Títulos, Liberdade e Consumo – Protestantismo na Guatemala

Por Arno Argueta*
Tradução: Wenerton Ferreira
Revisão: Mariana Yante B. Pereira
Publicado originalmente em O ISTMO www.oistmo.com



Uma simples folha de papel presa à porta de uma igreja no século XVI, em um país tão diferente (ou quiçá tão parecido?) da Guatemala dos dias atuais. Este folheto fatídico – as 95 teses de Martinho Lutero – apresentado em 31 de outubro de 1517, chegaria a assustar e, eventualmente, a derrubar a homogeneização e a generalização da Igreja Católica, bem como a produzir o protestantismo. Cria-se, assim, um movimento religioso que atualmente se reproduz e se expande pelo mundo. Contudo, não o seria até 1888, quando se funda a primeira igreja presbiteriana na Guatemala.

Devido ao fato de que esta divisão religiosa criou a separação entre Estados e religiões na Europa em um momento em que a Igreja Católica, os entes econômicos e o Estado trabalhavam conjuntamente, mostra-se interessante ressaltar as relações entre o protestantismo, a economia e o Estado na Guatemala.

Observemos, então, que estas relações aparecem como atos aparentemente não relacionados, mas cuja correlação histórico-cultural é inegável e pode ajudar-nos a entender, resgatar e dar sentido ao estado de crise em que ambas as instituições, religiosa e estatal, encontram-se em um mundo onde a economia governa globalmente.

No Porto de San José, em 02 de novembro de 1882, chega à Guatemala John Clarke Hill, missionário, representante da Junta de Missões Estrangeiras da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos. Chegando à Guatemala juntamente com, e por ordem do, então Presidente, Don Justo Rufino Barrios, é aqui onde começa a travessia da Igreja Evangélica-Protestante na Guatemala. Conta o Dr. Virgílio Zapata, em seu livro sobre a história da Igreja Protestante na Guatemala, uma pitoresca e esclarecedora história sobre os motivos pelos quais Justo Rufino Barrios, católico, esteve tão interessado em estabelecer o protestantismo na Guatemala. Segundo a anedota, Doña Frances Cleaves, amiga da família do presidente, ceava com eles, quando Barrios entra “protestando furiosamente contra a interferência sistemática que o clero mantinha em face de suas reformas preferidas. A Sra. Cleaves discutiu o assunto com bom discernimento, e logo, em um momento estratégico, perguntou algo assim: ‘Sr. Presidente, já considerou a conveniência de implantar uma igreja evangélica na Guatemala para contrariar a interferência clerical?’”[1] (Zapata, 1982, p. 29). Sugestão esta que o Presidente ouviria, e levaria ao estabelecimento da primeira igreja presbiteriana por Eduardo Haymaker na esquina da 5ª Rua e da 6ª Avenida da Zona 1 (Zapata, 1982, p. 41). Se pudéssemos dizer algo sobre o liberalismo do reformador, Justo Rufino Barrios, é que abriu o País de uma maneira que seu predecessor, Rafael Carrera, nunca havia feito. Dessa forma, o protestantismo atuou com desculpa, resultado e meio através do qual Barrios se consolidava e consolidava as medidas econômicas liberais que o caracterizaram.
Monumento do período colonial.
Assim, a chegada do protestantismo à Guatemala conseguiu romper com a hegemonia clerical-católica, graças à participação ativa de Barrios. Logrou, também, expandir a educação, já que Hill funda o Colégio Americano (Instituição educacional onde se ensinam tanto os filhos do presidente, como as crianças com menos oportunidades, através de bolsas) com dinheiro da igreja presbiteriana nos Estados Unidos e com fundos fornecidos pelo Presidente Barrios.

Talvez a maior contribuição do protestantismo seja uma mudança de pensamento, de conservador a liberal. Enquanto o catecismo estabelece várias camadas de controle através de diferentes pessoas que servem de conexão entre Deus e o crente (padres, frades, bispos, arcebispos, santos, virgens, o papa), o protestantismo as rejeita. O pensamento protestante, como na sexta tese de Lutero (“O papa não pode remir culpa alguma, senão declarando e confirmando que foi remida por Deus, ou perdoando-a com certeza nos casos que lhe foram reservados.”), se desfaz do intermediário. Outro exemplo deste distanciamento era o uso do latim na liturgia católica. O seria até o Vaticano II, em 1963, quando se incita o uso de idiomas do vernáculo local para a celebração litúrgica. Em contraste, os missionários evangélicos como Federico Crowe, de 1837-1846, focam na distribuição de bíblias e panfletos evangelistas a pessoas de todos os segmentos sociais.

Paralelamente, o liberalismo tenta desfazer-se dos intermediários governamentais e econômicos, e tornar isso acessível a mais pessoas, expandindo e incluindo, assim, no mercado, a maior quantidade de gente possível, seja como mão-de-obra ou como compradores. Essa ideia, que poderíamos chamar de um pensamento laissez-faire, era necessária para aceitar o programa de “progresso” e de reforma que Barios estabeleceu na Guatemala, pois já que o protestantismo se baseia nessa mesma ideia, ambas as instituições se estabelecem e se reforçam em prol do projeto libertário.

Atualmente, com um protestantismo já assentado nas mentes dos Guatemaltecos, havendo elegido presidentes “evangélicos”, e tendo megaigrejas com milhares de membros, o protestantismo se espalhou tanto quanto o mercado. Mais além do liberalismo, a Guatemala vive em um momento neoliberal. Neste neoliberalismo, o Estado perdeu a capacidade única de administrar a violência, encontra-se agora em um mundo globalizado onde o Banco Mundial, o FMI, a ONU ou ONGs internacionais, às vezes, parecem ter mais soberania sobre o território do Estado-nação que o governo em si. O que Hart e Negri chamam de Império. As massas e os trabalhadores do liberalismo são agora os Consumidores e Cidadãos do neoliberalismo, como entende Canclini. Nesta mudança de paradigma, cabe perguntar-se: o que mudou no protestantismo?

É fácil apontar as igrejas que mudaram o mapa da cidade da Guatemala com seus megaprojetos, como o é também apontar aqueles pastores que ganharam reputação nacional e internacional. No entanto, não podemos analisar o lugar e os produtos destes sem ver sua relação com a Igreja Católica, por exemplo. Não se pode negar a centralidade do movimento ecumênico na assinatura da Paz de 1996. Tampouco se pode negar a influência da Teologia da Libertação no movimento revolucionário. E ainda que cada igreja, corrente e denominação se relacionem de forma diferente com o catolicismo, o católico e o protestante se servem um do outro para enfatizar sua própria identidade, e ambos se valem da espiritualidade indígena como um outro através do qual se definem, de novo, como agentes do progresso, agora neoliberais.

Como, então, definimos o movimento protestante guatemalteco do presente? Primeiramente, através das relações entra cada um destes grupos. A teologia da prosperidade e o crescimento de igrejas sem-denominações, por exemplo, enfatizam a liberdade de escolher e de ser membro do mercado. Esta simbiose entre o mercado e o protestantismo (que vem desde o início do protestantismo na Guatemala, como antes demonstrado) aparece também representada na horda de títulos que pastores, desde os que lideram megaigrejas, até pastores de pequenos estudos bíblicos obtêm.

Não é raro que “Pastor-Apóstolo-Doutor” apareçam na mesma oração. Porém, estes títulos não têm outro valor além de empacotar um produto como se fosse de alta qualidade (se realmente é ou não, já é outro assunto). No entanto, com o recente caso em que um ex-candidato presidencial, deputado da nação, obteve um doutorado com uma tese (ao menos parcialmente) plagiada e publicou um livro também plagiado, aparece frente ao guatemalteco protestante uma oportunidade. Esta é a possibilidade de pôr em dúvida e questionar se essa simbiose mercado-política-religião, que em outros tempos ajudou a estabelecer o protestantismo na Guatemala, ainda ajuda a cumprir as metas do protestantismo: a grande comissão, os dez mandamentos, a regra de ouro. Mantém-se, então, a incógnita: que consequência teve aquela folha com 95 teses? E será que um Martinho Lutero contemporâneo escreveria 95 memes em um tumblr?

Notas:

[1] Tradução livre do original: Barrios “(…) protestando airadamente acerca de lainterferencia sistemática que el clero manteníaen contra de sus reformas favoritas. La Sra. Cleaves discutió el asunto con buen juicio, y luego, en estratégico momento, preguntó algo así: ‘Sr. Presidente, ¿ha considerado usted la conveniencia de empezar una iglesia evangélica en Guatemala para contrarrestar la interferencia clerical?’”

Referência:

ARCEYUZ ZAPATA,Virgilio. Historia de la Iglesia Evangélica en GuatemalaCiudad de Guatemala: Génesis Publicidad, 1982.


Sobre o Autor:
  Arno Arguetaé estudante do doutorado em Espanhol e Português na Universidade de Texas, em Austin. Trabalha literaturas e cinemas comparativos, questionando discursos de cidadania legal e cultural, criação de identidades e raça, e as respostas e debates de pertença por sujeitos racializados na Guatemala e no Brasil num mundo globalizado e midiático. 

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