CHILE 1973: O outro 11 de Setembro

Povo com Allende

Quando se fala em 11 de setembro grande parte das pessoas lembra dos atentados terroristas às torres do World Trade Center em Nova York, no ano de 2001. Contudo, é preciso lembrar que existe outro 11 de setembro, que muitas vezes nem mesmo é mencionado nos livros de história: o 11 de setembro de 1973, ocorrido no Chile. O golpe violento que derrubou o presidente eleito Salvador Allende e instalou no país uma ditadura, sob o comando do sinistro general Pinochet, devem ser lembrados – ainda mais em um Brasil que se divide bizarramente entre “golpistas” e “não-golpistas”.

De 1964 até 1970 o Chile foi governado por Eduardo Frei, do Partido Democrata Cristão (de centro direita). Embora representasse a direita chilena Frei fez alguns programas de caráter “desenvolvimentista”, baseados, vagamente, na cartilha da Aliança para o Progresso de John Kennedy. Entre estes programas, cabe destacar uma tímida reforma agrária e um incentivo na educação pública de qualidade.

Durante o governo de Eduardo Frei as esquerdas se uniram numa coalizão chamada Unidade Popular. O objetivo era ter um programa mínimo em comum e lançar Salvador Allende para as eleições de 1970. Allende era socialista e durante seus estudos na faculdade de medicina passou a estudar o marxismo. Em 1933 foi um dos fundadores do Partido Socialista do Chile. A partir de então envolveu-se cada vez mais em política. De 1937 até 1960 ocupou diversos cargos públicos, tais como deputado, senador e Ministro da Saúde e do Bem Estar Social, de 1938 a 1942. Em 1964, Allende disputou a presidência do Chile com o Frei – nesta campanha Frei recebeu um grande apoio dos EUA, até mesmo quantias em dinheiro pagos pela CIA.

Eleito em 1970, Allende foi o primeiro presidente assumidamente socialista que chegou ao cargo por meio do voto na história da América Latina! Esta eleição foi extremamente representativa, pois muitos passaram a acreditar que era possível uma transição via eleitoral para o socialismo, sem a necessidade de uma luta armada, tal como ocorreu em Cuba nos anos de 1956 a 1959.

Salvador Allende

Dentre os projetos do governo Allende, estavam a continuação da reforma agrária (iniciada no governo anterior do democrata-cristão Eduardo Frei), reforma na educação, para torna-la totalmente pública, e nacionalização das minas de cobre. O cobre foi o grande eixo da economia chilena. “Quando Eduardo Frei ganhou as eleições em 1964, a cotação do cobre subiu de imediato com visível alívio; quando Allende ganhou as de 1970, o preço, que já vinha baixando, caiu ainda mais. Mas o cobre, habilmente sujeito às severas flutuações de preços, havia desfrutado de preços razoavelmente altos nos últimos anos, e como a demanda excede a oferta, a escassez impede que o nível tenha quedas consideráveis. [...] O salário médio das minas chilenas mal alcançava, em 1964, a oitava parte do salário básico nas refinarias da Kennecott nos Estados Unidos, [...] em 1965, Frei tornou o Estado sócio da Kennecott e permitiu às empresas pouco menos que triplicar seus lucros, através de um regime tributário que lhes foi muito propício.”[1]

A nacionalização do cobre irritou profundamente os setores chilenos lacaios do imperialismo. Apesar disso as nacionalizações não pararam. “Em fevereiro [de 1971], foram os transportes marítimos, em março, as indústrias Dupont e, em abril, os bens da ITT, a companhia americana de telecomunicações.”[2]

Empresários passaram a boicotar a população com o objetivo de atingir o governo: estantes de supermercados eram esvaziadas para dar a impressão que faltavam alimentos. A grande imprensa, nas mãos de grupos nacionais a serviço dos interesses estrangeiros, estampavam nas capas de seus jornais que a escassez era culpa do governo. Obviamente a população saiu às ruas para protestar, criando a imagem de desgaste do governo. Enquanto isso, dentro dos escritórios dos centros financeiros de Santiago, empresários e militares articulavam um golpe, que se deu de forma brutal no dia 11 de setembro.

Aviões militares sobrevoavam os céus da capital chilena enquanto o exército tomava conta das ruas. Houve resistência, mas não eram suficiente para o aparelho militar com tanques de guerra. Allende, resistindo dentro do palácio de governo, transmitiu um veemente discurso denunciando os golpistas traidores da pátria:

“Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para quem traiu seu juramento: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se auto designou comandante da Armada, e o senhor Mendoza, general rastejante que ainda ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao Governo, e que também se autodenominou diretor geral dos carabineros. 
Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos, não poderá ser ceifada definitivamente. [Eles] têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos. Trabalhadores de minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que foi apenas intérprete de grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez. 
Neste momento definitivo, o último em que eu poderei dirigir-me a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição, que lhes ensinara o general Schneider e reafirmara o comandante Araya, vítimas do mesmo setor social que hoje estará esperando com as mãos livres, reconquistar o poder para seguir defendendo seus lucros e seus privilégios. 
Dirijo-me a vocês, sobretudo à mulher simples de nossa terra, à camponesa que nos acreditou, à mãe que soube de nossa preocupação com as crianças. Dirijo-me aos profissionais da Pátria, aos profissionais patriotas que continuaram trabalhando contra a sedição auspiciada pelas associações profissionais, associações classistas que também defenderam os lucros de uma sociedade capitalista. Dirijo-me à juventude, àqueles que cantaram e deram sua alegria e seu espírito de luta. Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos, porque em nosso país o fascismo está há tempos presente; nos atentados terroristas, explodindo as pontes, cortando as vias férreas, destruindo os oleodutos e os gasodutos, frente ao silêncio daqueles que tinham a obrigação de agir. Estavam comprometidos. A história os julgará. 
Seguramente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranqüilo de minha voz não chegará mais a vocês. Não importa. Vocês continuarão a ouvi-la. Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos minha lembrança será a de um homem digno que foi leal à Pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve se deixar arrasar nem tranquilizar, mas tampouco pode humilhar-se. 
Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e seu destino. Superarão outros homens este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. 
Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição.”
Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973.[3]

No mesmo dia o palácio La Moneda foi bombardeado e invadido por militares golpistas que levaram o cadáver do presidente. Tragicamente termina o curto governo socialista, que não teve tempo de aplicar as todas reformas necessárias. É o inicio de um período ditatorial que vai durar até 1989. Durante este tempo, o Chile é governado pelo ditador Augusto Pinochet, um militar que chegou a fazer parte do governo Allende.

Perseguições políticas, torturas e assassinatos se tornam rotina. Estádios de futebol se tornaram verdadeiros campos de concentração, onde opositores da ditadura eram exterminados. Num destes estádios foi morto o famoso cantor e compositor chileno Victor Jara, em 1973 – em 2003 o estádio foi rebatizado, passando a se chamar Estádio Victor Jara.

***

Ao contrário do que diz o cientista político francês Olivier Dabène, no seu livro “América Latina no século XX”, o golpe de 11 de setembro de 1973 não representou o fracasso da esquerda chilena. O golpe foi contra o seu potencial de sucesso – sucesso porque afetou diretamente os setores nacionais hospedeiros parasitas do imperialismo estrangeiro. Foi contra o projeto nacionalista de Allende e da esquerda chilena. É sintomático na América Latina: nenhum regime autoritário e que se baseia na espoliação dos mais pobres se impõe sem a ruptura da ordem democrática; mesmo que ela esteja baseada no liberalismo burguês excludente.


Notas:

1 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 207, 208.

2 DABENE, Olivier. América Latina no século XX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 194.

3 Disponível em: http://geaciprianobarata.blogspot.com.br/2015/09/o-ultimo-discurso-do-presidente-chileno.html

Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo: Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

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