O Supremo Tribunal Federal marcou o julgamento do Recurso Extraordinário
(RE) 1.017.365, que trata das demarcações de terras indígenas e com
repercussão geral, para o dia 30 de junho de 2021. Esta carta tem por
objetivo somar-se na sensibilização dos Ministros da Suprema Corte em
defesa dos direitos originários dos Povos Indígenas sobre suas terras
tradicionais.
Obs.: a assinatura pode ser individual ou institucional.
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- PRAZOS:
*Assinaturas até o dia: 29/06/2021.
*Protocolo Final no STF - 30/06/2021.
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CARTA ABERTA AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal
Dirigimo-nos
respeitosamente a Vossas Excelências na condição de cidadãs e cidadãos
não-indígenas deste território em que se constituiu o Estado Brasileiro e
envergonhados com a forma com que, há séculos, tratamos os povos
originários e os assuntos que são de seu interesse e direito.
Os
indígenas foram tratados pela lei brasileira como indivíduos
relativamente incapazes até a Constituição de 1988. É verdade que esse
tratamento poderia se justificar como uma proteção do Estado-guardião
contra práticas enganosas e fraudulentas a sujeitos sem a plena
compreensão dos parâmetros sociais da sociedade dominante. Entretanto, a
história de expulsão, transferência forçada e tomada de suas terras
pelo Estado ou por particulares sob aquiescência ou conivência do Estado
evidenciam os efeitos deletérios de uma tutela estatal desviada de sua
finalidade protetiva.
Segundo o último Censo do IBGE (2010),
42,3% dos indígenas brasileiros vivem fora de terras indígenas e quase
metade deles vive nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país. Essas
regiões foram as primeiras e as mais afetadas pelas práticas de expulsão
e ocupação não-indígena das terras dos povos originários. Embora boa
parte da sociedade brasileira, por simples desinformação, pense que a
tomada e a ocupação das terras dos indígenas tenha ocorrido nos
primeiros anos da chegada dos europeus a este território, isso não é
verdade.
Foi sobretudo com as políticas de expansão para o Oeste
iniciadas sob Getúlio Vargas e aprofundadas na Ditadura Militar, com
grandes obras de infraestrutura e abertura de frentes agropecuárias, que
os indígenas sentiram com mais vigor e violência o significado do
avanço da “civilização” sobre suas terras e seus recursos. São deste
período, os massacres dos índios Panará, dos Waimiri-Atroari e dos
Krenak, para mencionar apenas alguns. É também deste período, a formação
das reservas do SPI, hoje superlotadas e caóticas, para onde foram
removidos, sem esclarecimento ou prévio consentimento, os Terena e os
Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Da mesma forma, os Guarani Mbyá
foram expulsos de suas terras com a ocupação recente do oeste do Paraná
e a construção da usina hidrelétrica de Itaipu.
Para boa parte
dos povos indígenas brasileiros, a perda dos territórios tradicionais
consolidou-se na metade do século XX. Considerados incapazes e
tutelados, o Estado Brasileiro jamais negociou ou lhes deu possibilidade
concreta de se opor às remoções. Ao contrário dos povos nativos
norte-americanos com quem a Coroa Britânica e depois o governo dos EUA
firmavam tratados e contra quem, desde os primórdios da Suprema Corte
dos EUA, os nativos litigavam, no Brasil só muito recentemente os
tribunais concederam aos povos indígenas o direito de serem ouvidos
quando o assunto é direito à terra.
E nisto este Supremo
Tribunal tem desempenhado papel histórico. A decisão de 2020 tomada na
ADPF no. 709 no sentido de que a “Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil – APIB possui legitimidade ativa para propor ação direta
perante o Supremo Tribunal Federal” é um marco para o reconhecimento da
capacidade processual dos indígenas, nos termos do art. 232, da
Constituição de 1988. A decisão pioneira de 2016, de lavra do Eminente
Ministro Fachin, na ACO 1100, que admitiu a participação, como
litisconsorte passivo necessário da comunidade indígena dos povos
Xokleng e Guarani em processo que discute anulação de ato demarcatório
da Terra Indígena Ibirama Lãklãno, é outra medida que corrige o erro
histórico da ausência de participação dos maiores interessados no
desfecho do caso. Trata-se de uma mudança de entendimento importante,
mas muitíssimo recente na jurisprudência brasileira.
No entanto, a
perda dos territórios jamais foi esquecida ou aceita pelos indígenas. A
conquista a duras penas dos direitos elencados nos artigos 231 e 232 da
Constituição foi a oportunidade para as comunidades indígenas
finalmente reivindicarem junto ao Estado o reconhecimento e a demarcação
das terras de onde haviam sido, há não muito tempo, expulsos e
desapropriados. Como consequência, a partir dos anos 90 do século XX,
inicia-se no Brasil um amplo processo de demarcação de terras. Conforme a
FUNAI, há 435 terras indígenas definitivamente regularizadas no país,
sendo que mais de 98% da área demarcada está na Amazônia.
A
realidade é muito diversa no resto do país. Embora muitos processos de
demarcação tenham sido iniciados, há em torno de 231 processos
demarcatórios paralisados e 536 pedidos indígenas de constituição de
grupos de trabalho para identificação de outras terras tradicionais. A
paralisação de grande parte dos processos de demarcação na FUNAI decorre
de ações judiciais propostas por ocupantes não-indígenas (fazendeiros
ou poder público estadual), visando à anulação dos atos administrativos
que declaravam a tradicionalidade da terra indígena por eles atualmente
ocupadas para fins comerciais ou não.
Tomando como base o
argumento do “marco temporal da ocupação” inovocado por este Tribunal,
no julgamento da Petição 3.388, para reforçar a legitimidade da
demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, Juízes Federais e
Tribunais Regionais Federais têm, a contrario sensu e
indiscriminadamente, anulado os atos de demarcação de terras indígenas.
Fundamentam suas decisões na ausência de direito à demarcação no caso de
os índios não estarem na posse da terra na data da promulgação da
Constituição de 1988. Esta Suprema Corte criou uma exceção à regra: “a
reocupação não ter ocorrido por efeito de renitente esbulho por parte
de não-índios”. Porém, em dois processos em que anulou demarcações de
terras no Estado do Mato Grosso do Sul, a Segunda Turma desta Corte
exigiu prova de que o “conflito possessório iniciado no passado tenha
persistido até o marco temporal de 05 de outubro de 1988, materializado
por circunstâncias de fato e controvérsia possessória
judicializada”.
Excelências, como exigir prova de resistência
ao esbulho renitente a pessoas e comunidades vulneráveis, muitas vezes
transferidas à revelia para outros espaços, a quem o Estado tutelava e
não reconhecia capacidade civil? Exigir provas de sujeitos que sequer
foram citados ou admitidos no respectivo processo judicial? Que sequer,
na maioria das vezes, sabia da existência do trâmite de um processo
dessa natureza?
Enquanto esses processos se desenrolam
lentamente na justiça brasileira, conflitos e violências contra
comunidades indígenas se multiplicam país afora. Cansados da
indisposição do Estado em garantir-lhes o retorno às suas terras,
comunidades indígenas têm ocupado as terras identificadas ou
reivindicadas à FUNAI e sofrido intensos ataques armados de milícias
rurais, que resultam em mortes, espancamentos, tortura e toda sorte de
atos desumanos e humilhantes caracterizados como verdadeiros crimes
contra humanidade. Decisões judiciais anulatórias não farão cessar os
conflitos, ao contrário os acirrarão. Vulneráveis e sem acesso à terra,
essas comunidades serão simplesmente exterminadas, se não pelas armas,
pela absoluta ausência de base territorial para que as próximas gerações
desfrutem de um espaço para manter sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições.
Por conta desses fatos, é que esta
Corte encontra-se nestes dias diante do principal caso indígena de sua
história: o RE No 1.017.365/SC, ao qual, acertadamente, reconheceu
repercussão geral. Este processo trata justamente da espoliação de
terras de comunidades indígenas que, em 1988, não estavam na posse
diante do esbulho de não-índios e da impossibilidade de resistir.
O
tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades
indígenas, aplicando a chamada “tese do marco temporal” para anular
demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de
injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da
justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de
justiça e legalidade.
Este Supremo Tribunal tem em suas mãos a
oportunidade de corrigir esse erro histórico e, finalmente, garantir a
justiça que a Constituição determinou que se fizesse aos povos
originários.
Em decisão de 2020, no caso McGirt v. Oklahoma, a
Suprema Corte dos EUA entendeu que a terra reservada aos indígenas
Muscogee Creek, no que hoje é o Estado de Oklahoma, por meio dos
Tratados de 1832 e 1866, não foi desconstituída pelo posterior
loteamento e transferência de partes da terra para não-índios em 1901,
porque o Congresso não emitiu nenhuma lei determinando a extinção da
reserva. Com isso, considerável parte leste do Estado de Oklahoma,
incluindo a cidade de Tulsa, foi reconhecida pela Suprema Corte como
terra indígena. Juiz Gorsuch, nomeado pelo então Presidente Donald Trump
e redator do voto condutor, destacou que nenhuma interpretação
diferente desta poderia ser admitida e, caso fosse, a Suprema Corte
estaria diante da lei dos fortes, não da lei do Estado de Direito:
“[T]hat would be the rule of the strong, not the rule of law”.
Esperamos
que esta Corte faça prevalecer o Estado de Direito. Como brasileiros
não-indígenas e constrangidos com a indignidade do tratamento dispensado
aos povos nativos, pugnamos a este Tribunal que não faça triunfar a
concepção de justiça de Trasímaco refutada por Sócrates: “a justiça
serve ao interesse do mais forte e o que é injusto é útil e vantajoso
para ele.” (PLATÃO, A República, 334c).
23 de Junho de 2021.
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