A AUSÊNCIA DE REFORMA URBANA ALIMENTA O CRIME E CAUSA MORTES

Na madrugada do dia 03 de junho, quinta-feira, um desabamento acordou a comunidade de Rio das Pedras, cidade do Rio de Janeiro1. Por volta das 3 horas da madrugada, um edifício veio abaixo. Um estrondo em meio a escuridão. O desabamento matou pai e filha e deixou outras quatro pessoas que moravam no prédio feridas. O prédio que tinha quatro andares foi construído de forma irregular. Esta tragédia não é um fato isolado, em 2019 outro desabamento deixou 24 mortos, em Muzema também na Zona Oeste do Rio de Janeiro2.




Os desabamentos revelam uma complexa teia de relações de poder que envolvem os grupos criminosos milicianos, o poder público e a população marginalizada.

Tudo começa com o poder público que cada vez mais se afasta de cumprir seu dever – ainda mais numa ordem neoliberal onde o poder público é apenas um apêndice para o bom funcionamento do capitalismo financeiro nas mãos de poucos grandes capitalistas.

Ao longo de décadas, não só no Rio de Janeiro, mas em todo Brasil, milhões de famílias não tem nenhum acesso à moradia. Segundo dados do próprio governo federal, o déficit habitacional no Brasil está casa dos 5,8 milhões3 - sendo que o governo Jair Bolsonaro se esforça para manipular dados e estatísticas esse número pode variar entre 8 a 10 milhões. Programas habitacionais, como o antigo “Minha Casa, Minha Vida” e o recente “Casa Verde e Amarela” são insuficientes, pois na prática o governo não está dando moradias, está dando dinheiro para grandes empreiteiras (como a MRV) para que elas construam residências, geralmente em áreas longe de serviços públicos e sob as regras da especulação imobiliária. Ou seja, os programas habitacionais do Brasil não passam de benefícios a empresas privadas da construção civil e corretoras imobiliárias!

O que falta é uma reforma urbana. Se o poder público realmente quisesse fazer a reforma urbana adequada, deveria fazer, em primeiro lugar, um grande levantamento de imóveis ociosos nas cidades. Dependendo da situação do imóvel desapropriá-lo, independente da região da cidade onde se localiza, e dar a posse do imóvel para famílias que realmente precisam de moradia. Simples assim, basta vontade política! Uma caminhada pelo centro de Porto Alegre, por exemplo, é suficiente para ter noção da quantidade de prédios abandonados. Mas o poder público faz o que? Deixa os imóveis abandonados à sorte da especulação. Sem falar no preço dos aluguéis, reajustado conforme os caprichos do mercado de imóveis (especulação imobiliária): num Brasil onde poucos ganham mais de 5 mil reais por mês, quem pode pagar 1 mil reais de aluguel?

Nessa realidade social precária, com um dificílimo acesso às moradias de qualidade e com preços baixos, muitas vezes o que resta para a população desassistida é a ocupação de prédios e terrenos urbanos – muitos movimentos sociais e coletivos independentes organizam a população sem teto na luta pela moradia. Ou então construir seus imóveis em áreas irregulares, de acordo com os poucos ou escassos recursos que dispõe e materiais de origem duvidosa. No caso do desabamento do Rio das Pedras, por exemplo, o dono do imóvel havia gasto mais de 25 anos para a construção do prédio; sem qualquer apoio técnico, apenas com os recursos que dispunha ao longo deste tempo4.




É neste vazio do poder público que o crime se fortalece. O controle das milícias em partes do território da cidade do Rio de Janeiro é o caso mais extremo, mas não é o único. A prática acontece em outras cidades do país. Se aproveitando de famílias marginalizadas, muitas vezes com seus componentes trabalhando na informalidade, esses criminosos constroem prédios em regiões sem nenhum tipo de estrutura, muitas vezes perto de encostas ou em terrenos muito irregulares. As construções, como provam os constantes desabamentos que matam, são feitas com materiais de procedência duvidosa. Os milicianos e criminosos também cobram “aluguéis”, “taxas de proteção” e “serviços” de moradores. Toda a grana deste “mercado imobiliário” ilegal ajuda manter uma rede de corrupção, na qual, além dos milicianos, estão envolvidos advogados e funcionários públicos. As milícias utilizam táticas capitalistas de apropriação de um terreno e o transformam em capital, reproduzindo o sistema imobiliário, só que sem a contrapartida de ser respaldado pela lei ou por investimentos dos governos (como no caso das grandes incorporadoras). Como diz o sociólogo suíço Jean Ziegler: “O capitalismo encontra sua essência no crime organizado.”5

Logo após o desabamento do dia 03, em Rio das Pedras, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), declarou sobre as construções em áreas irregulares “Se construir, nós vamos derrubar”6. Não sabemos se ao dizer isso ele é ingênuo, ignorante ou simplesmente um tolo, mas a política do “bota abaixo” não resolve o problema. O que resolve é reforma urbana. Como dito antes, não basta promover políticas habitacionais de acordo com as regras de empreiteiras. É preciso que o poder público deixe de ser incompetente e realize uma reforma urbana com justiça social.

Diante deste cenário trágico é possível dizer que a ausência de uma verdadeira reforma urbana alimenta o crime organizado e ainda mata pessoas com os desabamentos ocorridos em construções ilegais.


5ZIEGLER, Jean. Os senhores do crime. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 51.


Sobre o Autor: 

 Fábio Melo: Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata (GEACB). Pesquisa sobre História Social da América e Educação. Produtor e radialista do programa "História em Pauta", que já passou por rádios comunitárias de Porto Alegre e Alvorada. Professor de História e Geografia. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.





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