SIMPLESMENTE UM PIRATA: O lado pouco conhecido de Thomas Cochrane, um dos grandes nomes de nossa independência

Estamos mesmo falando de Thomas Alexander Cochraner, o tão afamado herói das independências do Chile, Peru (de 1818 a 1822) e Brasil (em 1823)? Do celebrado comandante naval britânico que tanto se destacou nas Guerras Napoleônicas? Se sim, então como o dizer dele ter sido um simples pirata?


Vejamos: por onde começar? Talvez indo direto ao ponto. Em que de fato muitas foram as suas realizações. Pois isso é inegável. Contudo, também é certo que nada do fez o foi por mero idealismo. Prestou grandes méritos, sim, todavia, por todos eles, de um modo ou de outro, sendo muito bem pago. Uma afirmação dura, mas verdadeira. 

Mas como? Estamos falando do mesmo homem sepultado como um dos destacados heróis pela Coroa Britãnica em 1860? Do almirante já homenageado com seu nome em cinco grandes embarcações da Marinha Chilena? E que, além disso, denomina um lago e uma cidade no Chile _Cochner (apesar de que para os argentinos tal nome não lhes signifique nada, tanto que eles chamam a este mesmo lago, que fica na divisa dos dois países, de Pueyrredón).


Fragata Almirante Cochrane (ex Norfolk) adquirida pela Marinha Chilena em 2006


O que até um ponto é bem compreensível. Já que não há como negar que sem a ação deste escocês nascido em Annsifield, em 1775, certamente a emancipação politica do Chile teria sido muito mais difícil e traumática. Da mesma forma, a unidade territorial da qual o Brasil hoje se orgulha, também teve o seu dedo. Tanto quanto, a consolidação de fato da nossa independência, devemos muito dela aos seus esforços.

Isso, a despeito de todas as adversidades materiais que encontrou nestes países. Tão desprovidos de recursos bélicos contra nações muito mais fortes, militarmente, que eles (Espanha e Portugal) na época. O que, talvez explique porque o governo brasileiro, já em 1823, lhe fez Marquês do Maranhão, como reconhecimento a tudo isso. A despeito de toda a revolta dos maranhenses com a associação de sua terra com este homem. Mágoa, aliás, até hoje perpetuada entre os mesmos.

Ou seja, boas testemunhas de como o legado de Cochrane não é assim tão imaculado. E que nos convidam a ver este destacado marinheiro como, sim, um grande comandante, mas nem de longe um grande herói. Alguém a quem o Brasil muito deveu e, querendo ou não, nossa nação já pagou por toda a ajuda que dele recebeu. E só! Sem nenhuma necessidade de fervorosa exaltação à sua memória.

Para tanto, entenda-se: 1822. Um Brasil que nada mais era do que um amontado de regiões autônomas unidas apenas pela representação formal de um vice-rei _administrador colonial indicado pelo rei de Portugal_ (até 1808) e depois pela autoridade do próprio monarca até 1822. Onde deste modo, diferentes interesses se desdobravam nestas diversas localidades.

Logo, por ocasião da proclamação da nossa independência, apenas Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais prontamente aderiram à separação realizada por D. Pedro I. Somente estas províncias (nome antes dado aos estados) viam necessidade de romper seus laços com Portugal.

A partir desse entendimento, podemos nos focar nos casos da Bahia, do Pará e do Maranhão, locais onde este veterano dos mares se fez um dos protagonistas nas guerras da nossa independência. Em especial a Bahia. Já que ela se fazia muito mais do que um risco à unidade nacional. 

Evidentemente uma verdadeira base para que as forças portuguesas, contrárias à separação, até pudessem ousar retomar, lentamente, o controle de toda a colônia. Já o Pará e o Maranhão nem tanto. 

As lideranças destas últimas limitavam o seu interesse em se manterem fiéis aos portugueses. E, portanto, se declarando separadas do restante do Brasil e ligadas diretamente a Portugal. 

Por outro lado, é claro que foram vários os homens que decidiram o futuro destes locais rebeldes. Dentre os quais, Cochrane foi um deles. Sobre o qual é preciso destacar: tendo à sua frente uma marinha nacional praticamente inexistente. E, apesar disso, ele varreu complemente a ameaça das frotas portuguesas sobre as nossas costas. Nisso idêntico, tanto em seu melhor como em seu pior, à sua postura ainda no Chile.

Já que este “(...) romântico avarento por dinheiro e mentiroso” assim citado na obra “1822” do jornalista Laurentino Gomes, nunca fora um idealista. Visava somente aos seus próprios interesses. Indepedente das disposições dos outros a se curvarem, ou não, ao seu status de grande celebridade que ele já conquistara na época.


Thomas Cochrane


Isso explica porque após uma discussão com o general argentino José de San Martín sobre seus honorários, Cochrane não teve pudores em roubar uma embarcação em retaliação. Nela, San Martín tinha guardado todo o Tesouro Público do Peru, para evitar que os espanhois o saqueassem. 

Claro que parte deste dinheiro serviu para pagar sua tripulação que estava com seus salários atrasados. Contudo, apenas o fez apenas com parte deste montante. O resto não é difícil concluir que destino teve. Porém, isso não foi suficiente. Antes de aceitar o convite para o Brasil, ele não se incomodou em saquear algumas cidades litorâneas até ajuntar o que achava que lhe deviam. 

Mas voltando à realidade do Brasil, após a sua chegada, já em menos de 02 meses, a marinha portuguesa se via fugindo da Bahia, graças à sua habilidade. E com isso, restavam apenas o Maranhão e o Pará. Os quais seriam de conclusão bem mais fácil. Principalmente o Maranhão, que sem a sua ação, de qualquer maneira acabaria submetido. 

Isso após a vitória das forças pró-independência no combate do Morro de Tabocas em 13 de março de 1823. Mas se assim, qual o mérito de Cochrane neste caso? Bem... Bem... chegamos a um ponto controverso.

Por um lado, o ardiloso escocês acelerou e evitou um maior derramento de sangue, sem ter precisado dar um único tiro que fosse. Já que ao se aproximar da capital São Luís, ele fingiu comandar uma embarcação neutra no conflito. Quando hasteou a bandeira britânica, em vez das cores brasileiras. 

De modo que não havendo necessidade para repudiar a estes recém-chegados, o oficial da guarnição decidiu ir saldá-los pessoalmente. E tal qual um peixe que morde o anzol, acabou preso. Sua libertação somente foi concedida quando disposto a levar para o governador das armas, Agostinho de Farias, a exigência de capitulação da cidade. 

Foi assim que o Maranhão fez sua adesão ao império do Brasil. Sendo agora o Pará sua última empreitada. A qual ele não quis conduzir pessoalmente. Em vez disso, ele delegou ao capitão Joe Pascoe Grenfell enviar a falsa notícia de que toda a frota imperial brasileira sob o comando de Cochrane se preparava para atacar Belém.

Um blefe, mas os portugueses preferiram não correr o risco e entregaram a capital paraense, do mesmo modo que no Maranhão: pacificamente. Um jogo arriscado, mas que deu certo. E como! 

Correto, mas aonde se acha a controvérsia? Na ação predatória de Cochrane após tomar São Luís. Que apesar de não ter lhe enfrentado, a cidade foi tratada por ele como uma nação inimiga e não um território resgatado. Tão voraz a ponto de perpetuar, nas gerações maranhenses seguintes, um rancor descomunal. Como se vê na conclusão do historiador Astolfo Serra (1900-1978) sobre quem seria realmente Thomás Cochrane: “simplesmente um pirata!”. 

Posto que de acordo com Vasco Mariz (na reportagem “O escocês que salvou o Brasil” da revista História Viva, em 2014), o conquistador se apropriou dos bens de portugueses e do capital da dívida pública, além de 03 mil arrobas de pólvora da Fazenda nacional, de muitos escravos. Isso além da alfândega toda dilapidada. 

Laurentino Gomes, em seu “1822” estima algo em torno de 75 milhões de reais, se convertidos em valores atuais, tudo o que ele tomou de Salvador, São Luis (onde só lá amelhou o que seria equivalente a 40 milhões de reais hoje) e Belém.

A despeito disso, mal retornando ao Rio de Janeiro, foi condecorado, pelo próprio Dom Pedro I, com a recém-criada Ordem do Cruzeiro do Sul e o título de Marquês do Maranhão. Ainda que, por outro lado, parte do seu botim de guerra teve de ser devolvido aos antigos donos. E uma pendenga judicial se inicia.

Justo quando, logo em seguida, estoura em Pernambuco e depois nas províncias vizinhas, a chamada Confederação do Equador. Confiante de que seria devidamente recompensado, o Almirante e agora Marquês do Maranhão, cumpriu novamente o que se esperava dele. 

E, ao fim da repressão, ciente do caos que se formara entre gupos rivais pelo controle de São Luís, ele voltou para lá, em novembro de 1824. Onde, com facilidade restaurou a ordem, como era o anseio da população em geral. No entanto, como era de se esperar da sua índole, o pacificador não demorou muito para cobrar a conta. 

Pelos seus cálculos, Cochrane teria de receber 85.000 libras esterlinas (cerca de 25 milhões de reais de hoje, com base nas estimativas de Laurentino Gomes). Contudo, “benevolente” se mostrou satisfeito em receber 21.000 libras (cerca de seis milhões) se o fizessem imediatamente.

E por fim, uma vez não vendo mais porque continuar no Brasil ele sequestrou um navio para a sua ida até a Grécia. País que agora lutava pela sua independência. Portanto, em meio a uma nova guerra que lhe era mais promissora, em vista das suas relações já extremamente desgastadas com a América Latina. 

Sobre as quais, sejamos justos, há aqueles que tentam explicar, em parte, o porquê de elas sempre terminarem nesta sua ação predatória. Por exemplo, para o historiador Luis Fabiano Tavares, citado no artigo “Lord Cochrane, o turbulento Marquês do Maranhão” de Vasco Mariz, a questão não era somente quanto aos seus ganhos pessoais. 

Dado que também, no entender deste pesquisador, a moral deste polêmico almirante para com seus comandados igualmente estava em jogo. Os mesmos frequentemente ficavam meses que sem receber seus ordenados combinados. Está bem, pode até ser. 

Pois, de fato, o polêmico Marquês do Maranhão, ao que parece sempre buscou apenas cobrar o que ele achava ser o reconhecimento pelos seus serviços muito bem prestados. Préstimos que, entretanto, ele oferecia somente àqueles que lhes fossem mais vantajosos vir a servir. 

Logo, se talvez seja um tanto radical ver Thomas Cochrane como um mero bandido, um ladrão voraz, do mesmo modo que, vê-lo como um grande herói, é discutível. Talvez o possamos ver, simplesmente, como alguém que teve a sorte de, na maioria das vezes, ter servido aos lados que hoje entendemos como politicamente corretos. O quem sabe classificá-lo como um grande aventureiro oportunista.

E, deste modo, com sua ousadia, tendo ganhado tanta simpatia de pessoas que, ao longo de quase dois séculos, não foram tão duramente espoliadas como se viu na pobre São Luís. Um grande homem, mas não em seu caráter. 

Um homem digno de ser lembrado. Porém, não apenas pelos seus atos que se louvam, quando seu lado pouco conhecido igualmente é valioso ser exposto. Ao nos mostrarem como, não raro, ditos grandes não merecem nenhum louvor. Dado que quando praticam o bem, fazem apenas a obrigação que se espera deles. 

Em conclusão: vejamos mais às ações sem nos sentirmos em débito para com seus autores. Busquemos imitar suas melhores qualidades, sem nos cegarmos aos seus erros. Reconheçamos o que nos legaram de bom, mas sem nos entregarmos à idolatria, idealização fanática. 

E, quem sabe, deste modo, podermos vir a sermos nossos próprios heróis, ao também fazermos a História em vez de sermos apenas levados por ela. Creio que isso é o que melhor podemos aprender com essa história que agora vimos. Heróis que muitas vezes nem chegam a ser heroicos, tendo sido imortalizado simplesmente por fazerem o que outros preferiram apenas observar e criticar. 

Sendo esta última colocação interessante frisar: apenas recriminar, acusar é fácil. Fazer algo nem tanto. Correr riscos, muito menos. Por isso, muitas vezes somos muito mais expectadores, do que atores da História que passa diante de nós. E o pior: não queremos admitir isso.

Logo, como esperar homens melhores a fazerem a história desse mundo, se não houver candidatos mais aptos para tal vaga? Mas se sim, por onde começarmos? Uma breve dica: simplesmente fazer ao que você acha que está ao seu alcance. Um alcance que, sempre que você for parar para observar melhor, poderá até se surpreender ao ver como ele lentamente se amplia. 

Então eu provoco porque não ousar agir numa direção, por mais simplória que lhe pareça essa ação. Arriscar intervir em algo que acredite ser preciso, inclusive aceitando as consequências disso ou se acomodar e apenas torcer (ou até exigir em nosso inconsciente) que um herói surja do nada para nos salvar.

Fazer ou não algo, essa é a questão. Isso, ou o risco de ficarmos, tantas quantas vezes, na dependência de alguém por quem podemos depois nos dividir entre idolatria e lamentar. Ousar escrever capítulos novos na nossa própria história ou se apegar a crença apaixonada (e até cega, por vezes) a um vulto em nome de uma esperança que precisamos criar para viver. Então que opção nós escolheremos?



Sobre o Autor:
LUIS MARCELO SANTOS: é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.

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