A REFORMA AGRÁRIA E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

A luta pela terra tem sido uma constante na história do Brasil. Desde que os latifúndios se consolidaram no século XIX, o país viu emergir inúmeras formas de luta por terra e liberdade. Mas de qual liberdade estaremos falando? A liberdade mais verdadeira possível, que é a liberdade da obrigação de vender sua força de trabalho para sobreviver. Isso seria uma forma concreta de bem viver!

Entretanto, esta luta é marcada por avanços e retrocessos. E hoje, em 2014, a atual política do governo federal colhe mais retrocessos. De acordo com o site da Brasil de Fato “O acesso a terra por camponeses no Brasil pouco avançou no primeiro ano do governo de Dilma Rousseff (PT). Dados oficiais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) revelam que a presidenta conquistou em 2011 a pior marca dos últimos dezessete anos, contrariando a expectativa dos movimentos sociais do campo. Não bastasse isso, Dilma está bem atrás do que Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) realizaram no primeiro ano de seus respectivos governos”[1]

Os números são confusos, mas todas as fontes pesquisadas mostram a defasagem entre os governos petistas e os tucanos. Para o Último Segundo, por exemplo: “O desempenho do governo da presidente Dilma Rousseff é um bom termômetro para explicar a crise na reforma agrária e seu impacto na redução da luta pela terra no Brasil. Segundo dados do Incra, Dilma desapropriou 186 imóveis, num total de 342.503 hectares, incorporou 2.540.772 hectares à reforma agrária e assentou 75.335 famílias. É um resultado pífio quando os números são comparados com os governos Lula (1.987 imóveis, 48.291.182 hectares incorporadas e 614.088 famílias assentadas) e Fernando Henrique Cardoso (3.539 imóveis, 21.129.935 incorporadas e 540.704 famílias assentadas).”[2]

Esta concentração de terras reflete a nossa formação histórica. Desde o regime de despovoamento, que possibilitou a criação de latifúndios, a posse de muitas terras para poucas pessoas, excluindo indígenas, negros e mulheres, e privilegiando, em dado momento histórico, a distribuição de terras para estrangeiros, italianos, germânicos, estimulou o advento das primeiras favelas – com o êxodo rural, produto da “modernização do campo”. A concentração de terras foi a condição para o nosso capitalismo.

Nenhum país que se quer desenvolvido, que tenha um projeto de justiça social, pode permanecer sob um regime de propriedade fundiária como há no Brasil. Até mesmo os Estados Unidos – modelo para muitos intelectuais liberais e conservadores – realizou sua reforma agrária no século XIX.

Reforma agrária é um conjunto de medidas para a promoção de uma melhor distribuição das terras. Entre as medidas estão a compra ou desapropriação de latifúndios particulares considerados improdutivos ou em decorrência da exploração de trabalho escravo pela União, que, através do INCRA, distribui e loteia essas terras às famílias que as recebem, também prestando assistências. Mas não são todas as terras que não cumprem sua função social que são redistribuídas. Nem todas as famílias assentadas são assistidas. Há um oceano entre a teoria e a prática. Neste sentido o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) luta pela diminuição desta grandeza infinita entre a lei e as ações dos seguidos governos que ainda não realizaram a reforma das reformas, a adiando cada vez mais.
Reforma agrária.

Mas por que não se fala em revolução agrária? Dadas as dificuldades de realizar reformas, aumentariam as possibilidades de efetuar mudanças mais profundas? Pelo contrário! Distribuir terras, por si, interferiria no acumulo de capital de poucos, socializando a riqueza, diretamente promovendo uma ação política anticapitalista. Mas, apenas a reforma agrária não resultaria em uma revolução. Daí por que não falamos em revolução agrária.

Com sua brilhante ironia, Darcy Ribeiro compara a lei de terras no Brasil e nos EUA: “nossa classe dominante acometeu tarefas gigantescas com uma sabedoria crescente, que eu tenho o dever de assinalar nesta louvação. Façanha sobremodo admirável foi a nossa Lei de Terras, aprovada em 1850, quer dizer, 10 anos antes da América do Norte estatuir o homestead, que é a lei de terras lá deles.

“A lei brasileira não só foi anterior, como muito mais sábia. Sua sagacidade se revela inteira na diferença de conteúdo social com respeito à legislação da América do Norte, bem demonstrativo da capacidade da nossa classe dominante para formular e instituir a racionalidade que mais convém à imposição de seus altos interesses. A classe dominante brasileira inscreve na Lei de Terras um juízo muito simples: a forma normal de obtenção da prioridade é a compra. Se você quer ser proprietário, deve comprar suas terras do Estado ou de quem quer que seja, que as possua a título legítimo. Comprar! É certo que estabelece generosamente uma exceção carterial: o chamado usucapião. Se você puder provar, diante do escrivão competente, que ocupou continuadamente, por 10 ou 20 anos, um pedaço de terra, talvez consiga que o cartório o registre como de sua propriedade legítima. Como nenhum caboclo vai encontrar esse cartório, quase ninguém registrou jamais terra nenhuma por esta via. Em conseqüência, a boa terra não se dispersou e todas as terras alcançadas pelas fronteiras da civilização, foram competentemente apropriadas pelos antigos proprietários que, aquinhoados, puderam fazer de seus filhos e netos outros tantos fazendeiros latifundiários.

Foi assim, brilhantemente, que a nossa classe dominante conseguiu duas coisas básicas: se assegurou a propriedade monopolística da terra para suas empresas agrárias, e assegurou que a população trabalharia docilmente para ela, porque só podia sair de uma fazenda para cair em outra fazenda igual, uma vez que em lugar nenhum conseguiria terras para ocupar e fazer suas pelo trabalho”.[3]

Por mais absurdo que possa parecer – e realmente parece – há pessoas, desconfiadas, que pensam que no Brasil não há como ter uma reforma agrária. Eis que o governador do Rio Grande do Sul de 1959 até 1963, Leonel Brizola realiza uma reforma agrária no Estado. Brizola foi o primeiro político a dar impulso à reforma agrária na história do Brasil. E, com sua coragem, audácia e espírito trabalhista mostrou que é possível realizar essa reforma.

As reformas brizolistas no Rio Grande do Sul foram o primeiro passo para que se elaborasse um verdadeiro plano nacional de reformas estruturais para o país: as Reformas de Base. Também foi na esteira do governo Brizola que o primeiro movimento de trabalhadores sem terra se organizou. “No dia 24 de junho de 1960, há exatos 50 anos, surgiu no Vale do Rio Pardo um movimento que antecipou, no Rio Grande do Sul, as propostas e estratégias do MST na luta pela reforma agrária. O Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) nasceu no município de Encruzilhada do Sul. O motivo foi a tentativa de um proprietário de terras de retomar uma área com cerca de 1.800 hectares, situada no distrito de Faxinal – que hoje faz parte do município de Amaral Ferrador –, que há 40 anos era habitada por cerca de 300 famílias. Mais tarde, associações de agricultores sem-terra foram criadas em dezenas de municípios gaúchos. A partir do segundo semestre de 1961, o Master ganhou o apoio decisivo de Leonel de Moura Brizola, governador do Estado entre 1959 e 1962. O mês de janeiro de 1962 marcou a explosão do Movimento, com a instalação de diversos acampamentos de sem-terra, para obter desapropriações e assentamentos. Milhares de agricultores participaram das mobilizações, até que, em 1964, o golpe militar encerrou as atividades do Master. Lideranças e militantes foram presos, torturados, exilados. A disputa pela terra seria retomada apenas em 1979, com a ocupação das fazendas Macali e Brilhante, no complexo da Fazenda Sarandi – ocupação que é considerada a gênese do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fundado em 1984.”[4]

Além do Rio Grande do Sul, as Ligas Camponesas de Francisco Julião, no Nordeste, também foram alvo do regime ditatorial. De acordo com o historiador Bóris Fausto: “[...] a repressão mais violenta concentrou-se no campo, especialmente no Nordeste, […].”[5]

Por pressão da Aliança para o Progresso o regime militar criou uma lei (Lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964) chamada “Lei de Terras”; que acabou sendo incorporada ao “Estatuto da Terra” com o objetivo de viabilizar a reforma agrária no Brasil. Foram os militares que criaram o já mencionado INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Mas como nossas elites e oligarquias são por demais atrasadas e reacionárias, logo os políticos do regime ditatorial descobriram que a melhor maneira de NÃO fazer a reforma agrária é não parar de falar nela.[6]

Também foi durante a ditadura que houve um processo de modernização do campo – acelerando ainda mais o êxodo rural, empobrecendo camponeses e fazendo-os se tornar cada vez mais trabalhadores sem-terra.
Manifestação do MST em Brasilia.
No período da “redemocratização pela via autoritária” (1979-1988) foi criado o atual Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) responsáveis por reorganizar a luta pela terra e pela reforma agrária. No site do MST um documento conta sua história: “Como imaginar nosso movimento sem o aprendizado e a experiência das Ligas Camponesas ou do Movimento de Agricultores Sem Terra - Master. Por tudo isso, nos sentimos herdeiros e continuadores de suas lutas. E somos também parte das lutas que nos forjaram no nosso nascimento. Do sindicalismo combativo, da liberdade política e das Diretas-Já em 1984, quando já em nosso primeiro Congresso afirmávamos que 'Sem Reforma Agrária não há democracia'.”[7]

O tempo passou e a luta continua. No dia 08/03/2013, um jornal conservador noticiava: “Centenas de mulheres invadiram a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na manhã desta sexta-feira, em Porto Alegre, para reivindicar demandas específicas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). As manifestantes pedem acesso à terra, água potável nos assentamentos e demarcação de lotes.”[8] A representante do movimento, Arlete Bulcão Pinto alerta: “Queremos que a reforma agrária saia do papel. Consideramos o 8 de março um dia de luta para as mulheres”.

Ocupações, são chamadas geralmente de “invasões” pela mídia, financiada geralmente por magnatas do agronegócio. Para esta mídia, a terra é direito de poucos, não de todos. Os latifúndios empurram pequenos agricultores contra comunidades indígenas. O Brasil é um país continental e que a terra está concentrada nas garras de uma centena de pessoas.

Neste ano de eleições, poucos candidatos têm a ousadia de falar em reforma agrária. Enquanto os movimentos dos trabalhadores rurais se esforçam para conseguir um pedaço de terra para viver, a maioria dos candidatos é financiado pelo agronegócio, que inclusive possui sua bancada ruralista no Congresso Nacional.

O jornalista Alceu Castilho, autor do livro “Partido da Terra, como os políticos conquistam o território brasileiro”, disse numa entrevista ao jornal Causa Operária do PCO: “Os prefeitos com mais hectares estão no PSDB, seguido de perto pelo PMDB - que eu supunha seria o líder por ser o maior partido brasileiro. Estão próximos, mas os tucanos estão à frente... Em terceiro está o PR; em quarto o PT; em quinto o DEM. Entre os parlamentares o primeiro é o PMDB; o PSDB vai para quinto lugar; o DEM fica em segundo; o PR se mantém em terceiro; e o PDT em quarto lugar. A posição tem a ver com a quantidade de pessoas eleitas também. A gente conhece mais os figurões do Congresso. […] Mas temos latifundiários do PT, do PPS, PSB e assim por diante. O PCdoB no levantamento não aparece, mas já teve um latifundiário no Tocantins candidato ao governo, Leomar Quintanilha. Só o Psol não aparece. [...] Como eu disse o PCdoB nesse levantamento não apareceu como partido com políticos que tenham muitos ha, mas é bem verdade que tem poucos políticos eleitos pelo PCdoB. E o Aldo Rebelo aparece em vários momentos do livro. No capítulo que fala do código florestal, por exemplo. Aldo Rebelo tem sido um dos maiores aliados dos ruralistas. Ao ponto de podermos defini-lo sim como ruralista. Um ruralista sem-terra.”[9]

O sete de setembro não ganha destaque nesta história. Dom Pedro não fez um grande feito ao declarar a independência do Brasil em relação a Portugal. Não há independência sem reforma agrária!


Notas:

[1]http://www.brasildefato.com.br/content/e-reforma agr%C3%A1ria-presidenta-dilma
.
[2] Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-02-12/em-3-anos-dilma-realiza-12-dos-assentamentosrealizados-por-lula-em-8-anos.html

[3] RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Disponível em: http://www.filoczar.com.br/ribeiro_1986_sobreoobvio.pdf.

[4] Disponível em: http://www.mst.org.br/node/10167

[5 ]FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2012, p. 399. 

[6] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 183.

[7] Disponível em: http://www.mst.org.br/node/7702
Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 
Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael Freitas. Graduado em História na FAPA, Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Tem interesse de pesquisa em História Social da América e Tendências Pedagógicas Contra-hegemônicas. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion

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