MANOEL BOMFIM: INSTRUÇÃO POPULAR

 


Extraído de Bomfim, Manoel. Cultura e educação do povo brasileiro: pela difusão da instrução primária. Rio de Janeiro: [Pongetti], 1932, pp. 55-62. Originalmente publicado no periódico República, n. 291, 2/9/1897. O artigo está assinado por “M. Bomfim (da Revista Pedagógica)”.


Foi nas páginas de um trabalho estrangeiro (Report of the Comissioner of Education –  Washington 1889) que eu pude apreciar, pela primeira vez, num quadro geral, a instrução pública no Brasil. Foi tão profunda a impressão que me causou essa leitura, pela insignificância e pobreza patentes dos nossos recursos escolares, que nunca mais me pude furtar ao desejo de observar e estudar o problema da instrução popular entre nós. De então pra cá só tenho encontrado motivos para maior desconsolo.

O que naquelas páginas se lia, aquele quadro, era o legado da instrução pública imperial.

E, quando se considera que, na instrução pública, o que mais interessa o país é a instrução primária, por ser a que mais refere a grande maioria da nação, dotando-a com as ideias originais de toda a educação intelectual, por ser a que mais concorre para a formação do caráter nacional, e do espírito público e a única que prepara os povos para ao regime democrático, levando à massa popular a soma de conhecimentos, capaz de dar a cada um a independência então indispensável nos regimes livres – é profundamente triste verificar que essa instrução quase não existia no Brasil.

Depois de setenta anos de vida nacional autônoma e de mais de quarenta de plena paz, as camadas inferiores da população brasileira não estavam mais cultas, nem mais elevadas intelectualmente, que nos tempos coloniais; que o diga a queixa unânime de todos quantos, no Brasil, tentaram a profissão das letras e dela têm desistido em face da antipatia, da indiferença e da hostilidade, mesmo, do nosso público, da falta de leitores... que o diga o grau de fanatismo, de profunda ignorância, de absoluto analfabetismo em que jazem as populações dos sertões do Norte, tão genuinamente nacionais..., que o digam a indiferença do público em face dos acontecimentos políticos e das dificuldades que tem encontrado em assentar-se o novo regime, o qual supõe, antes de tudo, a existência de povo, isto é, de um quociente social, cujas unidades tenham consciência do seu papel... Recebendo este legado – uma massa popular inculta e incaracterizada – cumpria e cumpre, à República, educá-la, para continuar definitivamente a alma brasileira, dando-lhe a feição republicana, criando a homogeneidade dos interesses nacionais, unificando, desenvolvendo e caracterizando os sentimentos de patriotismo e os altos motivos políticos, elementos indispensáveis à integridade e ao progresso do país, principalmente quando a descentralização veio quebrar os únicos laços que, na ausência desses de ordem moral e intelectual, podiam conservar unida esta grande nação.

A natural reação contra a centralização imperial levou os constituintes da República a retirar à União toda e qualquer ingerência na organização da instrução popular do país. É verdade que nisso eles apenas conservaram uma disposição do regime imperial – desse abstruso regime centralizador que, entretanto, alienava de si a organização da escola primária. Uma vez que essa foi considerada a melhor organização republicana e a mais apropriada às nossas condições, é mister preparar o país para que ela possa funcionar livremente, sem os riscos de um desmembramento.

Livres, autônomos os estados, cumpre uniformizar uns tantos serviços de ordem moral e política. É a única maneira de conservar íntegro, para o futuro, este grande país, onde os interesses materiais variam tanto de zona para zona.

É forçoso criar fortes correntes internas de sentimentos e de ideias que liguem nossos destinos; e a base de tudo isso é escola primária.

O Império não o fez e por isso nos legou o Brasil que hoje temos, atrasado, sem compreensão dos seus destinos, sem vontades e sem entusiasmos. Se não sentimos mais forte a necessidade de remediar tamanho mal é porque a tudo nos habituamos. Somos um povo sem tradições, sem correntes de opiniões, sem correntes sociais fortemente constituídas. A par disso estamos organizados em República federativa, sob a forma a mais lata possível. Que nos resta fazer, se nos queremos conservar como uma nacionalidade única? Criar, o mais cedo possível, um espírito público, levar a todos os ânimos o sentimento de uma pátria única; afinar, de um extremo ao outro do país, o amor do Brasil comum. E o que está naturalmente indicado para isso como o mais conforme nossa situação especial, à nossa crise social é desenvolver unificando e nacionalizando a escola primária – que são urgentíssimas para a República e para a pátria.

De que nos serve decretar o regime das liberdades se não sabemos compreendê-lo?... A liberdade não se cria pela virtude mirífica das leis: enquanto a maioria dos brasileiros não estiver no caso de compreender seus direitos e deveres cívicos, só teremos o governo da nação como a expressão de um poder pessoal.

O remédio contra isso está exclusivamente na instrução popular, capaz de criar o que se pode chamar uma alma nacional, lúcida, sã, caracterizada e forte.

Isso que venho recomendando não é novo em outros países nem atenta contra as regalias da federação brasileira.

Todos os governos das nações, cujas condições políticas mais se aproximam das nossas, intervêm na organização moral e política da escola primária e contribuem largamente para a instrução popular. Assim é na Suíça, na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. O que não conheço é país onde o governo central se despreocupe tão absolutamente da instrução primária como entre nós; não sabendo se o povo aprende nem se há escolas, nem o que nelas se ensina; não  concorrendo com um ceitil para a instrução do povo, ignorando, por inteiro, tudo o que a isso se refere. Creio que não há um brasileiro com responsabilidade no atual regime e consciente dessas responsabilidades, que endosse e louve tal estado de coisas. Todos reconhecerão que é preciso trazer um remédio a isso e quanto antes.

Dá-se entretanto que o esforço a tentar só pode ser feito, por enquanto, indiretamente.

A Constituição republicana atribuiu, exclusivamente, aos estados todos o serviço de organização e manutenção do ensino primário e, no momento atual, ninguém deve cogitar de uma reforma constitucional. Por isso e porque, para as providências que o caso requer, vale infinitamente mais o esforço combinado, mas livre e espontâneo, de todos que têm o encargo da instrução pública, do que a decretação de leis, o que devemos fazer é procurar um meio prático de trazer para um acordo comum a ação individual de todos os que trabalham nesse mister – mesmo porque nesse particular de instrução pública há muito que duvidar da eficácia das medidas legislativas e da ação do governo sem o concurso da iniciativa particular e coletiva.

Ainda mesmo quando a União houvesse inscrito entre seus encargos a instrução elementar, muito haveria por fazer: seria preciso fazer passar a instrução das leis para as escolas e das escolas para os costumes – e, para isso, o Estado nada pode. Para essa obra, é preciso dedicações e a máquina administrativa é quase sempre estéril. Todo o segredo está, dado que consigamos vencer nossa própria inércia, em conciliar a iniciativa particular com a do poder central.

Por hora só há um meio de podermos atingir a essa almejada unificação, caracterização e nacionalização da escola primária – é o acordo voluntário de todos os estados e dos poderes da União. Cumpre provocá-lo, e, penso, não seria difícil, sobre ser de vantagens para a causa da instrução pública e da segurança da pátria brasileira; vantagens que se mede pela inteira liberdade com que cada parte entra no acordo e pela soma de inteligências, de esforços e de competência, que virão concorrer nessa obra comum. Parece-me que não haverá uma só parcela da nação brasileira capaz de negar seu concurso para essa obra salvadora, cujos trâmites são relativamente fáceis.

Imagine-se que os poderes de todos os estados e da União resolvem conferir a um congresso de profissionais competentes, adrede nomeados por cada uma das partes, a organização das bases gerais da instrução primária, dos programas escolares (escolas primárias e normais) e a adoção dos livros escolares?... Teríamos conseguido o essencial. Contra isso que se pode objetar? Que é uma quebra da autonomia dos estados? Não, pois eles concorrem de maneira livre, ficando senhores inteiramente da administração de suas escolas.

Que ficam tolhidos de prover a melhoria e o progresso do ensino público? Também não; por Intermédio dos seus representantes eles têm iniciativa para proposta das reformas que eles julgarem convenientes. Daí só poderá advir um bem: maior estabilidade na codificação do ensino.

Se a tudo isso se juntar a ação do governo central, indo em auxílio das zonas mais pobres do país, subvencionando escolas primárias, mas tendo escolas normais e escolas modelos, cujos programas devem ser os mesmos formulados pelo congresso pedagógico de todos os Estados e, no qual ele teria representantes, teremos a União no seu verdadeiro papel, sem sair das linhas constitucionais. Há um meio muito simples e natural de medir esse auxílio: é a relação entre a renda de cada um dos estados e a cifra de sua população. Por aí se pode conhecer perfeitamente aqueles que carecem do auxílio da União. Essas ideias que, estou certo, são sufragadas pela maioria dos que se interessam e têm competência dos negócios da instrução pública, trarão no terreno da prática a primeira iniciativa que se levante nesse sentido: agremiados os que assim pensam e formuladas as bases gerais, essa agremiação solicitaria dos órgãos dos poderes públicos dos diversos estados da União para que nomeassem seus representantes, com o compromisso de aceitarem as resoluções adotadas no congresso desses mesmos representantes.

É tempo de se fazer alguma coisa nesse sentido.

 

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