SOCIALISTAS LATINO-AMERICANOS

Muito mais importante que escrever sobre a revolução, é contribuir pessoalmente para faze-la 
Tomás Guido[1]


Socialistas utópicos: Robert Owen, Charles Fourrier e Saint-Simon. Socialistas ditos “científicos”: Karl Marx, Friedrich Engels e Eduard Berstein. Todos tem algo em comum: são que lutaram, cada um a sua maneira, para a construção de uma sociedade mais igualitária. Mas não é apenas isto que une estes pensadores tão heterogêneos. O que os une, fundamentalmente, é que são todos europeus. E a na nossa América Latina, não houveram socialistas?

Ainda há aqueles que pensam a América Latina apenas como lar de caudilhos e ditadores...
Vamos pensar historicamente.

1.

Antes da geração de Colombo e seus epígonos, havia na América grandes civilizações e muitos povos de culturas e tradições distintas. As mentes pensantes europeias, logo começaram a refletir sobre nossas terras. Em alguns casos, pensadores europeus conceberam a América como o paraíso terrestre. Muitos se contradiziam: achavam que os “índios” não mereciam este paraíso e trataram de coloca-los a trabalhar em um regime hermético e torturoso. Já para o inglês Thomas More, a América representava a verdadeira “utopia” terrestre; onde o ouro não seria motivo de ganância e cobiça – os habitantes da fantástica Utopia, viviam com justiça e liberdade. Mas Morus não fugia do espírito de sua época e mesmo que Utopia fosse a idealização de uma sociedade perfeita, alguns viviam na condição de escravo.
Dentre os povos ameríndios, os incas devem ser destacados. Durante os primeiros anos de colonização, quando os espanhóis com suas espadas e cruzes rasgaram vastas florestas em busca de ouro, os cronistas anotavam tudo que se passava e deixaram alguns valiosos relatos sobre este império sul americano. A organização social, a ausência da miséria, que crescia cada vez mais na Europa, e os fabulosos templos que os incas construíram fascinou os invasores europeus. Tanto que se criou o conceito de “socialismo inca”. Até mesmo o historiador estadunidense Donald Dozer, se referindo a esta sociedade dos incas, se perguntava: “Quem foi o teórico do comunismo inca? Quem foi o seu Rousseau, o seu Babeuf, o seu Karl Marx?”

A história voa com os ventos do tempo e levas e levas de europeus vinham para se instalar na América. Dentres estas levas, muitos eram sacerdotes de ordens religiosas: jesuítas, carmelitas, franciscanos, beneditinos... suas missões de evangelização dos nossos indígenas também foram motivos para o conceito de “socialismo missioneiro”. O auge destas missões foram os séculos XVI e XVII.

2.

Se o século XVIII foi o século da ilustração e do pensamento liberal, o século XIX foi o século do socialismo. Talvez nunca antes na história do mundo esta palavra tenha sido tão difundida, discutida quando no século XIX. Hoje, infelizmente muitos crêem que o socialismo é um fracasso; que nunca houve e que nunca vai haver uma sociedade mais igualitária e justa – pobres espíritos sem esperança...

Na América Latina, um organismo social ativo, com seus intelectuais e revolucionários autoctones, também pensaram sobre este conceito de socialismo. E tentaram aplica-lo, na medida do possível. A maioria destes pensadores eram criollos que, embora influenciados pelas correntes de pensamento europeu, não mediram esforços para dar uma cor e uma cara original para um autêntico socialismo americano.



Simón Rodriguez
O primeiro socialista americano foi o professor, intelectual e revolucionário Simón Rodríguez. Preocupado com a questão educacional da América Latina e preceptor de Bolívar, Rodriguez tinha um projeto radical de educação que desagradou muitos criollos, pois estes matriculavam seus filhos na escola de Rodriguez achando que teriam uma “refinada educação aos moldes europeus” mas se deparavam com uma educação que colocava a América em primeiro lugar: estudava os índios e não os povos europeus; colocava os filhos da elite para trabalhar em manufaturas, e não apenas para supervisona-las. Para o filósofo hungaro István Mészáros: “Simón Rodríguez […] bem antes de Marx, frequentou sociedades secretas socialistas em Paris e regressou à América do Sul apenas em 1823.[2]”

As ideias de Rodriguez não foram absorvidas pelos criollos, que preferiram assimilar sem digerir as ideias liberais da Inglaterra; tida como o “verdadeiro modelo civilizacional”. 

Durante a ebulição social dos movimentos de independência, algumas ideias de caráter socialista foram alternativas ao tradicional modelo dos criollos ricos de “independência sem transformação social”. O projeto mais radical e mais socialmente justo de independência foi o do caudilho de esquerda José Artigas. Artigas projetava uma grande liga de Estados independentes: a Liga Federal dos Povos Livres. Seu lema era “que os mais necessitados sejam os mais beneficiados”. Em 1815, quando sua influência ia do atual Uruguai até o norte da Argentina, ele proclamou dois grande regulamentos: o de terras e o de comércio. Pelo Regulamento de Terras, fez uma reforma agrária; beneficiou negros e indígenas sem terra – a prioridade eram os indígenas, que segundo Artigas eram os donos originais das terras americanas. Pelo Regulamento de Comércio, levantou altas tarifas aos produtos estrangeiros que competissem diretamente com os produtos nativos. Representou um pé na porta do liberalismo inglês, que vomitava os excedentes da revolução industrial em várias partes da América. Com este Regulamento de Comércio, os artesãos locais estariam protegidos para fabricar seus artigos. Por estas razões, e pelo apoio popular que Artigas tinha, não é a toa que foi um personagem vilipendiado pela elite que o combateu. De acordo com Galeano: “José Artigas encarnou a revolução agrária. Esse caudilho, com tanta fúria caluniado e tão desfigurado pela história oficial, liderou as massas populares [...][3]”.


José Cipriano Barata


Convém falarmos também do revolucionário brasileiro José Cipriano Barata. Sua vida foi marcada por inúmeras tentativas de revolução social. Era anti-monarquista e defendia a igualdade social no Brasil, que obrigatoriamente passava pelo fim da escravidão. Segundo Melo e Freitas: “Participou da revolta que ocorreu na Bahia em 1798, conhecida como conjuração baiana ou revolta dos alfaiates. Esta última alcunha denota que foi um típico movimento popular. Seu envolvimento nesses movimentos revolucionários lhe rendeu o apelido de 'revolucionário de todas as revoluções'. Segundo o historiador Caio Prado Júnior, Cipriano Barata 'em sua longa vida não teve um momento de descanso, dedicando às lutas populares todas as energias e seu grande talento'.”[4]

3.

Com as independências consolidadas, começou uma briga entre as facções criollas em praticamente toda América Latina. De um lado os conservadores, que queriam um regime centralizado, unitário, e de outro os liberais, defensores do federalismo e que por vezes agregavam em suas lutas políticas alguns trabalhadores urbanos. É em meio a estas lutas e guerras civis que são forjadas as “nacionalidades” dos países da América Latina. Enquanto isso, os nossos socialistas não descansavam. 

O Chile, de 1833 até 1860 foi governado por um regime extremamente conservador e autoritário; que muitos ainda declaravam como um modelo ideal: seria conveniente perguntar, ideal pra quem? Esse regime foi abalado e obrigado a se “liberalizar” após uma guerra civil, onde os socialistas chilenos tiveram grande importância. O líder dos socialistas era Francisco Bilbao. Educado nas tradições liberais do “despertar intelectual” chileno de 1842, Bilbao se inclinou cada vez mais para os ideais de esquerda. Foi obrigado a se exilar e foi para Paris, onde presenciou a Revolução de 1848. De volta ao Chile, Bilbao fundou em 1850 a Sociedad de la Igualdad, cujo principal meio de divulgação de suas ideias era o jornal El Amigo del Pueblo (qualquer semelhança com Marat não é coincidência). A Sociedad chegou a agregar trabalhadores urbanos e intelectuais da época. Nas eleições que ocorreram no mesmo ano de sua fundação, se recusaram a apoiar o candidato da oligarquia conservadora. Em aliança com os liberais iniciaram um movimento insurrecional. Mas a ditadura institucionalizada pelos conservadores logo tratou de esmagar os revolucionários. Bilbao teve que se exilar novamente. Antes de voltar para a América, proferiu muitas palestras para socialistas europeus; em uma delas, realizada em Paris no ano de 1856, proferiu pela primeira vez o termo “América Latina”.

Depois de tantas guerras civis, as oligarquias desfrutaram um relativo conforto político nas últimas décadas do século XIX. O capitalismo metamorfoseava-se em imperialismo. Graças a Divisão Internacional do Trabalho o germe do capitalismo se transformou de fato em capitalismo[5] – e as independências da América e os governos oligárquicos tem papel fundamental neste sistema-mundo capitalista; não se pode compreender a história do capitalismo sem compreender as independências americanas.

4. 

Nas primeiras décadas do século XX o capitalismo sentiu suas contradições. Entre a 1º guerra europeia (1914-1918), e o início da guerra mundial (1939-1945), houve um grande surto de “prosperidade”, seguido de uma crise arrasadora em 1929. Neste cenário, emergiu a experiência soviética. Muitos intelectuais saudaram tal experiência e seu impacto fez emergir um grande numero de partidos comunistas em vários países. Muitos dos intelectuais que fundaram estes partidos, eram oriundos de círculos socialistas, anarquistas e anarco-sindicalista.

No Brasil, Manuel Bomfim ousou. Não seguiu as premissas de um “socialismo soviético”. Para ele, o modelo de revolução socialista no Brasil era o da Revolução Mexicana – que mesmo não tendo um caráter socialista, acabando nas mãos de setores capitalistas e de oligarcas dissidentes, não podemos negar a grande e decisiva influência de Zapata e dos trabalhadores urbanos no processo. Bomfim também era um educador, aos moldes de Rodríguez.


Victor Haya de la Torre

No Peru surgiu uma experiência original: o APRA (Alianza Popular Revolucionaria Americana) de Victor Haya de la Torre e José Carlos Mariátegui. Um movimento que agregava tanto socialistas como liberais de esquerda. Em 1928, Mariátegui rompe com Haya e funda o Partido Comunista Peruano (não confundir com o Partido Comunista do PeruSendero Luminoso de Abimael Guzmán).

Nos anos 1940 e 1950, o socialismo na América Latina provou que as Frentes Populares eram um eficaz instrumento de luta. Com a união de classes, revoluções foram feitas na Guatemala, na Bolívia e em Cuba.

Nos anos 1970 o movimento sandinista chegou ao poder. Fez uma verdadeira revolução social e educacional na Nicarágua. A revolução sandinista foi tão importante que a socióloga chilena Marta Harncker afirma: “A Revolução Sandinista demonstrou a frescura desta nova forma de olhar as coisas. Operou politicamente em seu caminho para a vitória com a nomeação de sacerdotes radicais como ministros do novo governo revolucionário e pelo seu pluralismo político. Um comandante da guerrilha comunista salvadorenha, Jorge Schafik Handal, foi o primeiro a insistir que o novo sujeito revolucionário latino-americano não pode ser apenas a classe trabalhadora, que há novos sujeitos sociais revolucionários, e que, portanto, o processo revolucionário não pode ser levado somente pelos comunistas, que novos temas tiveram que ser incluídos. Um grupo de guerrilha guatemalteca, o Exército Guerrilheiro dos Pobres, foi a primeira organização política a incluir os povos indígenas e considerá-los a ser a força motriz fundamental da revolução.[6]”

Na primeira década do século XXI, muitos projetos de governo, levados a cabo por socialistas que estão lutando, cada um a sua maneira e com os recursos que dispõe, contra os imperialismo neoliberal no cenário sul-americano. No Equador, Rafael Correa e sua Revolução Cidadã. Na Bolívia, Evo Morales é o primeiro líder socialista indígena (aimará) a ser presidente do país. E na Venezuela, a corrente chavista continua mantendo sua hegemonia, mesmo em meio a tantos golpes e movimentos de rua (devidamente financiados e patrocinados pelo estrangeiro e pelas ricas oligarquias locais) que tentam abalar o sistema. Alguns, teimam em chamar estes governo de experiências “pequeno-burguesas”; mas chamar Chavéz, Morales, Correa e até mesmo o governo Mujica, de pequeno-burguês, não é tentar reproduzir na América do Sul uma lógica europeia?

***

Hoje, mais do que nunca, as crises internacionais trazem a lume a contradição do sistema. É o momento para mais movimentos socialistas voltarem ao cenário político, não como o socialismo europeu; muito menos como o que ocorre no Brasil onde há vários partidos que se dizem socialistas ou comunistas, mas todos são tão coniventes com o governo neoliberal – o que há de errado? 

Talvez seja a hora oportuna para voltarmos aos nossos socialistas. Talvez devêssemos ler Rodriguez antes de ler Marx. É preciso ser original; resolver problemas das sociedades latino-americanas com soluções latino-americanas. O Banco Mundial e o FMI não podem mais impor suas soluções como verdadeiros Deus ex machina. Pois de acordo com o próprio Rodriguez: ou inventamos ou erramos...


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Notas:

[1] Tomás Guido (1788-1866) foi um político e revolucionário argentino que participou da Revolução de 1810,sendo da facção morenista, e da libertação do Peru. Foi ministro de Rosas e chanceler argentino no Brasil entre1840 e 1851.

[2]MÉSZÁROS, István. Bolívar e Chávez: o espírito da determinação radical. Disponível em:
http://blogdaboitempo.com.br/category/colaboracoes-especiais/istvan-meszaros/.

[3]GALEANO, p. 168. 

[4]MELO, Fábio; FREITAS, Rafael. Por que Cipriano Barata? Ver referências. 

[5]Não se pode falar em capitalismo como sistema-mundo (ou sistema em si) sem compreender os processos de independência da América Latina e a posterior organização dos estados-nacionais latino-americanos sob os regimes oligarquicos. A Revolução Industrial inglesa não foi o processo histórico que definiu e desenvolveu por si só o sistema capitalista. A Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra em fins do século XVIII e ao longo  do  século  XIX,  deve  ser  concebida  como uma  “revolução  da  mais-valia”,  pois  seus  resultados imediatos foram a sistematização e organização do trabalho numa forma eficiente de extrair mais-valia. Sendo assim, o sistema capitalista só passou a existir a partir da  Divisão Internacional do Trabalho, ocorrida, principalmente a partir de 1850, quando a própria Inglaterra tinha condições para exportar capitais; antes desta data, investimentos financeiros até nos países da América Latina não eram bem vistos pelos ingleses.

[6]HARNECKER,  Marta.  Latin America  &  Twenty-First  Century  Socialism:  Inventing  to Avoid  Mistakes http://monthlyreview.org/2010/07/01/latin-america-twenty-first-century-socialism. 




REFERENCIAS:


DOZER, Donald M. América Latina: uma perspectiva histórica. Porto Alegre: Globo, 1974.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2013.

HARNECKER, Marta. Latin America & Twenty-First Century Socialism: Inventing to AvoidMistake. Disponível em: http://monthlyreview.org/2010/07/01/latin-america-twenty firstcentury-socialism.

TAVARES,  Elaine.  Simón  Rodríguez:  plantador  de  uma  nova América.  Disponível  em:
http://www.brasildefato.com.br/node/26416.

MELO,  Fábio;  FREITAS,  Rafael.  Por  que  Cipriano  Barata? Disponível  em:http://geaciprianobarata.blogspot.com.br/2014/04/porque-cipriano-barata.html. 


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

Um comentário:

  1. Oi, Fábio. O PCP peruano de hoje em dia reivindica Mariátegui e Guzmán. Guzmán não criou outro PCP, pois nos anos 60, quando houve o racha URSS X China, a linha chinesa, majoritária, venceu e o grupo de Prado, pró-URSS, terminou sendo expulso. Abs!

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