O Americanismo como síntese histórica

A história não é feita apenas a partir das condições materiais. Muito menos feita somente a partir de ideias organizadas em sistemas filosóficos ou não. A história é feita  de  ambas  as  coisas,  por  isso  deve  ser  entendida  a  partir  destes  dois  aspectos: materialismo e  idealismo;  já  que  ao  mesmo  tempo  em  que  toda  ideia  é  humanamente produzida, toda ação é motivada. E é no continente americano que encontramos de forma mais contundente e decisiva exemplos disso. Na América um criollo da elite, como Artigas, lutou pelos índios e negros. Na América os negros escravizados utilizaram a ideologia liberal burguesa para se revoltarem, como no Haiti. Na América um presidente latifundiário foi a favor da reforma agrária, como João Goulart. Aonde mais podemos encontrar exemplos tão claros que a realidade é complexa e capaz de unir algo que muitos filósofos e historiadores trataram de separar: as ideias e o concreto, o material.

O materialismo histórico e dialético, aplicado na ciência histórica foi fundamental, por enfatizar a necessidade de explicar os fenômenos por todas as suas dimensões:

  [...] já no início da juventude de Marx, haviam se delineado aquelas características intelectuais que irão mais tarde se tornar decisivas: desde o início, manifestou-se com força o impulso de Marx no sentido da apropriação e da reelaboração dos mais importantes resultados científicos da época, bem como a inigualável atitude crítica com a qual, em cada oportunidade, ele se empenhou na reconstrução das ideias preexistentes. Nesta atividade, Marx se distinguiu por uma determinação e um rigor extremamente  raros  na  história  do  pensamento  humano,  que  se  manifestava  na apreensão dos problemas centrais e significativos, extraindo-os do conjunto confuso dos complexos problemáticos que pensadores que o antecederam haviam deixado sem  solução.  Ao  mesmo  tempo,  foi-lhe  própria  uma  apaixonada  aspiração  à universalidade, um insaciável desejo fáustico de descobrir todos os aspectos dos fenômenos, bem como um incansável empenho na atividade de pesquisa, a qual só se  extinguia  quando  ele  conseguia  compreender  o  problema  em  todas  as  suas dimensões, formulá-lo corretamente e resolvê-lo (LUKÁCS, 2009, p. 121-122).

Lukács seguiu a conduta de Engels ao exagerar a genialidade de Karl Marx, talvez também por esta razão a tradição marxista teve muitos apóstolos na historiografia. Até mesmo houve aqueles que se negavam a acreditar na via revolucionária; como Eduard Bernstein com o seu socialismo evolucionista que pegou carona na onda dos darwinistas. Salientamos aqui a essência do materialismo histórico e dialético enquanto um paradigma teórico e metodológico aonde os objetos de estudo configuram-se em totalidades, sínteses de múltiplas e recíprocas determinações.  Ou  seja,  Karl  Marx  foi  sempre  um  anti-determinista,  defensor  da pluricausalidade, como também o foi Marx Weber. 

Com  a  grande  crise  do  capitalismo,  a  crise  de  1929,  surgiu  uma  nova  escola historiográfica,  a  chamada  Annales,  na  França. A  ideia  dos  annalistas  não  deixa  de  ser inovadora, mas com a desilusão provocada pela crise não havia mais motivos para uma profunda  atividade  social. A  inovação  encontra-se  principalmente  em  uma  sistematizada dialética da duração (tempos curto, médio e longo), sem esquecer da revolução documental. Embora inovadores em sua origem, os annalistas se deixaram levar para uma história sem comprometimento político ou educacional. A história virou diversão. Se a primeira geração de Marc Bloch foi inovadora e revolucionou a historiografia, não se pode dizer o mesmo das gerações seguintes – somente Braudel teve uma grande relevância. Era mais fácil questionar o passado, trazer uma história problema e especulativa que pouco contribuí para problemas atuais. O resultado foi uma práxis científica que cultivava o peso morto da história, a indiferença com a política, sobre a qual nos embasamos em Gramsci para analisar: “A indiferença é o peso morto da história. A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua (GRAMSCI apud MARTINS, 2008, p. 218)”. A indiferença com a política dos analistas, portanto, jamais poderá ser considerada uma despolitização, devido a função social por seus seguidores exercida. A história sem política não deixou de ser politizada. Nos opomos a história das ideias que despreza as relações sociais e a história econômica que despreza as ideias.

Enquanto na Europa se trava uma batalha entre ideologia e materialismo, aqui na América, alguns historiadores, ou cronistas hoje datados, já mostravam como as duas coisas podiam se unir. Que trabalho melhor aponta a relação entre materialismo e ideologia do que “Cultura e opulência do Brasil” do padre Antonil? Outro padre que mostra perfeitamente a junção entre esses dois pressupostos é Bartolomé de Las Casas; lutou contra a escravidão indígena (escravidão que movia a economia, portanto, materialidade, o palpável, o concreto) por achar que os nativos tinham alma (alma que nos remete a ideologia, no caso do padre Las Casas, sua ideologia cristã).
 

Tempo histórico

Não obstante o desenvolvimento atual da ciência histórica, defendemos sua ligação com a pedagogia. Acreditamos que a pedagogia deve levar em conta os condicionantes históricos, não limitar-se às técnicas/dinâmicas e a sala de aula. A história não deve ser produzida para ser guardada em estantes empoeiradas de bibliotecas acadêmicas. A história deve ser didática, pois pertence a todos nós.

Por esta razão, por esta intersecção e complementariedade entre História e Pedagogia, que baseamos nosso americanismo. O revolucionário alemão Karl Marx, na sua XI tese sobre Feuerbach, diz: “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Tomamos este preceito, apenas mudando o sujeito da transformação. Somos historiadores, e acreditamos que temos um papel social a cumprir: o papel de transformar consciências. Assim: “os historiadores têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Como historiadores não podemos nos contentar com papeis, documentos e arquivos, temos que ter uma consciência social que nos possibilite pensar em uma transformação real das condições de vida das pessoas mais vulneráveis em nossa sociedade capitalista excludente. E acreditamos que a educação é o primeiro passo para a justiça social; por isto voltamos nossos esforços em interpretar a história da América.

Somente  compreendendo  nossos  processos  históricos,  temos  condições  de  pensar possibilidade de ação.Como já dizia o americanista Luis Vitale:

Temos que resgatar os enfoques de mestres latino-americanos, como Simon Rodriguez, que na primeira metade do século XIX dizia: ‘em vez de pensar em medos, persas ou egípcios, pensemos nos índios [...]mais importa entender um índio que a Ovídio (VITALE, 1992, p. 14).


Referências:

LUKÁCS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. 2 ed. UFRJ: rio de Janeiro: 2009.
MARTINS, Marcos Francisco. Marx, Gramsci e o conhecimento, ruptura ou continuidade?
Campinas, SP: Autores Associados; Americana, SP: UNISAL, 2008.
VITALE, Luis. Introducion a una Teoria de la Historia para America Latina. Buenos Aires:
Planeta, 1992.


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 
Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael Freitas. Graduado em História na FAPA, Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Tem interesse de pesquisa em História Social da América e Tendências Pedagógicas Contra-hegemônicas. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. 

3 comentários:

  1. Amigos do grupo de estudos americanistas. Parabenizo-lhes pela qualidade na formulação dos objetivos do grupo, pelo chamamento à reflexão e ao debate. Teria uma longa pauta de temas e propostas para discussão e i ntercãmbio - pena que o grupo esteja no RS enquanto eu resido em Salvador/BA.
    Cumprimento a todos e desejo-lhs sucesso

    ps/indiquem-me um endereço posotal para que eu possa enviar-lhes os exemplares dos meus livros: Cuba, Um Olhar Político e Poético e nomes Indígenas em Salvador, Bahia e Muito Mais.

    Ary Txay - txay@uol.com.br www.unidbrasil.com.br - um site semi-morto rzrzrzr

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  2. Caro Fábio, parabéns pelo artigo. Ao menos para mim, ele parece um concentrado de ideias e conceitos que propõe questões, que convida a vários questionamentos contra e a favor de sua tese central.

    De qualquer maneira não pude deixar de notar uma frase que retoma uma afirmação que faço e que muito incomoda o Rafael Freitas, sobre o aspecto religioso do marxismo: "Lukács seguiu a conduta de Engels ao exagerar a genialidade de Karl Marx, talvez também por esta razão a tradição marxista teve muitos apóstolos na historiografia".

    Obrigado.

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  3. Caro Fábio, parabéns pelo artigo. Ao menos para mim, ele parece um concentrado de ideias e conceitos que propõe questões, que convida a vários questionamentos contra e a favor de sua tese central.

    De qualquer maneira não pude deixar de notar uma frase que retoma uma afirmação que faço e que muito incomoda o Rafael Freitas, sobre o aspecto religioso do marxismo: "Lukács seguiu a conduta de Engels ao exagerar a genialidade de Karl Marx, talvez também por esta razão a tradição marxista teve muitos apóstolos na historiografia".

    Obrigado.

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