Mulheres em Armas

Diz a socióloga Joan Scott sobre a história das mulheres: “A emergência da história das mulheres como um campo de estudo acompanhou as campanhas feministas para melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da história.”[1]

Ainda há, entretanto, muitas questões a respeito. A história das mulheres é parte de uma pretensa “história oficial” ou é um “adendo a ela”? É uma “história à parte” com dinâmicas e movimentos próprios ou é uma narrativa que pode se inserir em qualquer outra narrativa histórica, em qualquer tempo e espaço?

Vamos começar com a Revolução Mexicana de 1910.


A participação das mulheres no processo revolucionário se explica pelas condições de vida que elas levavam ao longo do extenso governo de Porfírio Díaz. “ O processo de industrialização iniciado no porfiriato abriu, para as mulheres, as portas das fábricas, oficinas, escritórios, comércio, repartições públicas e, em particular, aumentou sua participação no magistério. A criação da Escola Normal de Professoras, em 1888, atribuiu grande importância à profissão de professora. Em 1876, 58,33% dos professores eram do sexo masculino e 25% do feminino; em 1900, 32,5% eram homens e 67,5% mulheres e em 1907, 78,29% dos docentes eram mulheres. Assim, ela começa a sair dos estreitos limites do lar para outras atividades, não apenas laborais, mas também culturais e políticas, o que leva a uma significativa mudança de hábitos”.[2]

Isto nas grandes cidades, como a capital. No campo, onde se concentrava a maioria da população, as mulheres, muitas vezes junto com seus maridos e filhos, eram expulsas da terra onde viviam devido a “modernização do campo” (aquisição de tecnologias que dispensava mão de obra) e a formação dos grandes latifúndios monocultores (nacionais ou estrangeiros – vendidos pelo governo a empresários, principalmente dos EUA). 

As mulheres se organizaram. Nas cidades começaram a escrever em revistas e jornais. Se articularam com sindicatos. Questionavam a ideia de que os homens eram intelectualmente superiores. Revindicavam o direito de participar politicamente. E, principalmente, denunciavam o regime de Díaz.

Soldadeiras da Revolução Mexicana.
Quando a guerra civil estourou, mulheres do campo e da cidade se engajaram corajosamente nos exércitos. Segundo Alicia Sagra: “Muitas vezes tiveram de suportar sequestros e estupros; abusos sexuais típicos das guerras. Elas continuavam nos acampamentos as tarefas de seus lares, buscavam alimentos, cozinhavam, cuidavam dos doentes e feridos. Mas também lutavam. Cuidavam de seus maridos, pais ou filhos e quando estes caíam, elas continuavam a batalha.”[3]


Há muitos registros fotográficos da participação destas mulheres na Revolução; afinal, o que seria de uma revolução social se não levasse em conta as revindicações das mulheres?

O espírito revolucionário das mulheres mexicanas é ainda mais antigo que a Revolução de 1910. As raízes estão na revolução de independência – ou talvez sejam mais profundas...

Leona Vicario (1789-1841) é um bom exemplo. Filha de um rico comerciante, pôde ser educada na tradição liberal/iluminista da época. Leona se engajou no movimento de Hidalgo e Morelos, exercendo a função de informante dos rebeldes – função vital numa guerra. Ela engravidou durante o processo de independência, dando à luz numa caverna enquanto se escondia dos exércitos contrários ao movimento radical de Hidalgo e Morelos. Como a independência mexicana acabou sendo controlada pelos conservadores, Leona e seu marido tiveram suas propriedades confiscadas, acusados de traição. Em 1823, com a queda do conservador Iturbide, o governo mexicano lhe concedeu uma propriedade no estado de Coahuila, onde ainda teve muitas dificuldades para se manter.

Outra importante figura deste período foi Josefa Ortíz (1773-1829) conhecida como “La Corregidora” (por ser esposa de um corregidor/governador: José Miguel Dominguez) ou “La Madre de la Patria”. Muitos historiadores apontam que durante as conspirações independentistas, que ocorriam na casa de José Miguel, Josefa participava ativamente, debatendo de igual para igual com os homens presentes. Republicana radical, acabou sendo internada num convento pelo imperador Iturbide. Após ser solta, se envolveu até o final da vida com conspirações e movimentos revolucionários. Segundo a própria Josefa, estava apenas “cumprindo seu papel de patriota”.

Com efeito, o papel decisivo das mulheres não está restrito geograficamente ao México. Na época das independências, ainda temos valorosas revolucionárias na América do Sul. 

Uma delas é Maria Deolinda Correa que seguiu seu marido ao combate, com o filho, ainda bebê, nos braços. Era a época das guerras entre federalistas e unitários na Argentina e o marido de Deolinda tinha envolvimento político com o caudilho Facundo Quiroga de La Rioja. Deolinda morreu antes mesmo de se encontrar com o marido; morreu de fome e sede na jornada. Dias após sua morte, seu corpo foi encontrado por alguns soldados e para o espanto de todos o filho de Deolinda continuava vivo nos braços dela: os seios da mulher ainda vertiam leite, alimentando a criança e mantendo-a viva. Não se sabe se a lenda virou história ou se a história virou lenda. O fato é que Deolinda virou “Defunta Correa” e se tornou uma santa cultuada. Nas capelas, erguidas em sua homenagem, é representada como uma mulher caída no chão, morta, com uma criança mamando em seu seio.

Juana Azurduy Bermudez
No Peru, bastião conservador e monarquista na época das independências, a mestiça Juana Bermudez (1780-1862) foi tão influente que liderou um verdadeiro exército de mulheres, chamado Las Amazonas. Por ser mulher e mestiça, os conservadores que se apoderaram dos governos nos países independentes acabaram restringindo cada vez mais os espaços de Juana. Ela terminou sua vida pobre e esquecida. Foi somente em 2011 que o governo de Evo Morales reconheceu a importância histórica de Juana Bermudez, concedendo-lhe, postumamente, o posto de marechal – a primeira (e única) marechal da América.[4]

Policarpa Salavarrieta (1795-1817) se tornou uma verdadeira mártir nas guerras de independência da Colômbia (na época chamada de Nova Granada). Trabalhava como costureira em diversas residências, muitas pertencentes a criollos realistas. Nesta função,La Pola(como era conhecida) podia passar informações frescas dos realistas para os rebeldes, com quem tinha contato e simpatia. Acabou sendo descoberta certa vez. Sua pena: fuzilamento em praça pública. Somente em 1910 o governo da Colômbia ergueu uma estátua em memória de La Pola.

Quando se fala em independência da América Latina, é comum (quase um hábito) citar o nome de Simon Bolívar, conhecido como “El Libertador”, mas pode-se citar, também, o nome de Manuela Saénz (1797-1856), a “Libertadora del Libertador”. Manuela foi por muitos anos exposta como uma mulher fútil, vulgar, manipuladora e dissimulada. Uma historiografia feita por homens para exaltar “os grandes homens da história”. Atualmente, a história de Manuela e seu envolvimento com Bolívar, bem como suas participações nos movimentos de independência, estão sendo revistos e muitos historiadores(as) já a consideram uma precursora do feminismo latino-americano.

No Brasil, temos o caso da conservadora Maria Quitéria (1792-1853). De origem humilde, Quetéria se engajou pela causa de d. Pedro nas “lutas” pela independência – escaramuças entre duas facções conservadoras: brasileiros e portugueses. O caso de Maria Quitéria nos mostra que nem sempre as mulheres se engajaram em causas progressistas ou socialmente justas. 

Anita Garibaldi

Por outro lado, no Brasil, há o caso famoso de Ana Maria Ribeiro (1821-1849), conhecida como Anita Garibaldi. Com 14 anos Ana casou-se. Era uma época em que o Brasil viva um período de guerra civil entre as oligarquias das várias províncias e o poder central – exercido pela Regência. O marido de Ana resolveu se alistar no exército imperial para combater a guerra civil dos farrapos, que começou na província do Rio Grande do Sul e se estendeu para Santa Catarina (onde Ana vivia com a família) em 1839. Ana acabou conhecendo o italiano Giuseppe Garibaldi, que na época lutava com os republicanos do Rio Grande do Sul. Ana se tornou Anita e lutou ao lado de Garibaldi, não só no Brasil mas também no Uruguai e na Itália, onde acabou morrendo. Por suas lutas acabou sendo conhecida como “heroína dos dois mundos” - no caso América e Europa.

***

Nos Estados Unidos, que no início do século XX já eram uma potência imperialista, a luta de muitas mulheres acabou sendo incorporado à memoria coletiva das trabalhadoras. Em 25 de março de 1911, houve um incêndio na fábrica de roupas da Triangle Company. 146 mulheres morreram – queimadas vivas. A fábrica já havia sido notificada do risco que seus trabalhadores estavam submetidos, mas não houve qualquer interesse por parte dos proprietários em dar segurança aos operários – tanto homens como mulheres. Para o capitalista o mais importante são o lucro e o equipamento; “trabalhadores há aos montes”, pensam eles. Este fato acabou sendo assimilado (erroneamente) como a origem do Dia Internacional da Mulher.[5] Após o incêndio, mulheres operárias fundaram vários sindicatos, através dos quais revindicavam melhores condições de trabalho nas fábricas.

No altiplano boliviano, de onde se extraiu a prata que tornou possível o capitalismo na Europa, há uma região conhecida por pampa Maria Barzola (19?-1942), nas proximidades de Llallagua. No século XX, entretanto, o capitalismo já não encontrava tanta prata para extrair, em compensação, havia estanho em abundância. Enquanto a revista Fortune elencava o magnata boliviano Simon Patiño (o “Rockfeller dos Andes”) como um dos homens mais ricos do mundo, uma greve, liderada pela operária mineira Barzola ganha milhares de adeptos. A greve não era boa para os empresários do estanho, e o exército boliviano tratou de exterminar com a greve. Veio um massacre – o chamado Massacre de Cataviem 1942. 10 anos após o massacre, uma revolução na Bolívia vai vingar os mortos, entre eles a líder Maria Barzola, que teria morrido enrolada na bandeira boliviana[6], como se o fino pano do pavilhão nacional lhe servisse de escuro às balas das metralhadoras.

Os anos 1960 estremeceram a política em toda a América. A Revolução Cubana. As Reformas de Base no Brasil. Black Panthers nos EUA. Movimento estudantil. Os movimentos em que mulheres participava ativamente cresceram.

Em Cuba, por exemplo, foi criada a Federación de Mujeres Cubanas (FMC), em 1960. “A FMC surgiu com a finalidade de integrar a mulher à nova sociedade, visando o seu aperfeiçoamento social e cultural, fortalecendo-se com o passar dos anos, contribuiu para o desenvolvimento de políticas de superação para as mulheres, representando a ponte entre o Estado e estas, [...]”.[7]

Ainda nos anos 1960, e nos 1970, os países da América Latina foram engolidos por ditaduras sádicas e terroristas. Contra elas surgiram muitos grupos guerrilheiros. E nestes grupos, muitas mulheres foram, também, protagonistas. No Uruguai, o Movimiento de Liberación Nacional – Tuparamos(MLN-T) se destacou na guerrilha urbana. A guerrilheira Lucía Topolansky foi uma das integrantes da MLN-T. Foi presa e barbaramente torturada pelas forças armadas do país. Com o fim da ditadura se tornou deputada e senadora da República Oriental do Uruguai, pelo Movimiento de Participación Popularda Frente Amplio.

No último ano da década de 1970, a Revolução Sandinista derrubou a família Somoza que por mais de 40 anos governou a Nicarágua. A partir de muitos registros fotográficos é possível notar a presença de mulheres – talvez nenhuma outra revolução latino-americana no século XX tenha contado com tantas mulheres nas filas revolucionárias. 

***


A participação das mulheres na história americana não se resume aos fatos e as personagens elencadas acima. Longe disso. Foram escolhidos para este pequeno artigo apenas algumas personagens e eventos relacionados a elas para ilustrar que ainda há muito para se escrever e buscar. Quantas vozes a história não calou simplesmente porque em épocas passadas se convencionou que era proibido às mulheres uma infinidade de coisas...

Hoje em dia as mulheres americanas se organizam nas mais diversas frentes: sindicatos, movimentos estudantis, sociais, intelectuais, políticos. Ainda há lutas a serem vencidas. No alvorecer do século XXI, as mulheres chegaram à presidência. Cristina Kirchner, na Argentina, Dilma Rousseff, no Brasil, e Michele Bachelet, no Chile, mostram que houve uma certa mudança na mentalidade das pessoas; por outro lado, a eleição delas fez emergir comentários preconceituosos e sexistas. Nas redes sociais, muitos movimentos feministas também são alvos de críticas, não só por homens mas também por mulheres. 

Notas:

[1] SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas.
São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 77.

[2] SAGRA, Alicia.  A  Mulher  na  Revolução  Mexicana.  Disponível  em:  http://www.litci.org/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=2471:a-mulher-na-revolucao-mexicana&catid=732:revista-correiointernacional&Itemid=106.

[3] op. cit.

[4] http://eju.tv/2011/08/herona-boliviana-juana-azurduy-ser-la-primera-mariscal-de-amrica-latina/  

[5] MANO,  Maíra  Kubik.  Conquistas  na  luta  e  no  luto.  Disponível  em:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/conquistas_na_luta_e_no_luto_imprimir.html.

[6] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2013.

[7] SANTOS, Giselle C. dos Anjos.  Mulher e Revolução em Cuba. Disponível em:  http://www.uel.br/grupopesquisa/gepal/anais_ivsimp/gt7/13_gisellesantos.pdf


Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

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