SOBRE MULHERES, MEMÓRIA E JUSTIÇA NA GUATEMALA

Texto publicado originalmente em O ISTMO www.oistmo.com 

Por Juliana Vitorino*




Em maio de 2013, um grupo de mulheres maias ixiles encheu as salas de guatemalteco, em sessões presididas por outra mulher, a Juíza Yassmín Barrios, tendo como Procuradora Geral do país naquele momento e primeira mulher a ocupar este posto, a criminalista Claudia Paz y Paz. Julgavam o ex-ditador e General do Exército Efraín Ríos Montt, quem presidiu a Guatemala de março de 1982 a agosto de 1983, e o também General José Maurício Rodríguez, chefe da Inteligência militar no governo Ríos Montt. Ambos estavam sendo julgados por 15 massacres cometidos contra o povo Ixil, no departamento de Quiché, norte da Guatemala, durante o curto mandato de Ríos Montt, enquanto vigia o conflito armado guatemalteco.

Naquele mesmo ano, celebrou-se o resultado do processo: a Guatemala havia submetido a julgamento um ditador, em seu território, com base em seu ordenamento jurídico interno, sem necessidade de deportação de Ríos Montt para que fosse julgado por leis internacionais. O precedente aberto foi enorme e vinha na esteira do que países como Argentina e Chile, por exemplo, fazem em Nossa América: dar importância à memória histórica, utilizá-la, na prática, como ferramenta de reparação de crimes de lesa humanidade, promover a justiça a suas populações e restaurar a chamada unidade nacional com o reconhecimento da dignidade das vítimas. Ríos Montt acabou condenado a 50 anos de prisão por genocídio e a mais 30 anos por crimes contra a humanidade.

A Prêmio Nobel da Paz, Rigoberta Menchú, esteve presente no julgamento do Gen. Efraim Ríos Montt.

Meses depois, a Corte de Constitucionalidade da Guatemala decidiu por anular a pena, alegando que, entre outras falhas, o julgamento era inválido por conta da vigente Lei de Anistia, que exime de culpa a todos os membros das Forças Armadas e da guerrilha por crimes cometidos durante o conflito armado. A sentença da Corte, no entanto, pode ser taxada de política e descumpre a própria Lei de Reconciliação Nacional da Guatemala, que é expressa quando afirma que delitos de lesa humanidade, como são os delitos de genocídio e desaparição forçada, pelos quais foram julgados, ficam excluídos da Anistia, não há perdão nesses casos, nem esquecimento.

A anulação do julgamento, mesmo com a previsão de sua repetição, também abre precedentes, desta vez negativos, já que a Guatemala tem se empenhado em solucionar casos de desaparição forçada que poderiam tornar-se passíveis de revisão ou até de reversão de pena. Junto a isso, iniciou-se uma perseguição direta dos setores conservadores guatemaltecos contra a Procuradora Claudia Paz y Paz e a Juíza Yassmín Barrios.

Antes de abrir espaço para que as mulheres ixiles pudessem testemunhar Montt, Claudia Paz y Paz condenou policiais à prisão por corrupção, prendeu estruturas completas da Mara Salvatrucha e da Pandilla 18 (duas das maiores gangues centro-americanas), julgou militares por crimes de guerra, além de encarcerar vários membros do Cartel Los Zetas. Além disso, mais uma vez instaurou processo contra o Estado guatemalteco, acusado de ser responsável por outro massacre: o conhecido caso da Embaixada da Espanha, em janeiro de 1980, quando a Polícia da Guatemala invadiu o local e assassinou 37 pessoas, entre líderes indígenas, trabalhadores e estudantes, todas elas incendiadas por fósforo branco.

Claudia Paz y Paz é uma das caras da nova Guatemala que luta por ressurgir, é tida como símbolo de uma nova justiça, comprometida com a reconciliação do pós-guerra. Muito provavelmente por isso, seu tempo como Procuradora foi encurtado e a renovação de seu cargo foi negado. A juíza Yassmín Barrios, também recebe ameaças, anda com escolta policial, é vigiada 24h por dia e mantém um perfil baixo e discreto de uma vida que também é sacudida pelas forças conservadoras e criminosas da Guatemala que, durante décadas silenciaram milhares de mulheres que sofreram violências durante o conflito armado interno.

Em 2013, no entanto, para o julgamento de Ríos Montt, mais de uma centena detestemunhas foram ouvidas, a maioria eram mulheres ixiles. Depondo em seus idiomas, utilizando roupas tradicionais da região Quiché, contaram como foram estupradas na frente de seus filhos e filhas e como presenciaram militares ateando fogo em suas casas, algumas com bebês e adultos dentro. Foram necessários mais de 30 anos para que essas mulheres chegassem a um tribunal e pedissem justiça. Foram necessários, também, mais de 60 peritos diferentes para garantir a veracidade de suas falas, que denunciavam a aniquilação do povo Ixil como estratégia de guerra.

Qualquer análise sobre o conflito guatemalteco deve levar em conta questões relacionadas ao preconceito racial, étnico e de gênero. A guerra trouxe novos nomes para a composição do imaginário do inimigo interno: os subversivos e comunistas (sobretudo pela lógica comunal da organização indígena), guerrilheiros (por viverem justamente nas regiões periféricas que eram escolhidas pela guerrilha pela precariedade da presença do Estado) e não normalizáveis (os que tem o defeito da não hispanização, os não ladinos, os que destoam do ordenamento pós-colonial, os que devem, portanto, desaparecer).

Culpar indígenas pela guerra também foi tática recorrente: de tão diferentes, estes“outros” criaram condições perfeitas para a perpetuação das guerrilhas, defendiam guerrilheiros, tornavam-se guerrilheiros. E as mulheres? As mulheres pariam guerrilheiros, alimentavam o conflito com seus corpos e úteros impuros! Não por acaso todas as denúncias de massacres durante a guerra civil contém várias dezenas de denúncias de estupros massivos, usados como armas de guerra e que simbolizavam a redução da mulher a escravas sexuais e, também, claro, havia componentes mais sádicos, como os de purificá-las com o contato com homens de verdade, não guerrilheiros, hispanizados, ladinos.

Às mulheres ixiles, por conta da anulação do julgamento – que, na verdade, simboliza muito mais do que julgar um ex-ditador, significa a restauração da dignidade de mulheres indígenas subalternizadas – resta a espera, já que o julgamento será repetido em 2016. No entanto, de 2013 pra cá, seus atos de valentia e superação da vergonha em testemunhar violências, fortaleceram um processo de tomada de consciência coletivo que segue em andamento e já dá novos contornos de uma Guatemala que luta por ser menos injusta e guardiã de mulheres que recuperam suas vozes.

O CASO SEPUR ZARCO COMO NOVA FONTE DE JUSTIÇA PARA MULHERES INDÍGENAS: TRÊS SÉCULOS DE PRISÃO POR CRIMES DE GUERRA

Julgar crimes de guerra não é tarefa simples, pressupõe anos de preparação, verificação das denúncias e, em um país como a Guatemala, em que os denunciados estão vivos, ocupando cargos públicos e de poder e promovendo perseguições, para dizer o mínimo, é particularmente difícil. Os exemplos da ex-procuradora Claudia Paz y Paz e da juíza Yassmín Barrios, que levaram a cabo o julgamento do ex-ditador Ríos Montt, falam por si.

Há aproximadamente 34 anos, o destacamento militar Sepur Zarco, parte do Exército da Guatemala, praticou torturas e diversos crimes sexuais em Izabal, norte do país, entre 1982 e 1986. Em 2011, a justiça guatemalteca recebeu a denúncia de que haviam sido cometidas diversas violações de Direitos Humanos no interior do destacamento e, vinha, desde então, tomando testemunhos e verificando provas que, com o passar do tempo, reconstruíram a história antes contada: Sepur Zarco funcionou como local onde se praticou além de torturas e extermínios indígenas, escravidão sexual contra 15 mulheres da etnia q’eqchí.

As (hoje) avós de Sepur Zarco comemoram a sentença que condenou dois militares guatemaltecos por escravidão sexual e outros crimes de guerra

Os territórios q’eqchí encontram-se ao Norte da Guatemala, em locais que, hoje, fazem parte da zona de interesses de grandes transnacionais e onde um sem número de defensores e defensoras de Direitos Humanos tem sofrido graves ataques contra suas liberdades e suas vidas. Durante a guerra (1966-1996), grandes latifundiários, cujas terras estavam situadas no Norte, pediram proteção particular do exército para proteger-se de grupos indígenas organizados que reivindicavam a posse de várias faixas de terra. Foi assim que tropas do exército chegaram à região e se assentaram ali, formando um circuito de destacamentos que funcionavam como centros de tortura e extermínio de guerrilheiros e indígenas.

Sepur Zarco era um centro de descanso e recreação das tropas, por isso foi o local para onde as mulheres foram levadas após terem maridos e filhos mortos. Depois da guerra, elas mantiveram-se escondidas, estigmatizadas, traumatizadas, nunca conseguiram trabalhar fora de casa. Viveram não somente nas margens da pobreza, mas na escuridão e silêncio, convivendo com memórias que lhes situavam como culpados e responsáveis pela violência que sofreram.

O julgamento do caso ocorreu em fevereiro de 2016 e acusou o Coronel do Exército Esteelmer Francisco Reyes Girón e o ex-Comissário Militar Heriberto Valdez Asij de crimes contra a humanidade e, em específico, crimes de violência sexual, escravidão sexual e escravidão doméstica. As 11 mulheres que sobreviveram, após passar por um largo período de preparação psicológica, testemunharam no julgamento e reviveram, através de seus relatos, todas as violências as quais foram submetidas em Sepur Zarco. Novamente a juíza Yassmín Barrios conduziu o processo, desta vez, juntamente com Patrícia Bustamante e Gerbi Sical, criminalistas guatemaltecas.

Durante os vinte dias de tribunal, as mulheres permaneceram com os rostos cobertos, ato que é ainda resquício do medo e da vergonha. Encontraram solidariedade entre várias outras mulheres presentes, que também cobriram seus rostos. O caso Sepur Zarco é uma mostra de que a memória e as vozes das mulheres podem ser tão fortes quanto forte foi a resistência e paciência que, por mais de três décadas, desafiaram as q’eqchí. Como resultado desse esforço, elencam-se, de forma objetiva, a sentença final, de 120 anos de prisão para Reyes Girón e 240 anos para Valdez Asij, além de reparações econômicas para as vítimas. De forma indireta, há também mais uma importante abertura de precedentes vindo da Guatemala: o caso se tornou referência internacional por tratar-se de mais um julgamento de crime de guerra no país e por cuidar, em específico, de crimes cometidos contra mulheres, sempre denunciados, nunca particularizados, muito menos julgados.

Julgar Sepur Zarco foi enfatizar que os corpos das mulheres não são campos de guerra. E, pensando ainda na força do simbolismo, julgar Sepur Zarco é também colocar olhos e atenção da justiça em territórios que sempre foram marginalizados e esquecidos pelo Estado, mas, no entanto, sempre estiveram no cerne de diversas disputas entre as elites guatemaltecas e, dentro dessas disputas, a violação de direitos humanos sempre fez parte do modus operandi. É um lembrete de que existe Guatemala para além da cidade-capital, uma Guatemala que foi sempre protegida pelos corpos de seus indígenas, abandonados pelo poder central que, muitas vezes, este mesmo os esmagou.



Sobre o Autor:

Juliana Vitorino: é doutoranda em Ciência Política pela UFPE, professora de Relações Internacionais da Faculdade Estácio do Recife, pesquisadora do Instituto da América Latina (UFPE) e parte da coordenação da Rede de Centro-americanistas O Istmo (www.oistmo.com).



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