ARTIGAS: O CAUDILHO DOS POVOS LIVRES

Alguns indivíduos ganham notoriedade ao longo de determinados processos históricos. Mas a notoriedade destes indivíduos é mais a obra de historiadores ufanistas do que às ações concretas que realizaram em sua época. Cito alguns exemplos. Tiradentes: queria uma independência elitista e escravista; e ainda hoje comemoramos seu “martírio”. Simon Bolívar: desejava se perpetuar no poder como presidente vitalício de uma “Grande Colômbia”; seria ele mesmo um precursor da esquerda nacionalista venezuelana? José de San Martín: buscou incessantemente um “rei” para a região que ajudava a libertar da Espanha – o vice-reino do Prata – e só deixou de procurar quando se convenceu que não havia ninguém a “altura” de exercer papel político tão importante.

E José Artigas? Já ouviram falar dele?

Provavelmente não. Os livros didáticos, quando muito, expõe apenas alguns indivíduos demasiadamente “moderados”.

É um crime estes livros não mostrarem a trajetória de Artigas, que, sem sombra de dúvida, representou o projeto mais radical e socialmente justo no período das independências latino-americanas.

José Artigas

1.
José Gervásio Artigas nasceu em Montevidéu, no ano de 1764. Seu sobrenome atestava uma origem “nobre”, de espanhóis “puros” que vieram para a América fazer fortuna – os criollos. Educado em um colégio de padres franciscanos, José Artigas ia com frequência para a casa de campo da família, onde vivia e aprendia com os gaúchos. Chegou mesmo a exercer atividades tidas como “ilegais” para as leis da época: como contrabando de gado e couro; além de apresamento de rebanhos que vagavam por aquelas terras onde a fronteira não era muito precisa.

Condenado por autoridades coloniais por contrabando, Artigas foi anistiado graças a intermediação de seu pai, Martín. Em 1797, após este episódio, José Artigas é incorporado numa milicia local, o chamado corpo de Blandengues. Esta milicia, formada em Montevidéu, tinha por objetivo conter as incursões de lusos e indígenas naquelas terras que na verdade foram usurpadas pelos colonizadores. O conhecimento que Artigas tinha da fronteira fez com que fizesse parte da expedição do intelectual espanhol Félix de Azara em 1800. Esta expedição, promovida pela Coroa, tinha por objetivo dar terras aos gaúchos e impedir os avanços lusitanos. Desta expedição nasceu a vila de Batovy – nas proximidades do atual município riograndense de São Gabriel.

Em 1810, o cabildo de Buenos Aires depõe o vice-rei, Baltasar de Cisneros, na chamada Revolução de Maio. É formada uma junta revolucionária. Os espanhóis e os realistas iniciam seus ataques, mas os criollos, muitos oficiais das milicias locais, se reúnem para enfrentar os espanhóis. As tropas dos Blandengues são convocadas pelo poder colonial para reprimir revoltas que se espalham no interior – como consequência do ocorrido em Buenos Aires. José Artigas se nega a apontar armas para seu povo e deserta desta milícia. Ele parte em direção à Buenos Aires e se incorpora ao criollos rebeldes. Na capital portenha, Artigas ganha o modesto auxílio dos criollos locais: uma tropa de cerca de 180 homens. Sua missão é libertar a Banda Oriental.

Cruzando o rio da Prata, em 1811, Artigas se lança na campanha para libertar Montevidéu – convertida na fortaleza do poder colonial, sob o comando do novo vice-rei Francisco Xavier Elío. Durante o cerco da cidade ocorre um tremendo revés: Elío entra em acordo com os portugueses instalados no Rio de Janeiro, que enviam suas tropas em auxílio ao vice-rei e levantar um bloqueio ao porto de Buenos Aires. Os criollos portenhos preferem a liberdade de comércio do que a liberdade do povo da Banda Oriental, e para a surpresa de Artigas e de sua tropa, decidem entregar a província aos portugueses!

Não resta outra alternativa a Artigas e sua tropa a não ser recuar...


2.
Mais que uma fuga, a retirada de José Artigas de Montevidéu foi um verdadeiro exodo. Isto porque suas tropas foram acompanhadas não só por soldados inimigos, que desertaram para o lado de Artigas por acharem a sua causa realmente justa, mas por cerca de 15 mil pessoas! Miseráveis, famintos, mulheres com seus filhos no colo, gaúchos, pequenos proprietários, negros forros e escravizados em fuga, todos aqueles que tinham a esperança de uma independência com mudanças sociais e melhoria de vida seguiram Artigas. Preferiam segui-lo do que se entregar aos portugueses e a elite montevideana. Este momento, um dos mais importantes da história das independências da América do Sul, é até hoje lembrado pelos uruguaios (chamado de Exodo del pueblo oriental) como formação da sua nacionalidade.


O Exodo del pueblo oriental chega ao fim em 1812, quando Artigas e seus seguidores se instalam numa localidade próxima a atual cidade de Paysandú, no Uruguai, onde ergueram o acampamento de Purificación. Nesta época, a influência de Artigas cresceu consideravelmente entre muitos caudilhos das províncias do antigo vice-reino do Prata. Em Entre Rios, Santa Fé, Corrientes e Córdoba, aderiram ao movimento artiguista. Em princípios de 1813, as províncias se proclamaram Liga Federal dos Povos Livres, declarando José Artigas como Jefe del Pueblo Oriental e Purificación como futura capital. Esta Liga Federal foi criada após a rejeição dos deputados artiguistas nos debates do congresso Buenos Aires. Este congresso, foi convocado para os criollos debaterem um projeto de união nacional em torno da capital. Os criollos, escolheram Buenos Aires para sediar o congresso pois era território dos unitários. Estes, repudiavam as ideias federalistas de Artigas e seus seguidores.

É o início de uma luta entre unitários e federalistas que vai durar quase um século na Argentina.

Em 1815, no auge da Liga Federal, Artigas publica seu “Reglamiento de la Banda Oriental”. Neste documento, estão expostas a organização de governo e um projeto de reforma agrária que preve a distribuição de terras para índios e negros, “que os mais infelizes sejam os mais favorecidos”, diz Artigas. Enquanto isto, os ataques luso-brasileiros não dão descanso aos orientais. Fazendeiros vindos através da província de Rio Grande de São Pedro (atual Rio Grande do Sul), que tinham a prentenção de expandir suas terras invadindo a Banda Oriental, atacam os focos guerrilheiros de Artigas, que tinha planos de revindicar os territórios ao norte e incorpora-lo à Liga.

No mesmo sentido do “Regulamento de Terras”, é elaborado o “Regulamento de Comércio”, que tem por objetivo restringir a constante penetração de produtos estrangeiros (principalmente ingleses). Esta medida seria uma espécie de “protecionismo” para as manufaturas locais (que país dito “desenvolvido” não se utilizou do “protecionismo”? O livre comércio não passa de uma ideologia do “diga o que eu digo mas não faça o que eu faço”. Os exemplos da Inglaterra e dos EUA são esclarecedores: ambos pregam o livre comércio, mas usaram do protecionismo para beneficiar suas indústrias). Assim, Artigas ganhava mais um poderoso inimigo: os ricos comerciantes ingleses – ávidos por despejar a maior quantidade de seus produtos industrializados nos países que lutavam contra o sistema colonial[1]

3.
Entre 1815 e 1817 há um conflito constante entre as tropas de Artigas e as de d. João VI. Em 1816, os criollos de Buenos Aires proclamam finalmente, sua independência da Espanha, no congresso de Tucuman, formando as Províncias Unidas do Rio da Prata; que logo passam a hostilizar a Liga Federal que domina 4 das 14 províncias (unidas). Os portugueses, aproveitam a oportunidade para enviar outro exército e expulsar os artiguistas da Banda Oriental. Sob o comando do general portugues Carlos Frederico Lecor, tomam Montevidéu, cuja oligarquia saudou o exército luso-brasileiro como “libertadores da pátria”. Os artiguistas passam a guerra de guerrilhas no interior do seu território e também à guerra de corso nas margens do rio da Prata.

Neste período, um dos mais valorosos combatentes artiguistas foi o indígena guarani Andrés Guazurary, conhecido como Andrecito Artigas, filho adotivo do caudilho dos povos livres.

Mesmo com os esforços de Andrecito, os artiguistas perdem mais e mais territórios nos anos seguintes. A Liga Federal não podia combater duas potências militares que a espremiam ao norte e ao sul – o Brasil e as Províncias Unidas respectivamente. Em 1817, a Banda Oriental é incorporada ao território brasileiro, sob o nome de Província Cisplatina. Artigas, derrotado, parte para o exílio no Paraguai, no ano de 1820.

O caudilho é recebido como um “herói” no país que lhe deu exílio – que na época era presidido por Gaspar Rodriguez de Francia. A única condição imposta pelo presidente paraguaio ao seu “hóspede ilustre” foi a promessa de não se envolver em qualquer movimento externo – devido a própria política isolacionista que o Paraguai manteve até a guerra de 1864-1870.

A Banda Oriental só se tornará um estado independente em 1828, depois de um longa guerra com o recém independente Brasil. Sob o árbitro da Inglaterra, se formou um “Estado tampão” entre duas grandes nações: o Uruguai. José Artigas morrerá no Paraguai em 1850, com 86 anos, sem nunca ter retornado à pátria que ajudou a construir. Seu grande amigo durante os anos de auto-exílio foi um de seus companheiros de batalha, desde a época da Liga Federal, Joaquín Lezinza, conhecido como negro Ansina (um trabalhador escravizado libertado pelo próprio José Artigas). O Uruguai não se tornou a pátria que Artigas idealizou. Mesmo assim, sua figura serviu de base para que surgisse um sentimento nacional sobre aquelas pessoas que vislumbravam sua pátria livre. Prova disto é que o povo uruguaio fez do próprio Artigas a figura de fundador da nacionalidade uruguaia.

Estatua de Artigas.

Uma figura histórica de tanta importância como foi José Artigas, ainda é silenciada por muitos historiadores nos livros didáticos. Porque será?

No centro de Porto Alegre, na famosa Praça da Alfândega, há um busto de José Artigas. Milhares de pessoas passa por dia na praça, mas será que todos sabem da importância histórica deste caudilho?

Há muitas lacunas que devem ser preenchidas. A história da Liga Federal é um capítulo que ainda permanece “oculto” para muitos brasileiros. Talvez, seja resultado da velha história nacionalista e ufanista que surgiu no final do século XIX e se desenvolveu em boa parte do século XX, na qual os heróis militares são os grandes “salvadores da pátria”. Neste sentido, os “orientais”, os caudilhos estrangeiros que lutaram com o povo e para o povo, são “inimigos”. Não importa se a sua causa é justa, importa que Carlos Lécor foi um “herói”, “conquistando” a Banda Oriental para o Brasil; livrando-a de um “caudilho infernal” e seus seguidores “loucos”. Essa visão distorcida ainda é forte e deve ser combatida.

O movimento de Artigas mostra, de forma bastante consistente, que as independências da América do Sul, não eram um projeto único de uma elite criolla esclarecida que queria se livrar da “opressão” do sistema colonial. As independências, antes de tudo, foram uma luta entre elites e povo, entre ricos e pobres, entre criollos endinheirados contra criollos que lutavam por justiça e pela liberdade de seu povo.


Notas:

[1] O termo “pacto colonial”, disseminado por uma historiografia antiga, mas ainda cheia de força, não é condizente com a situação objetiva das relações metrópole-colônias. Isto porque a ideia de “pacto” sugere que havia um acordo amigável entre colonos/criollos e os governantes metropolitanos. Uma vez que a colonização europeia da América está dentro das práticas mercantilistas, em que o governo (o Estado Absolutista) se esforçava para manter o controle sobre todas as atividades econômicas, não se pode dizer que houve um “pacto amigável” e sim uma “imposição” característica da própria lógica mercantilista: os colonos tinham a função de enriquecer a metrópole, nada além disso – essencialmente não era algo aberto a negociações. Sendo assim, o termo mais correto a ser utilizado é sistema colonial, uma vez que “pacto” da a ideia de “unidade”, enquanto que “sistema” parece abranger de forma mais adequada a situação das diversas práticas que mantinham as relações metrópole-colônias. Ademais, esta questão de “pacto colonial” pode ser debatida nas salas de aula e nos grupos de estudo.


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

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