes, a força de trabalho escravizada estava presente. 

Apesar dos “tigres” passarem sempre à margem da própria história, há algumas fontes do século XIX que mencionavam sua existência. Uma delas é a revista Semana Illustrada. Fundada em 1860 pelo alemão imigrado Henrique Fleuiuss , a revista contou com a colaboração de grandes escritores da época, como Machado de Assis, Quintino Bocaiuva, Joaquim Nabuco e Bernardo Guimarães. Embora não critiquem de forma mais veemente a condição dos “tigres”, os autores usam muito a sátira e o humor.

Veja as ilustrações de Henrique Fleuiuss:







O uso intensivo desses trabalhadores escravizados encarregados da merda dos outros, ao que se sabe ocorreu em várias cidades. A mão de obra escravizada não era exatamente barata, logo, presume-se que alguns desses escravizados poderiam até realizar esses serviços como um ganho a ser guardado ao longo dos anos para pagar sua liberdade - chamados de "escravos de ganho". 

Foi somente na segunda metade do século XIX, mais precisamente após 1870, que preocupações com saneamento entraram no debate público, de forma muito tímida por óbvio. A própria falta de conhecimento sobre as causas e formas de transmissão de doenças perpetuavam práticas insalubres.

No Rio de Janeiro, uma pequena, mas crescente preocupação com “miasmas”, que acreditavam transmitir doenças pelo ar, fez com que autoridades se preocupassem com o lixo e os detritos. Obras de saneamento iniciaram e uma empresa foi contratada pela então prefeitura da cidade para coletar o lixo. Essa empresa era a Aleixo Gary & Cia., propriedade do francês Pedro Aleixo Gary. A palavra “gari” utilizada atualmente para identificar o trabalhador que coleta o lixo urbano, provém do sobrenome “Gary”.

Com o tempo, e com o final da escravidão em 1888, a mão de obra dos escravizados “tigres” foi sendo paulatinamente abandonada.

Resgatar a história oculta desses trabalhadores escravizados expõe, mais uma vez, o que foi a perversidade e o sadismo da escravidão no Brasil. E se por um lado o problema do saneamento ainda é uma constante no país, como vimos no início deste texto, o trabalho análogo a escravidão também o é, visto o tanto de trabalhadores que são resgatados em todo país.



NOTAS:

¹ https://tratabrasil.org.br/menos-de-50-da-populacao-tem-coleta-de-esgoto/

² https://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/static/trajetoria/volta_brasil/busca_doenca.php#:~:text=Em%201867%20e%201868%2C%20a,Francisco%20de%20Paula%20Rodrigues%20Alves

³ https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/almanaque/como-faziamos-sem-lixeiros.phtml


REFERENCIAS: 

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50526902

As ilustrações de Henrique Fleiuss para a revista Semana Illustrada estão disponíveis digitalmente em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=702951&pagfis=25



Sobre os autor:

 
Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata (GEACB). Professor de escola pública. Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Desenhista amador, tem um blog sobre quadrinhos, com resenhas e ênfase em histórias autorais: https://guerrilhacomix.blogspot.com/





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