A REVOLUÇÃO HAITIANA

O Haiti foi o segundo país da América a se tornar independente – em 1804. As lutas da ex-colônia francesa inspiraram muitos criollos e negros escravizados nos mais diversos cantos do nosso continente. Ainda assim, esta parte da história permanece oculta da grande maioria.

É possível dizer que a Revolução Haitiana foi mais importante para as independências latino-americanas do que a independência das Treze Colônias. Isto porque, enquanto os recém nascidos Estados Unidos da América alcançaram uma independência de forma conservadora – mantendo as elites coloniais no poder, resguardando as grandes propriedades e a escravidão – o Haiti fez uma independência radical – abolindo a escravidão.

De São Domingo a Saint-Domingue

A ilha de Hispaniola foi a primeira em que os invasores europeus puseram seus pés. Foi a primeira onde o trabalho gerou tantas mortes que os povos originais que habitavam a ilha (aruaques e caraíbas), em menos de um século já haviam praticamente desaparecido. O processo colonizador encontrou o continente e lá se fixou. As Antilhas (da qual Hispaniola faz parte, junto com Cuba, Porto Rico entre outras ilhas) ficaram relegadas a um segundo plano, servindo de muitas vezes até de esconderijo para piratas. 

As ilhas só voltaram a despertar os interesses dos países europeus (envolvidos no processo colonial) quando houve um “surto do açúcar” nos mercados europeus – no século XVII o principal produtor de açúcar, o Brasil, estava em guerra contra os holandeses, paralisando temporariamente as exportações. Muitos países colonizadores, buscavam terras onde podiam plantar do produto. E as Antilhas tinham este potencial. Ocorre que, teoricamente, estas ilhas pertenciam ao império colonial da Espanha, mesmo que aparentemente estivessem relegadas a um “segundo plano”. A partir de então, franceses, holandeses e ingleses se lançaram às Antilhas.

Foi só no século XVIII que a colonia espanhola de São Domingo (Hispaniola) passou para o domínio francês. Volta e meia os corsários franceses invadiam a ilha e instalavam nela suas bases. Em 1697, pelo Tratado de Ryswick, a Espanha reconheceu a posse francesa da parte ocidental da ilha – a parte oriental continuou sob controle espanhol.

O São Domingo espanhol virou Saint-Domingue sob os franceses. E estes logo trataram de implantar a cultura do açúcar naquele pedaço de ilha. O deficit de mão de obra foi solucionado pelo tráfico de trabalhadores escravizados.

Em pouco menos de um século, a sociedade da colônia francesa de Saint-Domingue se dividiu da seguinte forma: os “grandes brancos” (les grand blancem francês) eram os donos de terras e de trabalhadores escravizados, eram os que possuíam o poder político, econômico e o monopólio das terras; haviam alguns mestiços e os chamados “mulatos” (que tinham uma relativa instrução); mas a grande maioria da população era de negros, submetidos ao trabalho escravo.

“A união faz a força”

Com a tradição guerrilheira indígena sempre presente na memória coletiva, os negros escravizados também se revoltaram, ou resistiram, em inúmeras ocasiões.

Em 1758, houve uma grande rebelião liderada por um certo Makandal. Foi uma rebelião significativa e que contou com a adesão de muitos escravizados que haviam fugido das fazendas dos brancos – aos negros fugitivos dava-se o nome de cimarrones. Mesmo significativas, estas rebeliões não chegaram a pôr em xeque a ordem escravocrata da porção francesa da ilha. Foi preciso esperar um acontecimento como a Revolução Francesa de 1789 para que as contradições da mais rica colônia francesa colocassem a baixo o poder dos grand blanc. 

Quando em 1789, os Estados Gerais se reuniram, em Paris, e se declararam Assembleia Constituinte, os brancos queriam ser os únicos a mandar os representantes da colônia (na cabeça deles, a colônia de Saint Domingue não era uma colônia, era, sim, uma parte do “reino da França”). Ocorre que a famosa Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão diz o seguinte: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Sabendo disso, os mestiços e até mesmo alguns negros se revoltaram. Se os homens nascem iguais e livres porque há escravidão?

Em 1791 o mestiço Vincent Ogé liderou a primeira grande revolta na parte francesa da ilha. Os negros se levantaram contra os brancos: muitos canaviais foram incendiados. A esta altura, brancos que temiam a guerra contra os negros, tentaram cooptar alguns mestiços, mulatos e até concedendo liberdade para os escravizados que lutassem em seu favor. A estratégia não deu muito certo, pois o exército de negros rebeldes crescia cada vez mais. A rebelião continuou.

Quando, na França, o governo radical dos jacobinos aboliu a escravidão em 1794, os negros que lutavam em Saint-Domingue foram cautelosos; pois tinham conquistado uma grande vitória. Nesta época, o grande líder do movimento igualitário em Saint-Domingue era o caudilho François Dominique Toussaint, ou Toussaint Louverture. 



Toussaint Louverture (1743-1803) o grande líder da Revolução Haitiana. Você já ouviu falar dele nos livros de história? Porque se fala mais em Napoleão, um ditador europeu, do que de um líder negro americano?


Louverture, tinha a esperança que os franceses iriam respeitar a abolição em SaintDomingue; mesmo que ainda houvesse brancos resistentes. Neste sentido, a orientação do caudilho foi a de esperar uma negociação com os franceses. 

Na França, entretanto, a política estava muito turbulenta. Os principais prejudicados com a abolição do trabalho escravo são os deputados da facção denominada gironda – composta majoritariamente por burgueses traficantes de escravos e comerciantes. E estes estão descontentes com os rumos radicais da Revolução. Para deixar esta facção da burguesia mais descontente, as terras em Saint-Domingue estão sendo divididas entre os ex-escravizados: uma das revindicações dos negros era acesso a terra – que estava sob o monopólio de um punhado de brancos. 

Quando a alta burguesia impôs a ditadura militar de Napoleão contra o governo radical, os proprietários de Sanit-Domingue se viram aliviados. Um governo forte na França, poderia reprimir o levante e restaurar a “ordem” (leia-se a escravidão) na porção francesa da ilha. Napoleão enviou a Saint-Domingue o general Charles Leclerc com seu exército. Louverture, acabou preso e enviado a uma cadeia na França, onde morreu em 1803.

Mas o exército dos negros não estava disposto a perder o que tinham conquistado até o momento..

A luta continua

Contra a ocupação francesa, houve vários levantes que chegaram a se estender até a parte espanhola – São Domingo. Um dos mais valorosos caudilhos, que substituiu a liderança de Louverture, foi o ex-escravizado Jean Jacques Dessalines. 

Dessalines ganhou notoriedade durante as batalhas contra os brancos e chegou ao posto de general. Foi ele que pôs fim definitivo a ocupação francesa e em 1º de janeiro de 1804 proclamou a independência da colônia; que adotou o nome de Haiti. Os brancos que ainda lutavam contra os negros decidiram fugir da ilha.

A esta altura, em toda a América já havia um grande temor dos donos de trabalhadores escravizados de que a revolta haitiana se repetisse. E após as nações latino-americanas conquistarem suas independências, isolaram completamente o Haiti – para evitar uma “contaminação”. “As dificuldades do Haiti não se deveram, com o passar do tempo, somente ao domínio da agricultura de subsistência e à ausência de perspectivas econômicas mais elevadas. Deveram-se também, e não menos, à quarentena, que lhe impuseram até mesmo as nações latino americanas recém-emancipadas.”[1]

Além deste “boicote” político e econômico, o Haiti enfrentou problemas políticos logo após sua independência. Dessalines foi assassinado em 1806. Dois de seus aliados, Henri Christophe e Alexandre Pétion, começaram a lutar pelo poder. Ambos discordavam quanto a forma de governo que o Haiti deveria seguir: Christophe era um centralista e monarquista, enquanto Pétion era federalista e republicano. A rivalidade entre os dois aliados levou o país a uma guerra civil que o dividiu em dois: ao norte o centralista Christophe, ao sul o republicano Pétion. 

Ainda assim, o Haiti conseguiu manter sua independência. Abre-se um período de guerras civis que vai até o fim do século XIX.

***

A Revolução Haitiana é um dos processos mais importantes na história americana. Mas muitas vezes nem chega a ser abordada em salas de aula (ou mesmo nos cursos de graduação). Criou-se um (mal) habito dos historiadores de tratar como América Latina apenas os países continentais – o máximo que se aborda da região caribenha é Cuba.


Notas:
[1] GORENDER,  Jacob.  O épico e o trágico na história do Haiti. Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0103-40142004000100025&script=sci_arttext

Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion . Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

3 comentários:

  1. Fabio, a Revolução Haitiana é um bom tema para um programa História em Pauta. Parabéns pelo texto.

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  2. Depois de financiar o movimento dos libertadores das americas, o Haiti foi excluido dos Congressos continentais das lideranças revolucionarias latino americanas. Ai, por racismo, inicia-se o primeiro bloqueio economico e politico, com o boicote á primeira e unica nação negra nas Americas. Portanto, é preciso que se reescreva essa parte da historia, uma vez que não há qualquer agradecimento da parte das lideranças desse movimento [os venezuelanos Simón Bolívar e Antônio José de Sucre, o chileno Bernardo O' Higgins, o argentino José de San Martín, o uruguaio José Artigas e o boliviano Andrés de Santa Cruz], nem onvite ao primeiro congresso pan-americano.

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