Manoel Bomfim ainda está sendo descoberto. Durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979) tivemos a lei da anistia, a volta do pluripartidarismo, a extinção do AI-5 e, poucos anos após a presidência do general Figueiredo (1979-1985, quando terminou formalmente a ditadura de primeiro de abril de 1964), tivemos a realização regular de eleições diretas para todos os cargos eletivos. Depois desses acontecimentos o livro clássico de Manoel Bomfim, A América Latina: males de origem, foi reeditado. Darcy Ribeiro havia publicado um artigo elogioso ao sergipano, em 1984, chamado Manoel Bomfim: antropólogo, mas foi ainda muito pouco para haver uma descoberta deste intelectual, pioneiro também na psicologia social no Brasil. Bomfim era contra o racismo, o denunciando na ciência, defendia a educação popular e uma radicalização revolucionária da nossa democracia. A pobreza do povo era fruto de um duplo sistema espoliativo: no campo externo, colonialista; no campo interno, classista. Sim, ele denunciava as nossas lutas de classe desde antes de autores como Caio Prado Júnior e Octávio Brandão escreverem, respectivamente, Evolução política do Brasil. Ensaio de interpretação materialista da história do Brasil e Agrarismo e industrialismo. Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil.
Manuel Bomfim (Aracaju, 8 de agosto de 1868- Rio de Janeiro, 1932), foi um médico, psicólogo, pedagogo, sociólogo e historiador brasileiro. |
Chamamos a atenção para o primeiro sistema espoliativo. Consideramos, como Aluizio Alvez Filho em Manoel Bomfim. Combate ao racismo, educação popular e democracia radical (2013), que o médico sergipano apreendia as críticas do seu tempo ao racismo científico, buscando escrever penetrando no nevoeiro das aparências. E essas aparências escondiam que as grandes nações salteadoras, parasitavam os pobres e oprimidos da América Latina. Os remédios para esses males derivados do parasitismo, eram a educação popular e a revolução da sociedade brasileira. Porém, mais que denunciar, Manoel Bomfim agia nesse sentido. Escreveu em A América Latina: males de origem:
Enquanto os outros povos, segundo a evolução normal das sociedades ocidentais, passavam do viver militar ao regime industrial, e entravam na fase verdadeiramente produtora, as nações ibéricas tornavam-se definitivamente em parasitas sedentários; cerravam os olhos e tapavam os ouvidos ao progresso científico, aferravam-se a esse viver que lhes parecia ideal- Sugar! Sugar! Sugar! E de decadência em decadência, degenerando e retrogradando sempre, chegaram a perder todo o caráter primitivo, toda originalidade própria- estética e filosófica (...) Viveram 300 anos indiferentes à evolução que se fazia no resto do mundo, obstinados em permanecer no passado, e esse passad levou-s quase à morte (p. 11)
O que Manoel Bomfim, durante a Primeira República, denunciava, ficará explícito nesse texto, que abordará a chegada dos portugueses na Pindorama. Portugal foi o primeiro experimento de Estado Moderno na Europa. A unificação do poder político que caracteriza um estado moderno ou absolutista foi viabilizada por meio da associação entre Estado e burguesia, quando a conjuntura na Península Ibérica era de expansão territorial e de revolução burguesa, a chamada “revolução de Avis”, que aconteceu no período compreendido entre 1383 e 1385, quando a burguesia pela primeira vez apoiou um reinado na Europa, durante o governo de Dom João de Avis. Essa aliança precoce entre o rei e a burguesia resultou em enormes investimentos nas navegações comerciais e nas expedições que chegaram aos territórios indígenas americanos do sul.
Pela primeira vez os poderes políticos foram centralizados nas mãos da monarquia. Depois outros reinos europeus fizeram o mesmo. A igreja católica, que estava interessada em expandir a fé, também apoiou, ao lado da burguesia, o reinado do Mestre de Avis e as expedições marítimas. Como as camadas mais humildes, que também apoiaram a empresa mercantil. A aproximação dos portugueses com os muçulmanos permitiu o conhecimento de técnicas que facilitaram as navegações, o desenvolvimento de novos equipamentos, como o astrolábio e a bússola: sem esses objetos a chegada dos portugueses na América no final do século VX não teria sido possível. A “febre dos descobrimentos” não teria passado da vontade.
O objetivo inicial dos portugueses era encontrar novos caminhos para o Oriente, pois o curso por terra (até Constantinopla) estava tomado pelos turcos otomanos. Esse percurso era importante para comerciar, aumentar as reservas de ouro, ampliar a oferta de produtos, e realizar do périplo africano para traficar trabalhadores escravizados.
Portugal fica na Península Ibérica, área aonde apareceu gente das mais variadas procedências, como gregos, fenícios e cartagineses, que estabeleceram feitorias no seu litoral. A região foi dominada pelo Império Romano, depois pelos visigodos, que lá se fixaram. As lutas com os árabes durou séculos, desde antes da formação do estado nacional, continuando as séries de conflitos entre senhores feudais cristãos e califas muçulmanos durante séculos depois da independência. Portugal surgiu do fracionamento da Galícia, alcançando autonomia em 1140 com Afonso Henriques.
A Expansão territorial de Portugal significou o declínio do seu grupo mercantil. Portugal que obteve sua autonomia em 1140, consolidada durante uma revolução popular e burguesa, chamada “revolução de Avis”, iniciada em 1383, propiciou uma aliança entre burguesia e Estado. A burguesia apoiou o Estado absolutista português, financiando grandes “descobertas” oceânicas, a exemplo da viagem de Vasco da Gama à Índia. A expansão territorial lusa uniu as classes sociais, antes desunidas durante a Revolução de Avis. Quando acontecem as “grandes navegações” a estrutura social lusa era formada pelos senhores feudais, nobres de posse e títulos, proprietários territoriais, clero, mercadores, plebe- pessoas ligadas à pesca, à náutica, as equipagens das frotas, servos, e trabalhadores escravizados. Conforme Nelson Werneck Sodré, em Evolução social e econômica do Brasil (1996):
O estrato social em escensão- conhecido como burguesia, porque concentrava sua ação nas cidades, isto é, em burgos- proporcionou aos poderosos senhores feudais os reais (moeda) que lhes permitiram unificar o poder. Desta unificação, que é, em síntese, uma unificação monetária, surgiram as nações modernas (p. 8).
No tempo da feudalidade o poder em Portugal estava repartido entre os nobres. Com a concentração de poder nas mãos laicas, o país colocou a monarquia acima da igreja e atingiu a era moderna. O movimento renascentista e a Reforma, foram duas mudanças que denotam a ascensão da burgusesia, prestes a tornar-se uma nova classe social. Aconteceram diversas alterações na política portuguesa, na transição da Idade Média para a Idade Moderna. A guerra tornou-se um instrumento político. A bravura cedeu lugar a mecânica. A pólvora democratizou a guerra, colocando todos os combatentes em pé de igualdade. Nesse sentido, a pólvora transformou o modo de vida cristão por meio da guerra. O uso da pólvora em explosivos, canhões, armas de fogo, depois de sua invenção na China, junto com o surgimento da imprensa e as novas técnicas de navegação, mudou as relações sociais, que passaram de feudais para burguesas.
Todas as novas possessões adquiridas nas expedições marítimas, eram legisladas através dos forais, elaborados por um rei com o intuito de regulamentar a administração de terras conquistadas e que dispunha ainda sobre a cobrança de tributos e quaisquer outros privilégios. Os privilegiados durante a Idade Média eram os nobres, cujas propriedades estavam isentas de tributação. Se os nobres eram favorecidos, também estiveram interessados na “febre dos descobrimentos”, que absorveu também os homens mais vigorosos. D. João II fez medidas que constituíram as riquezas das possessões ultramarinas a suprema aspiração de todas as classes, compelindo ao abandono das atividades industriais, permanecendo Portugal na sua fase agrícola e deixando muitos operários sem ocupações. Esse aspecto da colonização denota a atualidade do “intérprete do Brasil”, Manoel Bomfim, quando ele diagnosticou: “Sempre que há uma classe ou uma agremiação parasitando sobre o trabalho de outra o parasita se enfraquece, decai, degenera, extingue-se” (BOMFIM, 1905, p. 28). Para o médico sergipano, criador de uma teoria biológica de nossa mais valia, esse passado de parasitismo colonialista trouxe a Portugal disfunções terríveis.
Música infantil abordando a chegada dos portugueses na Pindorama
Enquanto a Península Ibérica foi deixando de ser um “lago árabe” (expressão do historiador Boris Fausto) e era retomada dos mouros, aconteciam rebeliões de camponeses em diversos lugares da Europa, diversos conflitos internos nas nobrezas, declínio da população, escassez de alimentos, epidemias como a Peste Negra (1347- 1351). Em meio a uma crise, um pequeno país do sudoeste da Europa fez uma grande aventura marítima: Portugal foi pioneiro na expansão atravessando os mares, começando um século antes de Colombo chegar na América. Com papel destacado do Infante Dom Henrique (1394- 1460) e a sua lendária Escola de Sagres. A independência de Portugal foi sucedida de experiências acumuladas no comércio de longa distância, até assumir o controle do comércio internacional. Mas era durante uma crise geral do Ocidente da Europa. Portugal, em meio a essa fase de incertezas de toda ordem, era o estado mais centralizado da Europa e o menos sujeito as disputas e convulsões. A unificação do Estado aconteceu também graças a “revolta do povo miúdio” (o povo era chamado de “arraia miúda”) ou revolução de Avis, quando ascendeu ao trono o filho bastardo do rei Pedro I, Dom João ou Mestre de Avis.
Uma filha do rei anterior, chamado Dom Fernando, casou-se com o rei de Castela, iniciando em Portugal debates sobre a união dos dois reinos, aumentando a influência dos castelhanos em Portugal. Durante uma tensão social e política espanhola, sistêmica, pois fazia parte de um declínio geral do feudalismo, grande parte dos nobres portugueses foram a favor da união das duas coroas existentes na Penísula Ibérica. Os trabalhadores, os burgueses, e uma outra parte da nobreza, foram os principais defensores da independência perante a Espanha.
Em meio à decadência do feudalismo, grande parte dos nobres portugueses era favorável a uma união com Castela, pois um rei estrangeiro tenderia a permitir um aumento do poder particularista desses grandes senhores. Além disso, esses nobres portugueses desejavam participar das guerras das cruzadas dos castelhanos para conquistar novas terras e realizar saques contra os mouros no sul da Espanha e no norte africano. Em 1383, Dom Fernando faleceu e sua filha subiu ao trono. Uma parcela dos nobres tentava consumar a união das coroas, mas a “arraia miúda”, o grupo mercantil e uns poucos da nobreza lusa resistiram. Aconteceu uma revolta popular liderada pelo burguês Álvaro Pais e pelo nobre Nuno Álvares Pereira. Os partidários do expansionismo castelhano foram expulsos, e Dom João, chamado Mestre de Avis, irmão ilegítimo e desconhecido de Dom Fernando, foi aclamado rei.
Em dezembro de 1383, com a morte do rei de Portugal, D. Fernando, sua filha assumiu o trono e os nobres palacianos tentaram consumar a união com Castela. A reação da "arraia miúda", do grupo mercantil e de elementos da nobreza lusa foi imediata. Uma revolta liderada pelo burguês Álvaro Pais e por Nuno Álvares Pereira, um nobre comandante do exército, expulsou do país os partidários de Castela e, logo depois, o povo aclamou rei a D. João, chamado Mestre de Avis, irmão bastardo e obscuro de D. Fernando.
A Revolução de Avis foi uma segunda independência de Portugal, antes da Galícia, e depois de Castela. Uma parte da nobreza portuguesa aliou-se com a nobreza de Castela. O patriotismo precoce dos portugueses não valia para todas as classes sociais. A Revolução de 1383 foi, portanto, burguesa e reforçou a centralização do poder monárquico. No início do século XV a expansão correspondia aos interesses de todas as classes, posto que a aristocracia desinteressada na soberania nacional portuguesa foi expulsa do país. As novas técnicas de navegações (e outras “técnicas de marear”), uma nova mentalidade, produzida pelos humanistas portugueses, somado ao imaginário fantástico referente ao Novo Mundo, a procura por ouro e especiarias, foram determinações concretas para a chegada dos salteadores e parasitas portugueses na Pindorama.
REFERÊNCIAS:
BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Garnier, 1905.
FILHO, Aluizio Alves. Manoel Bomfim. Combate ao racismo, educação popular e democracia radical. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
SODRÉ, Nelson Werneck. Evolução social e econômica do Brasil. 2 ° ed. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1996.
Sobre o Autor:
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio A Voz do Morro. Colunista no Jornal de Viamão.
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