GUERRILHA DE TRÊS PASSOS: a primeira resistência armada ao golpe de 1964

O golpe civil-militar de 1964 foi, evidentemente, um golpe contra o projeto trabalhista para o Brasil. No contexto de ditadura e repressão que se abateu sobre o país após o golpe, muitos militantes trabalhistas se organizaram com o intuito de resistir.

Parte da historiografia brasileira (sempre militante, seja pra esquerda ou para a direita) procura colocar que movimentos guerrilheiros contra a ditadura só apareceram após o AI-5 de 1968. Há, é certo, historiadores vinculados a partidos políticos que procuram sempre apontar a experiência guerrilheira no Araguaia, por exemplo, como a “única” existente. Na verdade, antes mesmo de militantes pensarem em organizar um foco guerrilheiro no Araguaia, grupos trabalhistas, sob a inspiração de Brizola, se organizaram logo nos primeiros meses após o golpe. Foram estes trabalhistas brizolistas que organizaram a guerrilha de Três Passos (RS).

Os objetivos da guerrilha de Três Passos eram acabar com o regime ditatorial antes mesmo dos militares “comemorarem” o primeiro aniversário do golpe – ou seja, em 31 de março de 1965 – e restabelecer a democracia no país para realizar as Reformas de Base, pregadas por Jango e Brizola. “Entre meados de 1964 e o começo de 1965, todos os planos de insurreição tinham um traço em comum: o levante, a coluna de combatentes, deveria partir da região Sul do Brasil, onde estavam as bases históricas do trabalhismo e o III Exército, responsáveis pelo sucesso da rede da Legalidade em 1961.”[1]

O grupo guerrilheiro de Três Passos foi liderado pelo coronel Jefferson Cardin Osório, ligado ao Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), e o sargento da Brigada Militar, Albery Vieira dos Santos. “À época do golpe de 1964, o coronel Cardim trabalhava como assessor técnico do Lóide Brasileiro em Montevidéu, e o segundo-sargento Alberi, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, fugiu para o Uruguai. No ambiente de conspiração dos exilados no Uruguai, Cardim destacava-se porque, à revelia de muitos planos e estratégias, dizia a interlocutores que não admitia que o golpe de 1964 completasse um ano sem que houvesse qualquer reação. O trajeto escolhido para a coluna de combatentes, que subiria pelo noroeste do Rio Grande do Sul até Mato Grosso, deveu-se ao conhecimento que o sargento Alberi tinha da região, e também por ser uma área fronteiriça, que margeava a Argentina e o Paraguai, proporcionando rotas de fuga.”[2]

Além destas duas lideranças, também comandou o grupo o professor Valdetar Dorneles, ligado a um núcleo de “Grupo dos Onze”. Em entrevista à Rádio Legalidade, no dia 27 de março, Valdetar afirma que muitos setores da esquerda não reconhecem a guerrilha da qual participou e após a “anistia” de 1979, teve a sua recusada!

Juntos, eles formaram o Movimento 26 de Março (M-26) – o nome foi escolhido devido a data prevista para o levante.

Após alguns meses de planejamento, os guerrilheiros iniciaram a tomada da cidade de Três Passos. A partir dai eles iriam conclamar os nacionalistas, trabalhistas, socialistas e comunistas à derrubada do regime imposto.

Na noite de 26 de março de 1965, esse grupo tomou o quartel da Brigada Militar, rendendo os brigadianos de plantão e se apoderando de armamentos e fardas. Em seguida, tomaram o presídio e os meios de comunicação local. “Além de deixar a cidade sem comunicação telefônica, uma vez que cortaram os fios da rede, invadiram a Rádio Difusora e obrigaram, sob a mira de uma metralhadora, os proprietários Benno Adelar e Zilá Breitenbach a colocar a emissora no ar para ler um manifesto contra a ditadura militar.”[3] O manifesto, redigido por Cardim, falava em Forças Armadas de Libertação Nacional.

Após a tomada de Três Passos, o grupo seguiu para Tenente Portela, onde também tomou um destacamento da polícia militar. Dali seguiram para Santa Catarina. A intenção dos guerrilheiros era chegar ao Paraná, onde Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura, iria inaugurar a Ponte da Amizade, que ligava Brasil e Paraguai. Mas a esta altura o exército já estava sabendo do grupo guerrilheiro e uma batalha ocorreu na localidade de Leônidas Marques, no Paraná (há rumores de que havia um informante no grupo que repassava para as forças de repressão as atividades da guerrilha). Valdetar, em entrevista à Rádio Legalidade, lembra da chegada do grupo ao Paraná. Quase 50 anos após este episódio, ele diz que se o grupo tivesse chegado à Foz do Iguaçu poderia fazer com que Castelo Branco fugisse para o Paraguai, do outro lado da ponte, e desta forma o congresso deveria declara-lo “fugitivo” e assim o regime se desestabilizaria.

Após esta batalha, o grupo guerrilheiro se dispersou. Aos poucos foram sendo capturados pelo exército e submetidos às mais cruéis torturas.

Guerrilheiros de Três Passos. Perceba como o noticiário chama os guerrilheiros: “Homens rústicos, que lutavam com a maior pobreza, muitos sem ter sapatos, ignorantes e de inteligência rudimentar, fácil foi seduzi-los a participar da aventura”. Uma estratégia da ditadura: desqualificar seus opositores como ignorantes, como se apenas os “inteligentes” apoiassem o golpe.


O coronel Jefferson Cardim relata o que aconteceu após sua prisão: “No dia 27 fui conduzido de jipe para Foz do Iguaçu. No caminho, em Medianeira, no destacamento onde serviu o sargento Carlos Argemiro de Camargo, fui retirado do jipe por ordem do capitão Dorival Sumiani. Fui jogado no chão e começaram a me dar pontapés, fazendo-me rolar uns 50 metros até o jardim, onde estavam os soldados. No chão, com o rosto ensanguentado, o capitão deu ordens para que me cuspissem no rosto: 'Escarrem na cara deste filho da puta, comunista, assassino!'. Depois o capitão colocou o coturno sobre a minha cara e mandou que eu beijasse a terra, bradando: 'Beija a terra que traíste, comunista, assassino!'. Ainda pegou um garfo de campanha e ficou me espetando, desde os pés até o pescoço. Todo esfolado, me fizeram rolar de volta até a viatura e continuamos a viagem.”[4]

Valdetar Dorneles, em depoimento À Comissão Nacional da Verdade (2014) relata sua tortura: “Uma vez entrei às dez da noite [para sessão de interrogatório e tortura], e saí de lá às seis da manhã. Eu tenho marcas aqui de burro [mostra o corpo marcado], me queimaram, eles me marcaram com uns espetões. Eu tenho marcas até hoje nas pernas, nos braços. Se vocês olharem aqui [mostra os dedos das mãos], tem todas as marcas de aliança. Isso foi fio de náilon, que eles passavam, amarravam. Os dedos, quando puxavam, ficavam pretos, completamente pretos. E eles interrogando: “Conhece fulano?”. Eu dizia: “Não conheço”, então eles puxavam aquele fio, cortava até o osso.”[5]

A guerrilha de Três Passos deve, obrigatoriamente, figurar em qualquer pesquisa ou comentário sobre a resistência armada contra a ditadura. Se ainda se fala em guerrilha no Brasil sem falar do papel que os trabalhistas desempenharam, é porque a historiografia jamais será neutra. Cabe aos próprios historiadores trazer a sociedade suas versões da história, buscando episódios e fontes que aparentemente estão “ocultas”.



Notas:

[1]Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf, p. 596.

[2] Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf, p. 597.

[3] http://www.documentosrevelados.com.br/geral/fotos-e-documentos-ineditos-da-guerrilha-de-tres-passos-primeiro-movimento-armado-contra-a-ditadura/

[4] Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf, p. 598, 599.

[5] Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf, p. 596.


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

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