A DEMOCRACIA NA AMÉRICA

Charge sobre democracia

Muitos historiadores latino-americanos são intelectualmente colonizados. O são por dois motivos: ou porque ainda não tiveram os instrumentos necessários para se libertar do eurocentrismo; ou por puro comodismo de permanecer anos vomitando uma história que não é sua (negando a sí próprios como agentes transformadores da realidade). Marx, na sua 11º Tese sobre Feuerbach nos alertou: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Pensamos de forma semelhante: Os historiadores têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. E que melhor maneira de transformar o mundo se não com toda a munição que a Ciência da História nos dá?

Mas a história só se torna uma munição para a transformação da realidade no momento em que nos desfazemos do manto da colonização do conhecimento. Esta premissa passa, obrigatoriamente, por perceber que nem tudo que vem de fora é perfeito e absoluto. A Democracia por exemplo. Nos é implantada a ideia de que a democracia nasceu com os gregos, cinco séculos antes de nossa era. Mas se concebermos democracia como um sistema político que garante as liberdades individuais e a soberania da maioria, então veremos que esta democracia está muito mais próxima às sociedades originais azteca e inca do que à Grécia Antiga! Embora a palavra democracia seja de origem grega, sua prática é americana (somos todos americanos, pois vivemos na América)!

Enquanto que na Grécia Antiga a democracia era restrita aos chamados “cidadãos”: homens livres, proprietários de terra, ricos, ou seja, a elite ateniense; na América Original a democracia era praticada a todo instante nos calpullis aztecas e ayllus incas (aldeias onde cada indivíduo participava ativamente nas decisões). Na Grécia Antiga, o simples fato de haver a escravidão já é um indicativo de que a democracia era restrita a um número muito pequeno de pessoas – além do que, as mulheres também não podiam participar da forma que atualmente chamamos “democrática”: eram confinadas dentro de casa. Nas aldeias da América Original, não havia escravidão, o que é um avanço se considerarmos a antiguidade europeia. Os calpullis e os ayllus existiram na Mesoamérica e nos Andes antes e durante a existência dos impérios azteca e inca, sendo extinguidos com a descoberta dos europeus pelos indígenas, que foram vítimas de um verdadeiro regime de despovoamento inventado pelos “homens civilizados” de além mar.

Entre os incas, são confundidos com escravos os yanaconas ou yanayacos. Porém, entre eles havia os que tornaram-se curacas de povos anexados, e vários desfrutavam de terras emprestadas, conforme Patricia Temoche Cortez. A camada social azteca confundida com escravos são os tlacotli. Eles trabalhavam no campo ou em residências, aonde muitas vezes tinham poder de mando sobre outros trabalhadores. Alimentavam-se bem, não eram proibidos de casarem-se com mulheres de outras classes e suas roupas não os distinguiam. Como entre os aztecas não existia algo semelhante as prisões contemporâneas a nós, geralmente os prisioneiros de guerra tornavam-se tlacotli, e havia também quem por sua vontade optasse por ingressar nesta categoria da classe trabalhadora azteca. Luis Vitale é um dos autores que negam escravidão na sociedade azteca.

Muro escrito com frase defendendo a FZLN

Esta tradição democrática é expressa nos dias atuais pela definição de democracia dada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN): “Na ideia zapatista a democracia é algo que se constrói a partir de baixo e com todos, inclusive com aqueles que pensam diferente de nós. A democracia é o exercício do poder o tempo todo e em todos os lugares”.

É interessante notar, entretanto, que na América Latina à medida em que a ideia de democracia foi se aproximando de uma ideia europeia de democracia, ela ia se tornando cada vez mais restrita. Um exemplo disso é o período imediatamente após as independências. Na maior parte da América Latina foram implantadas repúblicas (no Brasil, como sempre de costas para seus vizinhos, foi implantada uma monarquia). Repúblicas e monarquia baseadas nos modelos europeus e que por aqui não eram nada democráticas: só votavam os ricos, alfabetizados, donos de terras e escravos; mulheres estavam excluídas do processo; mestiços e indígenas só podiam participar da política se tivessem algum dos critérios elencados acima (ou terras, ou dinheiro). O único projeto de independência realmente democrático, não só na participação política, mas também na equidade social foi o projeto artiguista da Liga Federal[1] combatido por todos: seja pelos ricos fazendeiros americanos, seja pelo poder colonial. , que por seu conteúdo democrático “demais”, foi combatido por todos: seja pelos ricos fazendeiros americanos, seja pelo poder colonial.


***


A história nos ensina que não há democracia sem justiça social. Na América Latina, mesmo com alguns avanços significativos nas últimas décadas, ainda há regiões extremamente desiguais. O acesso à terra ainda é restrito. Em alguns países o consumismo é mais forte que a produção. E a produção ainda é voltada para a lógica colonial, se produz para o mercado externo e não para satisfazer as necessidades locais. Frente a este cenário, e a realidade neoliberal que se aprofunda cada vez mais, cabe o questionamento: nossa democracia ainda será a democracia excludente, no modelo europeu, ou vamos construir na América Latina uma democracia com justiça social baseada nos nossos povos originais?

Notas:



Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no Jornal de Viamão.

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