Finalmente chegamos ao nosso personagem central propriamente. Uma espera longa, concordo, mas infelizmente necessária. Pois por causa dela, agora é mais fácil o entender melhor sem nos levarmos por julgamentos pré concebidos. Nem como um símbolo imaculado, nem como uma vergonha da história. Apenas como um fruto do meio que o forjou. O que permite se continuar a ver Zumbi como um símbolo de luta, ao mesmo tempo que agora se entende que ele se faz uma ideia muito maior do que o homem que foi.
Como, aliás, todos os governantes que se perpetuaram no poder, até morrerem ou serem derrubados são, no mínimo, suspeitos de merecerem de fato grande admiração. Não que se defenda a lixeira da história para todos. Mas sim que sirvam apenas para sustentar uma ideia sem a idolatria, sem a idealização cega. Até mesmo para que assim consigamos melhor refletir as contradições que até hoje persistem, entre o idealizado e o realizado: ao não nos negarmos a reconhece-las e refleti-las.
Pois é fato que temos uma tendência, sem se perceber, achar normal dadas contradições, quando elas envolvem aquilo que temos devoção, admiração; querendo então justificar a elas, ou mesmo negá-las. Como é o caso de Palmares em que desde já podemos concluir que seria algo excepcionalmente revolucionário, muito acima de seu tempo, ele se tivesse sido diferente das únicas referencias que conheceu: Congo e a sociedade colonial portuguesa no Brasil. Que o poderia ter sido, mas, não o foi. Teria sido muito difícil ter sido diferente. Portanto, desde já, julgar Palmares ou negar as contradições que ele tinha dentro de si não tira o seu mérito de toda a incrível história que forjou.
Tal qual nosso personagem central, Zumbi, ao qual, nunca é demais dizer que a maior parte da sua vida é contada por fontes orais que, inevitavelmente, com o correr do tempo, começaram a se desdobrar em diferentes versões. Não diferente, inclusive do que vimos sobre sua mãe Aqualtune, onde lacunas e contradições sobre a sua vida são gritantes, exceto aos que a idealizam e não percebem que o ideal que ela representa não depende de uma dada versão a se contar. E quem sabe outras versões até a façam ainda mais incrível, apaixonante, se pararmos a pensar melhor.
Zumbi em História em Quadrinhos. Fonte: https://universohq.com/noticias/hq-sobre-zumbi-dos-palmares-busca-financiamento-no-catarse/
Como, por exemplo, a possibilidade de uma Aqualtune, que já vimos antes, sem origem nobre, que se de fato foi responsável por ter criado tão descomunal comunidade, Palmares, isso até a torna ainda mais inspiradora. E que digo, se de fato, em razão de que não existem evidências quaisquer que confirmem ou desmintam nenhuma das afirmações que se fazem sobre ela. Tal como sobre Zumbi que, até sua idade adulta, tudo que se diz sobre ele é pura incerteza. Talvez realidade, talvez pura lenda. Por ora, impossível afirmar.
Como sobre a afirmação de que por um tempo Zumbi sentiu na pele o que era ser escravizado, apesar de ele ter nascido um homem livre em Palmares. A qual se diz que ele quando tinha apenas seis anos de idade foi capturado e levado para a vila de Porto Calvo. Deste modo ele teria se tornado propriedade de um padre chamado Antônio Melo. E ainda de acordo com esta história em questão ele teria ganhado o nome de Francisco, assim o vivendo até ter conseguido fugir já com uns 15 anos de idade e voltar para seu lar em Palmares onde seu tio Ganga Zumba era agora o monarca.
Representação de Ganga Zumba. Fonte: https://www.todamateria.com.br/ganga-zumba/
Talvez de fato, talvez um mito somente para o tornar mais heroico aos seus idealizadores, uma vez que não podemos descartar a possibilidade de que, igualmente ele possa nunca ter conhecido a condição de escravo. Somente sendo certo que quando adulto Zumbi passa a se envolver diretamente nas questões politicas de Palmares, primeiramente como um chefe militar. O que não era pouco, visto que há décadas o quilombo vivia um impasse cada vez mais insustentável com a sociedade colonial escravagista de que ele era vizinho. E Zumbi, ao que parece, se mostrou um líder militar excepcional.
Como por exemplo, no ano de 1675, quando em um confronto contra os soldados portugueses comandados pelo Sargento-mor Manuel Lopes, o jovem Zumbi revela-se desde já um grande guerreiro e organizador militar, tendo apenas 20 de idade (isso mesmo, se considerarmos seu nascimento em 1655). Quando a tropa portuguesa comandada por esse Manuel Lopes, depois de uma batalha sangrenta, ocupou um mocambo (aldeamento) com mais de mil choupanas. Parecia uma vitória certa, mas o desfecho final neste conflito em especial era questão de tempo.
Pois após uma retirada de cinco meses, Zumbi desferiu um contra-ataque, obrigando este Manuel Lopes a fugir para Recife. E após essa vitória Palmares se estendia então da margem esquerda do São Francisco até o Cabo de Santo Agostinho. O trabalho de quase um século (pois se crê que Palmares teve início em 1580) se via em mais de duzentos quilômetros de extensão, formando um governo com uma rede de onze mocambos, que se assemelhavam as cidades muradas medievais da Europa, mas que no lugar das pedras havia paliçadas de madeira. O principal mocambo, o que foi fundado pelo primeiro grupo de escravos foragidos, ficava na Serra da Barriga e levava o nome de Cerca do Macaco.
Contudo, justamente pelo seu tamanho (e consequentemente força) Palmares era uma questão urgente para as autoridades coloniais conter. E, portanto, as ameaças eram constantes. Pois apesar da eficiente defesa da comunidade pela combinação de sua localização de difícil acesso e majestosas muralhas de madeira, o governo português na região cada vez mais está disposto a lhe dar fim, pelo meio que fosse. Isso principalmente por causa da questão dos ataques que Palmares promovia às fazendas para levarem seus escravos com eles. Devendo se reforçar que estes escravos, todavia, não ganhavam a liberdade em Palmares.
A despeito de que o mito que se criou sobre isso até hoje divide opiniões e emoções. E que já era uma realidade antes de Zumbi assumir o poder. Logo, ignorando esta disputa ideológica, podemos ver que Palmares era basicamente uma verdadeira nação que queria apenas se fazer respeitar como um Estado livre da subordinação portuguesa.
Ou seja, a luta de Palmares neste quesito era para a sua sobrevivência politica e pela defesa de uma classe. Mas isso não impede que sua memória se faça uma referência de luta, desde que havendo o cuidado de não deixar levar pela ilusão da luta idealizada por muitos. Por mais que isso também nos permite olhar então para outras referências, não com a intenção de substituir, mas complementar. Mostrando assim que há muitos mais exemplos que sendo então mais conhecidos, só fazem reforçar a verdade dos fatos que a luta sempre existiu, que nunca houve acomodamento de uma classe e que em diferentes momentos, pessoas se fizeram protagonistas dignas de inspirar as atuais gerações.
Inclusive quanto a compreensão de cada momento. Como, por exemplo, Palmares que, no caminho que seguia, só tinha duas opções: vencer a um império muito maior que ele ou acabar por ele, um dia, destruído. A luta não tinha condições de se sustentar eternamente. Pois a sobrevivência de toda uma estrutura de exploração dependia que o governo colonial desse fim a estes ataques, fosse pela diplomacia, fosse pelo ferro e o fogo. Portanto, desde já, vale a pena se considerar, que Ganga Zumba, o antecessor de Zumbi, que estava a considerar um tratado de paz estivesse vendo a real dimensão da condição politica de seu reino.
Diferente de outros entre ele que, por certo, viam a esta diplomacia (que envolvia o fim dos ataques para captura de escravos) como uma ameaça à economia de Palmares. Preferindo assim se apegar à ideia de que, independente de por quanto tempo resistissem, ainda o poderiam continuar a manter a mesma postura por muito mais tempo. Logo, subestimando ao inimigo.
O que leva a um ponto controverso não só sobre Zumbi como ao seu tio Ganga Zumba. Quando no ano de 1678 o governador da capitania (divisão administrativa equivalente a um estado hoje) de Pernambuco vendo o esgotamento do longo conflito com Palmares decidiu firmar um acordo de paz. Sim, apesar dos pesares, um fato considerável ao mostrar que o governo colonial não era tão onipotente a ponto de desprezar a possibilidade de um acordo pacífico. Desde que esse não ameaçasse, de forma alguma, a toda uma estrutura de exploração que era conveniente aos mais diversos extratos da sociedade da época.
Tanto que Palmares existindo, a esta altura dos fatos, era até mais interessante ser preservada do que destruída, mas desde que cessassem os ataques às vilas e aos poderosos locais. As autoridades do governo colonial se viam já desgastadas com os inúmeros ataques que, temporariamente, até conseguiam a destruição de mocambos que, todavia, ao fim, conseguiam ser reconstruídos, voltando a ser como antes. E além disso, Palmares já criara uma dada dependência às áreas vizinhas que a viam como um polo econômico importante.
Para tanto que se entenda: os habitantes desses mesmos mocambos faziam esteiras, vassouras, chapéus, cestos e leques com a palha das palmeiras, extraiam óleo da noz de palma, faziam vestimentas com cascas de algumas árvores, produziam manteiga de coco, plantavam milho, mandioca, legumes, feijão e cana e comercializavam seus produtos com pequenas povoações vizinhas, de brancos e mestiços.
Sendo assim o governador propôs ao chefe Ganga Zumba a paz e a alforria para todos os quilombolas de Palmares. Ganga Zumba, talvez o sendo realista e pragmático aceita, mas o (quem sabe) idealista (ou intolerante) Zumbi é contra. Na versão de seus admiradores mais ardorosos, isso acontece porque ele não admite que alguns negros sejam libertos e outros continuem escravos. Porém, é muito mais certo crer que o temor do impacto econômico pelo fim dos ataques, minasse muito da prosperidade do quilombo, que tenham sido o único motivo de sua oposição ao acordo. Por mais que não se possa afirmar diante da falta de provas mais consistentes.
E aos que achem absurdo isso, vejamos que o Império colonial português tirava muito de sua riqueza igualmente com a captura e exploração de escravos, pessoas que não escolheram essa condição. Riqueza esta, à custa de cruel trabalho forçado que se via ameaçada pela concorrência de Palmares que tomava a mão de obra dos ricos proprietários que, por sua vez, querem que o governador resolva esta questão de uma vez por todas.
A qual já vimos que pela força, há décadas se fazia um recurso falho. Por isso agora era feita uma tentativa de acordo mostrando inclusive como Palmares tinha o temor de seus inimigos e por causa deste temor o respeito deles. Um ponto importante frisar até mesmo para não se desfazer porque o fato de que Palmares mereceu, ao longo da história, ser o quilombo mais lembrado no imaginário geral até hoje. Porém, se estivéssemos no lugar dos palmarinos qual seria nossa escolha: uma sobrevivência controversa ou uma morte heroica? Compreendem?
Mas enfim, como já vimos, o acordo basicamente consistia em troca do quilombo reconhecer a autoridade do governo português sobre eles, Palmares teria a liberdade garantida a todos os que já eram livres. Ou seja, uma situação de vassalagem semelhante ao que aconteceria no final do século XIX no próprio reino do Congo com o manicongo (rei) Dom Pedro VI. Portanto, ou a sobrevivência ao ver de alguns obscura ou o martírio romantizado.
Já que aceitando o acordo Palmares sobreviveria, talvez até os dias de hoje, como ocorre a várias outras comunidades quilombolas, todavia, sem a queda de um dos mais temidos quilombos pelas forças opressoras, a atual identidade negra em nosso país não teria hoje o seu maior símbolo. Valendo frisar que nunca houve a necessidade um só, um único símbolo, diante de tantos exemplos que a história ainda ignora. Pois, haviam somente duas opções para Palmares: ceder ou morrer. Morte que mesmo hoje sendo uma inspiração, também não deixou de ser um grande holocausto.
Talvez, talvez eu repito, para Ganga Zumba a sobrevivência de seu reino era o mais importante, preferindo não subestimar à crescente ameaça das forças coloniais. E quem sabe por subestimarem ao poderio inimigo que muitos podem ter visto como inadmissível este acordo. Dentre os quais, o seu sobrinho Zumbi. Por mais que brigas pelo poder nas monarquias, envolvendo deposições ou, até mesmo, assassinatos sempre fossem comuns ao longo da história. Portanto, se sua oposição ao tio se fez uma questão ideológica ou mero interesse pelo poder que cada um tire suas conclusões.
Logo, em nossa continuação iremos se ater à saga de Zumbi como o líder supremo de Palmares e a sua luta que, ao contrário do senso comum, não terminou de forma rápida, tendo se mantido por exatos 15 anos ainda.
Até lá....
Sobre o autor:
LUIS MARCELO SANTOS: natural da cidade de Ponta Grossa (estado do Paraná) é professor de História da Rede Pública Estadual do estado do Paraná, Escritor e Historiador. Especialista em ensino de História e Geografia, especialista em ensino religioso e mestre em História formado pela UEPG, já publicou artigos para jornais como o Diário da Manhã e o Diário dos Campos (de Ponta Grossa) e Gazeta do Povo (de Curitiba), assim como a obra local (em parceria com Isolde Maria Waldmann) “A Saga do Veterano: um pouco dos 100 anos (1905-2005) em que o Clube Democrata marcou Ponta Grossa e os Campos Gerais”.
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