Por três séculos, os europeus aplicaram o sistema colonial na América. Mas eles encontraram resistências, tanto entre os indígenas, quanto entre os próprios colonos que vez ou outra se sentiam injustiçados pelas ordens da sua metrópole. Alguns historiadores e estudiosos, chamam o sistema colonial de “pacto colonial”. A ideia de “pacto” pressupõe um acordo amigável entre as partes que pactuam sobre uma determinada questão. Pelo fato de haver resistência e lutas contra o colonizador, por alguns setores da sociedade original, denota que não houve um “pacto amigável”, mas sim uma imposição. Ao longo dos anos, uma sociedade foi se edificando. Uma sociedade nova que já não era mais apenas indígena, tampouco exclusivamente ibérica; uma sociedade colonial que tinha suas dinâmicas e lógicas próprias. É a partir destas dinâmicas e movimentos sociais próprios que a história da América deve ser analisada.
Para entender mais sobre esta sociedade colonial na América, vamos analisar os grupos, ou categorias sociais que faziam parte dela e como se relacionavam.
Criollos e mazombos são os nomes dados aos nativos americanos filhos e descendentes de espanhóis (criollos) e portugueses (mazombos ou crioulos). Inicialmente, eram chamados assim de forma pejorativa, ofensiva.
Basicamente, os criollos da América colonial eram os grandes proprietários de terra, donos de fazendas, minas e. Os mazombos, no Brasil, seguiam a mesma linha. Entretanto, no Brasil a quantidade de trabalhadores escravizados era muito superior a das colonias espanholas.
Os criollos e mazombos eram brancos. Muitos procuravam manter-se “puros”, não se misturando às populações locais, sejam indígenas e/ou mestiços – seguindo a lógica principalmente espanhola da limpeza de sangre. Nas colonias de Espanha essa lógica de “pureza de sangue” era seguida à risca. No Brasil as mestiçagens aconteciam com mais frequência, mas longe de ser uma “democracia racial” como alguns historiadores apontavam.
Quem nos traz uma boa definição do que são os criollos é um dos expoentes da própria elite criolla na América espanhola: Simon Bolívar. Diz ele na sua famosa Carta da Jamaica de 1815: “não somos nem índios nem europeus, mas uma espécie que se coloca de permeio entre os legítimos donos destas terras e os usurpadores espanhóis”. Além de ter sido escrita num período de convulsão política, devido as revoluções de independência, esta frase de Bolívar mostra que os criollos já tinham uma ideia de pertencimento a América muito maior do que um pertencimento a Espanha; mesmo que a América fosse uma colônia espanhola.
Nas colonias inglesas da América do norte os habitantes tinham suas origens na Inglaterra.
A Inglaterra mandava para a América todas as pessoas que considerava “indesejáveis”. E quem eram estes indesejáveis? Eram aqueles que estavam de alguma maneira “sobrando” na sociedade inglesa. Ao longo dos séculos XVI e XVII a Inglaterra passava por um processo de cercamento dos campos. Os camponeses, removidos de suas terras eram obrigados ou a trabalhar para um senhor, ou então poderiam vagar pelas estradas como salteadores, assaltantes. Muitos, entretanto, encontravam seu destino nas ruas das cidades que cresciam à medida que mais e mais camponeses eram arrancados de suas terras. Logo que se iniciou a colonização inglesa na América do norte, no século XVII, essas pessoas que se avolumavam nas cidades eram obrigadas a ir para as colonias. Assim a “tensão social” diminuía.
Outro fator que levou ingleses para a América eram as perseguições religiosas. Muitos protestantes surgiram na Inglaterra, mas eram constantemente importunados pela igreja oficial do Estado inglês: a Igreja Anglicana. Para os protestantes a América seria uma possibilidade de fuga da perseguição religiosa.
Estes colonos protestantes, posteriormente, foram tidos como os “protótipos” do povo estadunidense. Eram eles os “pais peregrinos”, que tinham uma missão sagrada dada por Deus de levar à terra prometida a palavra contida na Bíblia. Assim, ficou no imaginário dos demais colonos que a América seria a “terra prometida”.
Os peregrinos protestantes constituíam, na verdade, uma pequena parcela dos colonos ingleses, pois em sua maioria, os colonos eram oriundos das cidades, os “indesejáveis” descritos acima. Mesmo assim, os protestantes deram origem ao modelo que se criou para o cidadão estadunidense: os WASP. A sigla WASP quer dizer em inglês White Anglo-Saxon and Protestant. Traduzindo: brancos, protestantes e anglo-saxões. Estas três divisas representavam o ideal que os colonos ingleses pretendiam consolidar na América. Todo “bom colono”, deveria ser branco, professar o protestantismo como doutrina religiosa e descender dos ingleses (anglo-saxões). As mestiçagens não eram bem vistas.
Foi este modelo WASP que se tornou a elite colonial das Treze Colonias inglesas. E foram eles que se levantaram contra a Inglaterra à época da revolução de independência que daria origem aos Estados Unidos.
Muitos livros didáticos colocam que o modelo colonial da América do Norte são as “colonias de povoamento”. Mas esta ideia de que existe uma diferença entre “colonias de povoamento” e “colonias de exploração” é mais do que enganosa; é na realidade uma tentativa de legitimar historicamente as desigualdades entre os países. É como se dissessem: “os países da América Latina são pobres porque foram colonias de exploração e assim será”. Nada mais falso. Toda colonia de povoamento é uma colonia de exploração: um colono não vem habitar uma região se não puder explora-la para sua sobrevivência: cortar árvores para fazer abrigos, caçar animais e cultivar a terra para se alimentar.
O que diferencia as colonias, portanto, não é a diferença entre “povoamento” e “exploração” e sim o tipo de exploração que nelas se dava.
Os indígenas sempre tiveram presentes na sociedade colonial, afinal, eram os habitantes originais da América. Após os séculos de dominação, populações inteiras de indígenas foram dizimadas pelos espanhóis, portugueses e ingleses. Dizimadas pelas doenças que os europeus traziam de seu continente insalubre: desde viroses transmitidas pelo ar até doenças venéreas que na América Original os indígenas não estavam acostumados e não possuíam imunidade para se protegerem. Dizimadas pela escravidão que os obrigava a trabalhos exaustivos impostos pelo colonizador. Na ilha de Hispaniola, localizada no Caribe, por exemplo, toda a população indígena (os caraíbas) foi morta; o que obrigou os europeus a importarem a mão de obra da África.
Nas colonias da Espanha as áreas de maior concentração indígena eram as regiões onde existiam os antigos Império Inca (Peru e Bolívia) e a Confederação Asteca (México). Os indígenas dessas regiões foram colocados para trabalhar em benefício do colonizador, seja nas minas (mita) ou nos campos de produção agrícola (encomienda). O trabalho dos indivíduos nas civilizações inca e asteca foi remanejado, os tributos aos invés de serem revertidos para suas comunidades eram revertidos para os colonos criollos da região. Na extração de prata, entretanto, o trabalho era brutal, pois para o colono europeu, e/ou descendente criollo, o que tinha maior valor eram os metais preciosos e por isso o trabalho deveria ser capaz de extrair mais e mais destes metais.
Por outro lado, nas regiões onde as populações indígenas eram organizadas em povos nômades ou semi-nômades, a escravidão indígena era mais violenta. Isso se deu principalmente no Brasil e no Caribe. Os grupos indígenas eram pequenos povoados e aldeias, espalhadas pelo território; no Brasil demasiado vasto.
Os mestiços eram filhos de colonizadores brancos, europeus, com indígenas e mais tarde com negros. Devido a pouca população branca européia, a povoação dos territórios colonizados se tornava muito difícil. Sendo os colonos em sua maioria homens, eles não tardaram em usar a violência para a reprodução. Mulheres índias foram estupradas e seus filhos eram os mestiços.
Sendo assim, não é difícil constatar que nas regiões onde a concentração demográfica era de maioria indígena, também se concentravam a maioria dos mestiços. Assim os mestiços de europeus e indígenas são a maioria da população nas regiões do México, América Central, Peru e Bolívia.
O sistema colonial, entretanto, com o objetivo de favorecer sempre à metrópole estabeleceu uma série de regras para restringir a atuação dos mestiços na sociedade. Por exemplo, os mestiços pagavam mais impostos que os criollos. Os mestiços também não podiam frequentar certos lugares. Não podiam assistir missas, não podiam ingressar nas universidades, não podiam ser doutores nem sacerdotes. Seu acesso a qualquer local era restrito na sociedade colonial. Sendo assim, eles geralmente trabalhavam como agregados nas terras de algum criollo. Por exemplo no vice-reino de Nova Espanha (México) a maioria da população era formada de mestiços que devido a um rigoroso sistema de castas tinham poucas chances de chegarem aos altos escalões da política e da sociedade enquanto o sistema colonial se perpetuasse. Os governantes peninsulares (enviados diretamente da Espanha, chamados de guachupines pelos criollos nativos) eram em número muito pequeno socialmente, cerca de 2% da população do vice-reino[1] mas eram os principais privilegiados com o sistema. Isso, obviamente, criava uma tensão, que mesmo que não fosse percebida, poderia explodir em qualquer momento propício.
Com o tempo, e a partir da rigidez imposta pelo sistema a estes grupos sociais marginalizados, muitos mestiços queriam ascender socialmente, realizar outras atividades, ter posse de terras e minas; mas devido a sua condição não podiam.
Alguns mestiços, entretanto, chegaram a acumular alguma fortuna com seus trabalhos. Com isto, podiam comprar um “certificado de brancura”. Com este “certificado” podiam ter terras, minas e ter um padrão de vida igual ao dos criollos “puros” – descendentes de espanhóis que não eram mestiços. Ser branco, neste sistema, significava ter posses; significava, também, ter recursos para comprar a “brancura”. Era como se comprassem uma nova pele, branca.
Muitos criollos, não viam com bons olhos estes mestiços “embranqueados”. Um mero pedaço de papel poderia definir que um mestiço era branco? Os criollos “puros” não aceitavam compartilhar o cabildo (assembleia municipal) por exemplo com os “ex-mestiços”. Mas vender estes certificados era um bom negócio para a Coroa de Espanha; afinal, era para os cofres da Coroa que ia o dinheiro daqueles que queriam se “embranquecer”.
Escravizados
No sul dos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil a mão de obra era predominantemente escravizada. Após o fracasso da escravidão indígena, os colonizadores europeus colocaram em prática a escravização de africanos. Os escravizados eram trazidos para a América e remanejados para as áreas onde existiam o sistema de plantation (latifúndio de monocultura), por exemplo as regiões do açúcar e cacau no Haiti (Saint-Domingue); açúcar no Brasil (aqui também eram levados para os trabalhos nas minas de ouro, principalmente no século XVIII); plantações de algodão e tabaco dos Estados Unidos; charqueadas e saladeros no Rio Grande do Sul e Banda Oriental (Uruguai). Os negros escravizados também eram enviados como mão de obra auxiliar em certos lugares – nestes casos os escravizados trabalhavam em afazeres domésticos ou como peões nos campos.
Quando se fala no trabalho escravo ao qual os africanos eram submetidos, não é levado em conta um fator essencial: o conhecimento tecnológico que estes escravizados tinham. Na África, a extração e o trabalho no ouro tinham origem remota; muitos reinos e povos tinham amplos conhecimentos ao trabalharem com este metal. Ao serem transplantados à força para as colônias na América, os conhecimentos destes escravizados eram utilizados pelos donos das minas. A prospecção para se achar ouro, no Brasil por exemplo, era feita, muitas vezes pelos escravizados oriundos da África.
No caso do Haiti, a população transplantada era a grande maioria. Isto levou as elites locais a elaborar uma rígida divisão social. Entretanto, algumas “brechas” nesta divisão acabaram por proporcionar a ascensão de alguns negros e mestiços; a Revolução Haitiana é um exemplo.
Embora os escravizados e os indígenas fossem obrigados a trabalhos forçados e exaustivos, a grande diferença entre estes dois grupos é que os indígenas viviam num sistema semelhante à servidão. Já os escravizados poderiam ser comprados e vendidos como mercadorias. Em tempos de crise, onde o comércio escravista com a África estava em risco, indígenas eram escravizados, comprados e vendidos. Isto ocorreu com frequência no Brasil.
Nos países onde a mão de obra escravizada foi responsável por parte importante da produção, ela foi mantida por mais tempo possível pelos grupos que exploram este tipo de trabalho. Em países como a Bolívia, que tinha pouca mão de obra escravizada, o fim da escravidão ocorreu em 1816. No Chile em 1826; no Paraguai em 1842; na na Colômbia em 1851; na Argentina e no Equador em 1853; Venezuela e Peru em 1854. Nos Estados Unidos, onde o sul era todo baseado na escravidão, só terminou em 1863 em meio a uma guerra civil. Em Cuba, que permaneceu como colônia espanhola até 1898, o fim da escravidão só ocorreu em 1880. E no Brasil, onde a escravidão era o eixo articulador de toda a economia, a escravidão só foi abolida no final do século XIX (em 1889!) e os negros, além de serem submetidos a uma segregação racial, encontraram muitas dificuldades de se inserirem em vários setores da sociedade da época, devido a um preconceito arraigado na sociedade brasileira, predominantemente aristocrática.
Os enviados da Europa (peninsulares, guachupines, chapetones, reinois)
Foi dito anteriormente que os enviados da Europa para cargos administrativos eram em número muito pequeno. Mesmo assim, eram eles que tinham de fato os poderes sobre as colonias. Eram os enviados da metrópole que exerciam, na América Latina, cargos muito importantes, como o de de vice-rei (que era o representante do rei – tanto de Espanha quanto de Portugal – aqui na América), membros das audiências e juízes, também só os peninsulares podiam ser oficiais do alto escalão do exército. Por terem esse poder político, muitos criollos, e demais nativos, se sentiam impotentes e até mesmo prejudicados.
Para os peninsulares (chamados assim porque vinham das metrópoles – Portugal e Espanha – que ficavam na Península Ibérica) a ideia era que colônias eram colônias, os colonos deveriam trabalhar para o enriquecimento das metrópoles e suas Coroas. Para os nativos não era justo eles produzirem tanto e não terem direito a nada. Também não era justo, para os criollos, que a metrópole lucrasse tanto e eles não. Por isso os peninsulares recebiam alcunhas por parte dos criollos; no México eram chamados de guachupines, na região do Prata de chapetones.
As divisões em grupos sociais (dos criollos/nativos até escravizados) era uma tentativa das metrópoles de manter o controle em suas colonias. Em relação aos governantes, era muito mais proveitoso ter um governante espanhol – vindo direto da Espanha – que agiria pelos interesses da Coroa do que um governante criollo, que poderia agir pelo interesse dos próprios criollos.
Notas:
[1] Timothy Anna. In: BETHEL (2001), p. 76.
Referencias:
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: da independência a 1870. São Paulo:
EDUSP, 2001.
BOMFIM, Manuel. A América Latina: males de origem. Disponível em: www.bvce.org.
DOZER, Donald M. América Latina: uma perspectiva histórica. Porto Alegre: Globo, 1974.
HALPERIN DONGHI, Tulio. História da América Latina. São Paulo: Circulo do Livro.
SCHWARTZ, Stuart; LOCKHART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
Fábio Melo. Membro
Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata.
Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América
(América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa
"História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre
educação, cultura e política.
|
Artigo muito bom
ResponderExcluir