Embora o movimento por libertação animal tenha sido cooptado pelo capitalismo e esta seja na atualidade sua forma hegemônica, esse desenvolvimento histórico não é uma exclusividade deste movimento e se deu da mesma forma com que as outras lutas anti opressão foram assimiladas pela ideologia liberal, incluindo a própria luta operária, que em parte foi cooptada pelas promessas e imposições da democracia burguesa.
A preocupação em relação à ética reservada aos animais não humanos e às consequências da sua exploração não é recente, sendo normalmente remontada, além das tradições religiosas, desde os filósofos da antiguidade. Entretanto, foi quando o movimento operário ganhou força na Europa, no século XIX, que o movimento animalista também surgiu. Ao mesmo tempo que os trabalhadores e trabalhadoras eram precarizados pelas práticas de uma nova burguesia, esta também sistematizou e intensificou a exploração animal e ambos fenômenos se entrelaçaram nos desenhos da nova divisão social do trabalho.
Os defensores dos animais eram normalmente motivados pelas descobertas de Darwin com a teoria da evolução, que contrapunha o materialismo mecanicista de Descartes. Um dos mais notáveis foi o geógrafo anarquista Élisée Reclus, militante da Primeira Internacional dos Trabalhadores e membro da Comuna de Paris. Reclus pontuava já naquela época as contradições da produção animal capitalista, que desfigura e diminui os animais, bem como criticava a seleção artificial.
Da mesma forma, Engels, também defensor e entusiasta das ideias processualistas darwinianas e estudioso das ciências da natureza, dedicou diversas páginas do Anti-Duhring, da Dialética da Natureza e de cartas e textos para tratar das consequências desastrosas da influência humana sobre os animais motivadas pelo capital e de como a ciência nos proporciona sentir “desprezo pelo enaltecimento idealista do humano em relação às demais bestas”.
Já no Brasil, além dos imigrantes asiáticos que tradicionalmente eram próximos ao vegetarianismo apenas como estilo de vida, alguns anarquistas também se posicionaram contra a exploração dos animais desde o início do século XX. José Oiticica, que participou da Insurreição Anarquista do Rio de Janeiro, em 1918, e da União Geral dos Trabalhadores pontuava que o consumo extremo de carne e de outros produtos animais fazia parte de um vício social que seria um empecilho para a revolução, pois influenciaria no entendimento da relação entre os humanos, a terra, os alimentos e os animais.
Mais tarde, na década de 80, foram as feministas, ecofeministas e o movimento punk que estruturaram o veganismo político, tecendo críticas às políticas ambientais soviéticas e reformulando a crítica ao imperialismo e à sociedade do consumo. Hoje, com o acirramento da luta de classes, vemos o crescimento das organizações comunistas e, devido ao caráter colonialista das nossas relações sociais, as contradições em relação à indústria animal se mostram também gritantes, fazendo com que o movimento comunista se depare com novas questões, que antes não tinham impacto crescente nos debates e disputas políticas, como agora: a degradação ambiental, o sofrimento animal e a irracionalidade extrema da produção e reprodução artificial de animais.
O Brasil é o maior exportador de carne do mundo, possuindo o segundo maior rebanho bovino, com 214,7 milhões de animais, número maior que o de pessoas no país. Em 2019, foram abatidos aqui 5,81 bilhões de frangos. Esses números retratam como a questão animal é um grande desafio no contexto brasileiro. Embora grande parte dessa produção seja voltada à exportação, ela também reflete nos hábitos e costumes da classe trabalhadora, já que nossa relação com esse número estrondoso de animais se dá completamente através da forma mercadoria, configurando umas das maiores amputações da percepção da realidade na nossa história.
A aparência de naturalidade esconde a essência de um dos eixos da economia local e mundial, responsável pelo enriquecimento de setores inteiros da burguesia e dos latifundiários, bem como pela concentração de terras, genocídio indígena, desmatamentos, queimadas, poluição de rios e solo, emissão de gases, mau uso de recursos, acidentes e síndromes decorrentes do trabalho e sofrimento animal.
Além disso, a indústria animal, juntamente com a política agrícola de exportações, é responsável pelo preterimento da produção de produtos ecologicamente sustentáveis, nutritivos, saudáveis e acessíveis. Nesse sentido, os comunistas, historicamente, se comprometem com a reforma agrária e o enfrentamento ao latifúndio, buscando sua substituição ideal pelo modelo mais moderno e ecologicamente sustentável possível, que hoje seria a agroecologia, técnica que reduz ao extremo ou até mesmo abole a produção animal.
Esse cenário revela que, por um lado, a profunda transformação necessária para a racionalização da produção, num contexto revolucionário onde a continuidade da vida humana da Terra esteja em jogo, como é o caso na atualidade, passaria obrigatoriamente pela questão animal. E, por outro lado, que somente o socialismo é realmente capaz de resolver a questão da exploração animal num país continental que tem sua economia baseada no agronegócio e que alimenta – com vegetais – mais gado do que gente e, portanto, possui suas forças produtivas desenvolvidas suficientemente para tornar essa indústria obsoleta e se voltar a uma produção racional, que reduza os riscos ambientais, à saúde humana e o sofrimento animal socialmente produzido. Nessa síntese repousa a importância em tratar essa pauta com a seriedade e a urgência necessárias.
Não é dever dos comunistas venerar o passado menos evoluído nem se colocar contra desenvolvimentos objetivamente superiores. Nossa atuação se baseia na análise científica concreta da situação concreta, por isso cada vez mais os comunistas vêm incorporando a luta por libertação animal às suas pautas políticas e práticas diárias e disputando a hegemonia do movimento, bem como construindo sínteses teóricas que buscam entender e explicar este novo momento histórico. A disputa pela hegemonia de movimentos políticos que refletem demandas reais e legítimas faz parte do movimento comunista.
Como opressão que se originou com a propriedade privada e foi sistematizada em larga escala com o capitalismo, a exploração animal só pode ser resolvida com a socialização dos meios de produção e sua reorganização. O fato de a produção animal estar profundamente assimilada e naturalizada na nossa sociedade, mesmo com suas gigantescas contradições, revela o caráter extremamente revolucionário necessário para a real libertação animal e, por isso, o movimento comunista é o único instrumento da classe trabalhadora realmente capaz de realizar as transformações necessárias para a retirada dos animais das relações de produção.
À medida que, em última instância, extraímos nossas noções morais das relações práticas que são a base de nossa condição de classe, a moral burguesa historicamente justificou a dominação e os interesses da classe dominante, o que inclui todos os tipos de exploração – em relação aos humanos, aos outros animais e à natureza. Portanto, a defesa de Engels da moral proletária como aquela que representa os interesses dos oprimidos, da revolução do presente e, sendo assim, do próprio futuro pode ser a chave para enriquecer e fortalecer nossa compreensão do potencial que a emancipação humana e a moral comunista carregam.
Ele afirma que uma verdadeira moralidade humana só pode existir quando superarmos e esquecermos como o antagonismo de classes era na prática diária. Nesse sentido, os horrores cometidos contra os animais humanos e não humanos e naturalizados na interação com a realidade superficial devido à lógica da mercadoria certamente devem ser esquecidos para dar lugar a um novo mundo onde o valor e o direito à dignidade de cada ser não sejam medidos pela sua posição nas relações de produção.
Texto originalmente publicado no blog do PCB: https://pcb.org.br/portal2/26364/os-comunistas-e-os-animais/
Referências:
AGÊNCIA IBGE. Em 2019, cresce o abate de bovinos, suínos e frangos. 19/03/2020. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27167-em-2019-cresce-o-abate-de-bovinos-suinos-e-frango.
AGÊNCIA IBGE. Rebanho bovino tem leve alta em 2019, após dois anos seguidos de quedas. 15/10/2020. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/29164-rebanho-bovino-tem-leve-alta-em-2019-apos-dois-anos-seguidos-de-quedas
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring: A revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring. São Paulo: Boitempo, 2015.
ENGELS, Friedrich. Carta a Marx de 14 de julho de 1858. Vol 29. Berlin: Editora Dietz, 1978.
ENGELS, Friedrich. Dialética da Natureza. Editora Leitura, 1968. (marxists.org)
LUKACS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
MOTA, Ana Gabriela; SANTOS, Kauan Willian dos. Libertação animal, libertação humana: veganismo, política e conexões no Brasil. Juiz de Fora: Editora Garcia, 2020.
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