Em Cochabamba estamos longe do fim da História – anônimo em manifestação em Cochabamba,
março de 2003[1]
O general boliviano Hugo Banzer foi sem dúvida uma das figuras mais controvertidas da história do século XX no seu país. Ele fez parte de uma geração militar marcada pelo autoritarismo e adestrada na Escola das Américas para servir docilmente aos interesses dos EUA. Banzer chegou ao poder por um golpe de estado em 1971. Seu governo foi marcado pela implantação por via autoritária da doutrina neoliberal. Houve protestos, como os liderados pela mineira Domitila Chungara em 1977, e mortes, como a dos camponeses que protestavam contra o alto custo de vida no conhecido “Massacre do Vale”. Em 1978, Banzer foi derrubado – por outro golpe militar. Em 1979, tentando voltar ao poder por meio de eleições, criou o partido Ação Nacionalista Democratica (AND), sendo candidato em todas as eleições seguintes. Até que, em 1997, através de eleições, Hugo Banzer volta a presidência. Sem um aparelho ditatorial para encobrir seus atos, o governo logo foi acusado de corrupção. Sempre serviçal do imperialismo contemporâneo (o neoliberalismo) Banzer teve que enfrentar a resistência popular na chamada Guerra da Água – ocorrida em 2000.
Cochabamba |
Cochabamba era uma cidade com cerca de 500 mil habitantes em 1999. Localizada a mais de 2 mil metros acima do nível do mar. Nesta altitude, se esperava um ótimo serviço de abastecimento de água. Mas o que havia era o descaso do consórcio fornecedor para com os habitantes da cidade; e principalmente para com os camponeses do entorno da zona urbana. Racionamentos eram constantes, além da baixa qualidade do serviço. O governo agiu criando um novo consórcio, chamado Aguas del Tunari – cujo próprio governo seria um dos acionistas junto com uma companhia estrangeira, a Bechtel Corp. (de capital estadunidense, italiano e espanhol, com sede em São Francisco, Califórnia). A primeira medida do novo consórcio foi aumentar o preço do serviço; o preço subiu o dobro do gasto mensal médio de uma família boliviana![2]
Mas o absurdo era cobrar de camponeses um custo pela água da chuva! Aquelas pessoas que não pagavam corriam o risco de ter seus imóveis aprendidos e leiloados.
Os camponeses foram os primeiros a protestar contra a alta das taxas e os abusos do consórcio, na praça central de Cochabamba. O grito de guerra das manifestações se tornou “A água é nossa caramba!”. O descontentamento cresce e em abril de 2000 mais de 20 mil pessoas ocupam a mesma praça contra a privatização de um bem básico para a sobrevivência. Líderes comunitários se organizam em bairros (talvez uma cultura remanescente dos ayllus incaicos) e o movimento cresce ainda mais. As autoridades a serviço dos interesses capitalistas entram em ação e prendem diversos manifestantes. Mas as manifestações não param, obrigando o prefeito da cidade a renunciar.
Em La Paz, uma das capitais do país, policiais inspirados pelo clima de revolta de Cochabamba, protestam por melhores salários e condições de trabalho. Banzer decreta um “estado de sítio” ainda em abril. Várias rádios, divulgadoras dos acontecimentos e muitas vezes os apoiando, são fechadas.
O neoliberalismo é a fase superior do imperialismo?
A tentativa do governo boliviano de privatizar a água é só uma parte do plano neoliberal, que muitos países adotaram ao longo dos anos 1990 – e seguem adotando, seja de forma mais radical ou mais branda. A Bolívia, em particular, por ter uma estrutura política instável desde sua independência, sofreu com maior rigor as imposições dos organismos internacionais. “A perda da soberania dos países subdesenvolvidos em relação aos recursos naturais tem sido levada a cabo principalmente pela intervenção de organismos internacionais como o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional). Em relação aos recursos hídricos, o Banco Mundial condiciona o financiamento de projetos hídricos ao cumprimento de uma série de normativas que buscam a liberalização do mercado de bens e serviços. Assim, os serviços de abastecimento de água e saneamento básico deixam de ser uma obrigação do estado para com os cidadãos, de forma a garantir condições dignas de vida, e tornam-se serviços a serem mercantilizados mediante a lógica do mercado, sob o argumento de que a escassez dos recursos naturais somente pode ser contornada pelo controle da demanda através do preço.”[3]
Cochabamba é sitiada pelos moradores. “Os cocaleiros do Chapare iniciaram nada menos do que 17 bloqueios de estradas, ao mesmo tempo que os professores rurais anunciavam a greve geral indefinida. No mesmo momento, em reunião de representantes dos governos de Banzer e Clinton nos EUA, definiam-se as linhas de um 'Plano Bolívia': 'a burocracia norte-americana adotou o modelo do Plano Colômbia para a iniciativa com nosso país' (Pulso, 18/9), o que demonstra que, para o imperialismo, a situação boliviana tem gravidade semelhante à do outro país andino.”[4]
A famosa COB (Central Obrera Boliviana) esteve presente, ajudando e participando ativamente.
“Uma frente heterogênea, incluindo desde o direitista Condepa, o MNR e o MBL, até o dirigente cocaleiro Evo Morales (MAS) e o 'auto-gestionário' Oscar Oliveira, dirigente da Coordenadora de Águas de Cochabamba, começa a reclamar a renúncia do governo Banzer. Em resposta, o governo acusa a oposição de 'narcotraficante', o que significa, no estilo da suposta 'narco-guerrilha' colombiana, reclamar a intervenção direta do imperialismo na sustentação do governo. No último fim-de-semana de setembro, "Mallku" (Felipe Quispe), principal dirigente camponês, anuncia um cerco a La Paz 'al estilo de Tupac Katari en el siglo XVIII'. La Razón (28/9) comenta que 'o que parecia só uma ameaça, hoje é quase uma realidade': o movimento camponês (CSUTCB) está levantando os bairros urbanos de La Paz e as principais cidades.”[5]
Diante desta situação o governo se vê obrigado a negociar. O Congresso nacional que havia aprovado a chamada “lei da água” (chamada de 2029 que previa a privatização da água no país), teve que revoga-la. O contrato com a empresa Agua del Tunari foi cancelado e o estado de sítio terminou. A água de Cochabamba passou a ser administrada pelos conselhos de bairros, enquanto que a população se organiza para fazer poços artesianos, utilizados publicamente
Muitos dizem que após a “era do petróleo” o interesse do capital vai ser a água. Se assim for precisamos ficar atentos. Principalmente os países latino-americanos que ainda possuem grande parte da riqueza natural do planeta. Se realmente houver uma “guerra mundial da água” o episódio de Cochabamba pode ser o primeiro capitulo deste conflito. Afinal, não é a toa que o presidente do grupo alimentício Nestlé tem uma opinião bem clara sobre como deveria ser tratada a água: http://www.brasildefato.com.br/node/12746..
Notas:
[1] FINGUERUT, Ariel. As guerras da água e do gás na Bolívia. Disponível em: http://www.santiagodantassp.locaweb.com.br/br/arquivos/nucleos/artigos/Ariel.pdf
[2] FINGUERUT, Ariel. op. cit.
[3] PFRIMER, Matheus Hoffmann. A Guerra da Água em Cochabamba, Bolívia: a desconstrução de um conflito. Disponível em: http://www.anppas.org.br/encontro4/cd/ARQUIVOS/GT12-850-976-20080513215826.pdf
[4] COGGIOLA, Osvaldo. Rebelião Popular na Bolívia. Disponível em: http://www.galizacig.gal/actualidade/200010/rebeliao_popular_na_bolivia.htm
[5] COGGIOLA, Osvaldo. op.cit.
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
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