ZUMBI DOS PALMARES: vendo mais ao homem e menos ao mito PARTE 03: a jornada no Brasil que o antecede - Aqualtune

Representação do Reino do Congo


Aos que continuam seguindo essa nossa pequena série sobre Zumbi dos Palmares, vamos vasculhar a um pouco mais a sua gênese que o antecede. Na qual já vimos a sua possível origem, o reino do Congo e a sua dinastia, a Casa de Quinzala. Uma monarquia absolutista, conquistadora e escravagista, aspectos vistos que nos ajudam a entender polêmica que ainda vamos nos ater sobre um Zumbi tirano e escravagista. Por mais que essa opinião não seja unânime, principalmente entre os olham com um grande símbolo de liberdade e resistência à opressão.

Contudo, como já foi dito a pouco, sobre Zumbi propriamente ainda não iremos tratar. Pois ainda há mais a dizer sobre sua possível origem. Sim, isso mesmo, eu disse uma possível origem. Como assim? Para responder a isso vamos agora se ater, novamente, a sua avó Aqualtune que já comentamos ter vindo para o Brasil como escrava.

Sim, uma nobre da casa real vendida como escrava. O que pode levar muitos a se perguntarem: mas Congo e Portugal não haviam firmado uma longa e vantajosa parceria entre essas duas monarquias? O que levaria a um incidente que, por certo, poderia abalar para sempre as relações entre essas duas nações, Portugal vender a um membro da família que lhe era uma grande parceira comercial?

Responder isso exige que vejamos a alguns aspectos. O primeiro que a ruína do reino do Congo (que só seria aniquilado como nação, somente no final do século XIX) não demorou a germinar já com as constantes intrigas e guerras pela sucessão ao trono que coincidem com o crescimento e prosperidade conseguidos por meio do tráfico humano e da expansão territorial. Sim, também nas brigas pelo poder, a monarquia do Congo também muito se assemelhava às monarquias europeias.

Os golpes, alianças, assassinatos e outros desdobramentos em nada ficavam a dever a uma França e uma Inglaterra da Guerra dos Cem Anos, da Guerra das Duas Rosas, etc. Ou então a um Portugal da Guerra da Alfarrobeira em que o rei Afonso V e o Infante D. Pedro seu tio, em 20 de maio de 1449 começaram uma luta pelo poder que prejudicou seu país para sempre. Assim como qualquer outra monarquia que queiramos vasculhar seu histórico de intrigas, deposições, golpes, etc.

Entendido isso se torna mais fácil ver que esta avó de Zumbi, pode ter tido, talvez, seu destino traçado pela desgraça provocada por este que pode ter sido seu irmão, o rei Nvita a Nkanga (1617-1665), batizado como Antonio I, morto em 1665 após uma trágica derrota imposta pelos portugueses. E como isso pode ter acontecido?




O motivo para o confronto foi a sua tentativa em ignorar ao tratado feito por seu antecessor, Garcia II (tio deste Antônio), com os portugueses. Um acordo desvantajoso para seu reino, uma vez que cedia o controle de terras e montanhas para a exploração de prata e jazidas de ouro. E que por sinal este Garcia II só o fez por um erro de cálculo político. Para tanto se entenda.

Garcia II e Antônio pertenciam à sexta família que chegava ao poder no reino. Como era comum nas monarquias, os golpes e guerras eram constantes. O que por sua vez levava a necessidade de aliados nestas conspirações. De modo que o irmão de Garcia II, seu antecessor no trono, o rei Álvaro VI era um fiel aliado dos portugueses. E assim, quando Garcia II assume o trono ele acha que os holandeses, que nesta época estavam tentando tomar Angola para eles seria um parceiro de negócios mais interessante.

Contudo, seus planos não saíram como era esperado: Portugal conseguiu afastar os holandeses, sendo agora o momento de se acertar com os “traidores”- no entender dos vencedores. Como as forças portuguesas não tinham como conquistar por completo o reino do Congo, ao menos se contentaram com um acordo extremamente benéfico aos seus interesses econômicos, que Garcia não tinha como recusar. Justamente o erro de seu herdeiro Antônio que assume o poder, logo justifica que o Congo não devia nada a Portugal e que os portugueses não tinham mais direitos sobre as terras.

As rivalidades politicas entre as várias famílias que queriam tomar o poder, além dos descontentamentos das populações nativas submetidas à autoridade do Congo, como por exemplo os Jagas, facilitaram ao governador de Luanda (a colônia de Angola), André Vidal de Negreiros (sim, o mesmo lembrado nos livros pela sua participação na chamada Insurreição Pernambucana contra os holandeses) vencer a questão numa única batalha. E segundo uma versão sobre a origem de Zumbi, Aqualtune teria acabado capturada e enviada como escrava para o Brasil.

Contudo, é incerto, diante do mosaico de interesses a se explorar, se Portugal iria arriscar permitir um incidente diplomático com uma facção que ainda lutava pelo poder, enviando um membro importante como escravo. Pois as relações de amizade e inimizade eram sempre instáveis. Tanto que o filho e herdeiro deste Garcia II, Dom Afonso, que foi condenado a morte justamente por, supostamente, conspirar contra seu pai tendo o apoio lusitano.

E tem mais: de acordo com esta versão, como cativa assim ela deu a luz a três filhos: Ganga Zumba (que seria o líder de Palmares, antes de Zumbi), Ganga Zona e Sabina (que seria a mãe de Zumbi). Porém, se Ganga Zumba se tornou o governante do Quilombo de Palmares em 1670, já sendo pai de família, como tradicionalmente é colocado, ele teria que ter nascido no Reino do Congo (muito antes da captura de sua mãe em 1665) e não no Brasil.

Sendo que não pára por aí a lista de lacunas nesta história, já que as informações sobre ela vêm apenas de fontes orais, não havendo menção sobre ela nos anais da história do reino do Congo.

Semelhante, não igual, ressalta-se. O que vale relembrar que uma justificativa para a escravidão seria que os escravos eram considerados como membros das casas dos senhores, aos quais deviam obediência e respeito e que concluímos não diferir muito das relações servis do chamado feudalismo na Idade Média. Tanto quanto o controle das províncias que não raro, tinham sua posse definida pela hereditariedade. O que não estamos dizendo que era igual a forma de servidão na Europa feudal e no reino do Congo.

Logo, há uma forte possibilidade que ela tenha inventado sua origem nobre, aristocrática. Algo que não é novidade na história em geral. Sendo um exemplo dessa afirmação, um herói nacional, no país de nome Romênia (na Europa Oriental), chamado de Miguel, o Bravo. Que como Aqualtune, hoje é um vulto histórico muito popular entre seu povo, mas possivelmente, só conseguiu isso, chegar ao poder e impor seu legado, primeiramente alegando ter origem na tradicional família Draculesti que por séculos governava a região. Mas provavelmente sua alegação era uma grande mentira. E que como dissemos, não foi um caso isolado.

Júlio César, hoje o mais lembrado dos governantes romanos, também se dizia descendente de um herói mítico chamado Eneas e por aí vai. Por mais que não haja como afirmar por completo que a origem nobre de Aqualtune seja um mito. Importando que com a ajuda deste passado que ela liderou um grupo de 200 pessoas numa fuga para a Serra da Barriga, uma localidade de difícil acesso que intimidaria a repressão dos colonos em tentar lhes recapturar. Assim nascendo o Quilombo de Palmares segundo a versão mais aceita.

Uma sociedade que, evidentemente reproduzia os valores do seu lar ancestral, o Reino do Congo que não era uma sociedade democrática, muito menos igualitária. Como aliás, não havia em nenhum lugar do mundo nesta época. Fossem em gigantescos impérios como Portugal e Espanha contemporâneos a Palmares, fossem pequenos reinos tribais; era regra geral a brutal hierarquização definindo bem a aristocracia (elite governante) do resto do povo.

Por mais que é um fato que em Palmares não apenas negros encontravam refúgio, pois a arqueologia já encontrou a evidência de que brancos e índios também conviviam com os negros nos aldeamentos de Palmares. Sim, o local era uma oportunidade para outros grupos marginalizados refazerem suas vidas. O que se faz um ponto importante destacar, mas que não tem como justificar Palmares ter se feito em algum momento uma sociedade igualitária.

Entretanto, todo este exposto não muda o fato que com base numa alegada origem nobre, Zumbi, com ou sem polêmicas, se fez sim um vulto que muito mais marcou a memória popular do que qualquer um de seus supostos antecessores. E que, independente de seus erros e acertos, méritos e defeitos, por ora é um símbolo que inspira valores. Por isso essa tentativa de entender o homem de verdade por trás do símbolo. Uma tarefa difícil, mas que vamos tentar a concluir da forma mais serena possível, afim de amenizar polemicas e não as fomentar ainda mais. Tal como vamos ver na sequencia de nossa saga sobre ele. Quando vamos enfim nos focar em Zumbi e não em seus antecedentes.





(continua....)

Sobre o autor: 
LUIS MARCELO SANTOS: natural da cidade de Ponta Grossa (estado do Paraná) é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, especialista em ensino religioso e mestre em História formado pela UEPG, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.






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