GUERRA CONTRA OS ESTADOS UNIDOS! a resistência indígena no século XIX

“Quando eu era jovem, andava por todo este território, pelo leste e oeste, e nunca vi outro povo além dos apaches. Depois de muitos verões, andei novamente por ele e encontrei outra raça de pessoas, que viera para toma-lo.”
(Cochise)


A história dos Estados Unidos é marcada por um genocídio indígena que foi intensificado paralelamente à expansão territorial que o governo do país promoveu em direção a oeste, no século XIX.

Já no século XX, a mitologia hollywoodiana espalhou para o mundo os filmes que retratam o “longinquo oeste” (Far West). Obviamente o sentimento WASP dos diretores dos grandes estúdios de cinema transformou o indígena no bandido, que rouba gado e sequestra crianças e mulheres, e o invasor branco no herói, empunhando um revólver colt ou uma espingarda winchester. Coincidência ou não, estes filmes sobre o “velho oeste” fizeram sucesso nas décadas de 1950 e 1960, no auge do macarthysmo anticomunista; nos filmes os “inimigos” eram retratados como os “peles vermelhas”, na vida real os “inimigos” eram os “vermelhos” (comunistas).

Se por um lado alguns estudiosos interpretam como derrotismo e vitimização estes episódios de extermínio indígena, é preciso lembrar que também houve resistência!

Antecedentes

O continente americano tem uma característica bem particular: a tradição guerrilheira. Esta tradição vem desde os primeiros tempos da colonização; dos diversos episódios de resistência indígena contra o avanço colonial no continente[1] . Na região que hoje é conhecida como Estados Unidos não é diferente.

Com a chegada dos ingleses na costa atlântica, norte da América, durante os séculos XVII e XVIII, iniciou-se uma relação com os indígenas que viviam nas proximidades dos Montes Alleghenys e Apalaches. Na mesma época, nas terras além destas montanhas, os franceses estabeleceram-se na grande região ao longo do rio Mississipi, criando um rentável comércio de peles com os indígenas locais – peles trocadas por rum produzido nas colonias francesas do Caribe. Mas à medida que mais colonos ingleses vinham para as Treze Colônias, ou que as cidades ficavam pequenas, as terras a oeste dos Apalaches eram invadidas por colonos ingleses. Os choques contra os franceses e indígenas se tornaram frequentes.

No ano de 1763, o rei da Inglaterra, Jorge III, decretou a soberania indígena nas terras a oeste dos Apalaches. Isto pareceu uma afronta para os colonos: eles pensavam que deveriam ser recompensados com terra por terem lutado contra franceses e contra os índios. Mesmo com esta proibição os colonos continuavam sua expansão sobre aquelas terras. Mas esta expansão entre a costa atlântica e o rio Mississipi não foi fácil. Muitos povos originais não aceitavam a invasão dos colonos, principalmente na região dos grandes lagos. Antes dos colonos ingleses os franceses já haviam enfrentado indígenas na região – na chamada Guerra Franco-Índia. Uma confederação, liderada por Pontiac, chefe do povo ottawa, ofereceu grande resistência; mas terminou derrotado pelos colonos.

Pintura de Andrew Jackson

Pueblos, navajos e cheyennes

A expansão dos colonos brancos para o oeste encontrou os povos originais daquele território. Muitos massacres entre brancos e indígenas ocorreram ao longo de todo o século XIX, reduzindo em alguns milhares a população original. A luta dos indígenas era por terra e liberdade. Esta questão dos povos originais fez o governo dos Estados Unidos tomar algumas medidas. Em 1830, Jackson promulgou a “Lei de Remoção dos Índios”. De acordo com a lei, os indígenas seriam obrigados a ir para um território exclusivo para eles: Oklahoma (que em 1907 se tornaria um Estado). As levas de indígenas obrigadas a rumar para o território tiveram uma jornada muito árdua. Milhares morreram no caminho, de fome, de frio e de cansaço. Não é a toa que este episódio ficou conhecido pelos povos indígenas como Trilha das Lágrimas.

No ano de 1847, os Estados Unidos estavam envolvidos na guerra contra o México, uma consequência da “questão do Texas”. Durante esta guerra entre estadunidenses e mexicanos, muitos indígenas foram mortos. Ao que parece, os indígenas eram tidos como “inimigos em comum” até mesmo em tempos de guerra entre dois países. Neste mesmo ano ocorre um episódio inesperado conhecido como a Revolta Taos. Indígenas pueblos se unem ao exército mexicano para enfrentar os estadunidenses que ocupavam o Novo México.

Em 1863, foi a vez do enfrentamento navajo contra o exército dos EUA. O país estava em guerra civil, norte contra o sul, e ambos contra os indígenas. Após uma longa batalha no Arizona, 8 mil navajos, capturados pelo exército dos EUA, foram enviados para uma “reserva” (reservas que estavam mais para um campo de concentração) no Novo México, e tiveram suas terras arrasadas – de modo que nenhum outro indígena se estabelecesse naquela região.

Em 1864 foi a vez dos cheyennes entrarem em guerra após o massacre de Sand Creek, onde foram mortos mais de 100 indígenas com requintes de crueldade. A partir daí os cheyennes passaram a guerrilhas sob o comando de Chaleira Preta. Com intermináveis acordos de paz que jamais se cumpriam e que só faziam o povo cheyenne ir de um lugar para o outro, Chaleira Preta foi derrotado na luta contra o exército dos EUA na batalha de Washita, em Oklahoma, no ano de 1868.

A longa guerra de guerrilhas apache

Os apaches eram um povo que vivia no sudoeste dos Estados Unidos e norte do México. Divididos em subgrupos (chiricahuas, jicarilla, mascarelo, apaches do oeste, navajo, tontos, aravaipa denes, entre outros) cuja característica em comum é a língua apache. Eles viviam da agricultura (milho e feijão, que se tornaram alimento dos colonos também) e da caça.

Com a guerra entre Estados Unidos e México (1846-1848), os líderes apaches chegaram a estabelecer acordos com os generais estadunidenses para permitir a passagem de tropas por suas terras; algumas escaramuças até ocorriam mas de forma esporádica e isoladas. Com o fim da guerra e anexação de grande parte do território mexicano pelos Estados Unidos, junto a descoberta de ouro na Califórnia (em 1848), as escaramuças entre brancos e indígenas se tornaram sistemáticas. Acordos entre os chefes apaches e os comissários dos governos dos Estados Unidos eram frequentemente quebrados.

Os apaches estavam confusos, não sabiam mais como confiar nos brancos. Então duas grandes lideranças apaches, os chefes Mangas Vermelhas (ou Coloradas) e Cochise, ambos da tribo chiricahuas, decidiram liderar a resistência. Uma guerra de guerrilhas foi travada entre apaches e estadunidenses. Mortes de ambos os lados e nem mesmo com a guerra civil (1861-1865) os exércitos estadunidenses deram trégua ao indígenas; ao contrário, a guerra serviu de pretexto para que os brancos cometessem as maiores barbaridades e atrocidades com os apaches resistentes. Mas não só soldados atacavam os indígenas, eles também eram hostilizados por exploradores de ouro e caçadores de búfalos.

Mangas Coloradas

Em 1860, mineradores atacaram um acampamento indígena. Mangas Coloradas saiu em defesa dos seus protegidos e revidou, atacando algumas invasões que os mineiros estabeleceram em território indígena. Houve tentativas de acordo de paz entre Mangas Coloradas e os estadunidenses, mas o chefe apache foi pego numa emboscada e feito prisioneiro no Fort McLean. O responsável pelo local, general Joseph West, deu ordens de executar Mangas Coloradas. Antes de ser fuzilado, Mangas Coloradas foi barbaramente torturado. “Eles aqueciam suas baionetas no fogo e encostavam-nas nos pés e nas pernas de Mangas. Depois do chefe sofrer essa tortura várias vezes, levantou-se e 'começou a censurá-los de forma vigorosa, dizendo às sentinelas, em espanhol, que não era criança para brincarem com ele. Mas suas censuras foram cortadas logo, pois mal começara suas exclamações, ambas as sentinelas prontamente tiraram seus mosquetes de balas cônicas, apontaram e dispararam, quase ao mesmo tempo, contra seu corpo'. Quando Mangas caiu, os guardas esvaziaram seus revólveres no corpo do chefe. Um soldado pegou seu escalpo, outro cortou-lhe a cabeça e queimou a carne, de modo a poder vender o crânio a um frenologista do Leste. Jogaram o corpo decapitado numa vala”.2

Com a terrível morte de Mangas Coloradas assumiu a liderança da resistência indígena Cochise. Cochise era casado com a filha de Mangas Coloradas, Dosteseh. Acusado em 1861 de raptar o filho de um fazendeiro e roubar o gado deles. Nesta época, o tenente George Bascom por sua vez, raptou alguns parentes de Cochise e só prometeu devolve-los se o líder indígena e seu povo devolvessem o gado e o menino. Chochise tentou negociar, alegando que seu povo não tinha nada a ver com o episódio, mas que poderia ir atrás dos responsáveis (um outro povo apache que não tinha relação com aqueles liderados por ele). O tenente Bascom não quis negociar e deu ordens de prender Cochise. O líder indígena conseguiu escapar, mesmo ferido com um tiro, mas sua família permaneceu refém dos militares. Com o intuito de reaver seus parentes, Cochise raptou três brancos para trocar por seus três parentes. Bascom, arrogante e indiferente, não quis negociar. Cochise acabou executando os prisioneiros; Bascom fez o mesmo com os parentes do líder apache.

Após a morte de Mangas Coloradas em 1863, a guerra entre os apaches e os estadunidenses se intensificou até 1871, quando alguns apaches passaram a agir como informantes do exército dos EUA – traindo seu povo. Cochise ainda resistiu por algum tempo, enfrentando os brancos mas foi derrotado definitivamente em 1872, quando liderou seu povo a resistir à remoção para uma “reserva indígena” no Arizona. Com sua morte, a união dos povos apache acabou se desfazendo.

O último líder apache

Cochise, o grande líder apache, morreu em 1874, numa reserva. Mas os focos de resistência ainda eram fortes. O novo líder apache era Gerônimo, cujo verdadeiro nome era Goyatlay; ele lutou ao lado de Mangas Vermelhas e Cochise. Certa vez, durante a guerra contra os mexicanos e estadunidenses (1846-48) Goyatlay teria enfrentado vários soldados armado apenas com uma faca.

Gerônimo era líder de guerreiros irredutíveis: que não aceitavam qualquer tipo de acordo com o governo dos EUA; diferente de seus antecessores Mangas Vermelhas e Cochise.

Geronimo

Após fugir dos exércitos dos EUA, Geronimo e seus guerrilheiros apache se instalaram no México. Eles pegavam o gado da região, sem saber que era de propriedade dos fazendeiros locais – mas era o suficiente para os soldados mexicanos caçarem o grupo. No ano de 1882, um acordo entre EUA e México estabeleceu que soldados podiam cruzar a fronteira do país vizinho em perseguição a apaches considerados “hostis”. Mais um período de guerrilhas e privações para os apaches.

Um grupo de fornecedores de armas do Arizona acharam que poderiam lucrar com uma guerra contra os apaches, eles fizeram um acordo conhecido como “Acordo de Tucson”. O lobby, com os políticos e os membros deste acordo iniciaram. Paralelamente uma campanha midiática pintou Gerônimo como um verdadeiro “demônio especial, inventando histórias de atrocidades às dúzias e pedindo vigilantes para enforca-lo, se o governo não o fizesse”3. Em 1886, o general Nelson Miles “com pleno apoio do Departamento de Guerra, colocou rapidamente 5 mil soldados em ação (cerca de um terço da força de combate do Exército). Também tinha 500 batedores apaches e milhares de milicianos civis irregulares. [...]. O inimigo para ser derrotado por essa poderosa força militar era Gerônimo e seu 'exército' de 24 guerreiros que, por todo verão de 1886, também estiveram sob perseguição constante de milhares de soldados do exército mexicano”[4]

Após algum combates, Gerônimo se rendeu às tropas de Nelson. Ele passou o resto de sua vida em diversas prisões e chegou a virar uma celebridade popular; participando até mesmo da Feira Mundial de Saint Louis em 1904. Gerônimo morreu no Fort Sill, em Oklahoma, no ano de 1909.

Little Bighorn e Wonded Knee

Os sioux eram um povo que vivia próximo às planícies centrais dos Estados Unidos. Também chamados de dakotas, ou lakotas, praticavam a agricultura e da caça de bisões e bufalos. Um dos líderes indígenas mais expressivos deste povo foi Tatanka Iotanka, também conhecido como “Touro Sentado”. Em 1876, Iotanka liderou um grande exército com mais de 3 mil sioux (com alguns cheyennes remanescentes dos massacres como o de Sand Creek e Wasthita) contra o exército sob o comando do general George Custer. Os sioux venceram a batalha nas proximidades do rio Little Bighorn, em Montana. Nos anos seguintes, Iotanka tenta em vão conseguir terras para seu povo no Canadá, e ainda participa dos shows do aventureiro e empresário Willian “Buffalo Bill” Cody; durante estas apresentações, que contam as aventuras do personagem folclórico Buffalo Bill, Iotanka percebe a pobreza de alguns homens brancos, chegando a perguntar porque eles permitem que isto aconteça com seu próprio povo.

Por volta de 1880, Iotanka e os sioux acabaram sendo atraídos por um ritual chamado “Dança dos Fantasmas”. Liderada por um xamã, os indígenas que ingressavam neste ritual acreditavam que ao dançar juntos, de mãos dadas em círculos, eles trariam seus mortos de volta a vida e expulsariam os brancos de suas terras; voltando, assim, a viver em plena liberdade. O governo de alguns estados passou a ver este ritual da dança os fantasmas como algo perigoso e passaram a matar os indígenas que a praticavam. Foi num destes conflitos que morreu o líder sioux, vencedor de Little Bighorn, Tatanka Iotanka, em 1890.

Dois anos depois, em 29 de dezembro de 1892 o exército estadunidense matou cerca de 300 indígenas dakota, entre os quais mulheres e crianças, em Woundeed Knee, Dakota do Sul. Os soldados que praticaram o massacre foram agraciados com a “medalha de honra”, a mais alta condecoração militar estadunidense.

“Mesmo antes de Wounded Knee, o sistema de vida dos indígenas havia sido destruído pela dizimação dos bufalos. Desde o governo Monroe (1817-1825), a política oficial fora transferir os ameríndios para terras além da 'fronteira branca', sempre de maneira inábil e, por vezes cruel, [...].”[5]

Obviamente este texto não esgota o tema das resistências indígenas nos EUA. No século XX esta resistência vai continuar sob as mais variadas formas, como por exemplo o Red Power dos anos 1960.


Notas:

[1] O exemplo mais duradouro de resistência indígena é a centenária Guerra de Arauco: http://geaciprianobarata.blogspot.com.br/2016/08/guerra-de-arauco-verbete.html?

[2] BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. São Paulo: Círculo do ivro, s/d, p. 156-7.

[3 ]BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. São Paulo: Círculo do ivro, s/d, p. 254.

[4] op. cit, p. 258-9.

[5] KARNAL, Leandro [et al.]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2011, p. 163


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo: Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

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