A pirataria é um fenômeno que sempre acompanhou a história humana. Desde que começou o comércio de longas distâncias por via marítima, há pirataria. Durante o processo de colonização da América, as grandes rotas comerciais europeias se deslocaram do Mar Mediterrâneo para o oceano Atlântico. Nas rotas atlânticas passavam todo tipo de mercadoria: especiarias, metais preciosos e trabalhadores escravizados. Sendo assim, a imensa região oceânica se tornou, também, o foco de muitos piratas; isso principalmente nos séculos XVII e XVIII – a chamada “Era de Ouro da Pirataria”.
Por que esse período é conhecido como “Era de Ouro da Pirataria”?
Porque foi justamente neste período que muitos Estados Nacionais se consolidaram na Europa e estabeleceram suas bases econômicas a partir do comércio – principalmente Inglaterra e Holanda (Países Baixos). Porém, nessa mesma época o continente americano já estava praticamente dividido entre Espanha e Portugal, não restando muito “espaço” para os demais.
Por muito tempo, Holanda e Inglaterra até prestaram seus serviços para realizar o comércio monopolista entre Espanha e Portugal e suas colônias. Mas as coisas mudaram, principalmente por causa dos movimentos de independência da Holanda (que era governada pela Espanha) e devido a Revolução Inglesa de 1642 a 1648. Com esse novo cenário político, ingleses e holandeses fortaleceram seu poder naval e militar, e era muito comum os governantes desses países concederem “cartas de corso” - documentos que autorizavam seu portador a realizar ataques a navios de nações inimigas, bem como em bases em terra firme. O almirante holandês Pieter Heyn (1577-1629) é um famoso exemplo desse tipo de “pirataria oficial” que era o corso. Em 1628, Heyn capturou toda uma frota espanhola, que carregava de prata do México para a Espanha. A prata mexicana ajudou a financiar o exército holandês contra os espanhóis na Europa – na chamada Guerra dos Oitenta Anos.
Ao mesmo tempo, havia um outro tipo de pirataria: aquela praticada contra qualquer embarcação (independente de qual país era) única e exclusivamente com o objetivo de saquear para a sobreviver. Era uma pirataria que não estava a serviço das nações imperialistas. Esse tipo de pirataria era praticada por uma categoria muito ampla de indivíduos, que eram os marginalizados dentro dos sistemas econômicos vigentes na Europa ou na América colonial.
Quem eram essas pessoas?
Primeiramente, haviam aqueles piratas oriundos das Marinhas Reais, ou “Nacionais”. Como dito anteriormente, ao longo dos séculos XVI e XVII países como Holanda e Inglaterra estavam investindo no fortalecimento de uma marinha mercante e de guerra. Além de navios bem equipados, essa marinha necessitava de homens para trabalhar nas embarcações. Muitos deles eram recrutados a força; nas prisões, nas cidades ou nas próprias colônias – a Irlanda em especial, que fora colonizada pelos ingleses durante e após sua revolução de 1642, era uma “grande fornecedora” dessa mão de obra marítima. Porém, o trabalho nesses navios era horrível. A hierarquia era rígida, os pagamentos eram ruins e atrasavam, a comida era péssima. Os que melhor viviam nas embarcações eram os oficiais, o resto era mal tratado, sendo comum o uso de castigos físicos para “disciplinar” a tripulação.
Diante desse cenário os motins eram comuns. E tão logo os amotinados tomavam o controle do navio, eles tratavam de subverter as hierarquias. Os castigos eram abolidos, a ração era repartida igualmente, as decisões tomadas em conjunto. Como não podiam voltar para seus portos de origem, e correrem o risco de voltarem a suas condições de prisioneiros, despossuídos ou colonizados, essa tripulação sobrevivia através do saque e do butim; ou seja, levavam a vida de piratas.
Com o aumento do tráfico escravista no Atlântico era comum navios escravistas atacados por esse tipo de pirata. Nesses casos, os piratas libertavam os escravizados e, não raro, os incorporavam a sua tripulação, mantendo a liberdade, participando de decisões e repartindo o saque.
“‘Negros e Mulatos’ estavam presentes em quase todo navio pirata, e só raramente os comerciantes e capitães que conversavam em sua presença os chamavam de escravos. […]. Em 1718, sessenta dos cem tripulantes de Barba Negra eram negros, enquanto o capitão Wlliam Lewis se gabava de ter ‘quarenta Marinheiros Negros aptos’ em sua tripulação de oitenta. Em 1719, o navio de Oliver La Bouche era ‘metade francês, metade negro’ piratas negros eram tão comuns a ponto de levar um jornal a informar que um bando mulato de ladrões do mar saqueava o Caribe, comendo o coração dos homens brancos capturados” (LINEBAUGH; REDIKER, 2008, p. 178).
Surgiu, desta forma, um sentimento de camaradagem entre essa gente que vivia no mar e praticava a pirataria, que lembra muito os quilombos em terra firme. Muitos navios piratas não tinham a rígida hierarquia social das colônias. Ou seja, muitos navios piratas praticavam a antítese da sociedade na qual estavam inseridos: os piratas se orgulhavam de não ter pátria, numa época em que os Estados Nacionais surgiam; não tinham patrões, numa época em que o autoritarismo era comum; não tinham raça, em uma época em que o racismo se tornou a ideologia para manter a base econômica escravista. E tinham poder de decisão, numa época em que a participação popular era inimaginável!
“A pirataria, claramente, não funcionava em conformidade com os códigos negros decretados e impostos às sociedades escravas atlânticas. Alguns escravos e negros livres encontravam a bordo do navio pirata a liberdade, algo que, fora das comunidades quilombolas, estava em falta nos principais teatros de operação dos piratas, o Caribe e a América do Sul. De fato, os navios piratas podem ser até mesmo considerados comunidades quilombolas multirraciais, nas quais os rebeldes usavam o alto-mar como outros usavam a montanha e a mata” (LINEBAUGH; REDIKER, 2008, p. 179).
Além deste papel de “quilombo marítimo”, a pirataria também trouxe um protagonismo feminino que não encontrava paralelo nas rígidas e hierarquizadas sociedades coloniais americanas. As piratas Anne Bonny e Mary Read se tornaram famosas e temidas no Caribe, durante o século XVIII.
REFERÊNCIAS
ABBOTT, Karen. If There’s a Man Among Ye: The Tale of Pirate Queens Anne Bonny and Mary Read. Smithsonian Magazine, 2011. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/history/if-theres-a-man-among-ye-the-tale-of-pirate-queens-anne-bonny-and-mary-read-45576461/. Acesso em: 28/02/2021.
CARREIRA, Felipe. Biografia de John Rackham “Calico Jack”. Grupo de Estados Americanista Cipriano Barata (GEACB). Disponível em: http://geaciprianobarata.blogspot.com/2016/04/john-rackham-calico-jack-biografia.html. Acesso em: 28/02/2021.
LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SCHWARTZ, Stuart; LOCKHART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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