Quando se lê sobre tropicália, hoje em dia nossa visão deriva necessariamente para o chamado “tropicalismo musical”: O grupo de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ambos são artistas altamente consagrados na mídia e presentes nos livros didáticos. Outra questão é a associação entre tropicália e movimento hippie e pop. Ao passar dos anos, o movimento foi mais e mais tido como “variante cabocla e complexa do pop”, como o chamou Roberto Schwarz em ensaio famoso publicado na revista francesa Tempos Modernos em 1978. Glauber, ao contrário, apontava para a originalidade do movimento e dizia que Caetano e Gil eram “anti-Beatles,anti-Rolling Stones”.
O artigo de Schwarz passou a ser grande fonte acadêmica para o período, mas é um artigo que tem inúmeros problemas. Glauber Rocha o detestava e chamou de artigo “judeu e colonialesco” e repudiou a “burrice sob a forma de leis”, condenando Schwarz, FHC e Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), segundo ele um gancho do Pentágono no Brasil.
O grande defeito do artigo é não notar que o Cinema Novo foi o grande evento dos anos 60 brasileiro. É também um artigo escrito dez anos depois do movimento e que supõe, anacronicamente, que os tropicalistas deveriam conhecer as teses do grupo que fez a leitura de O Capital na USP junto a Schwarz. Esse grupo, no entanto, não tinha relevância, ainda, em 1967. E Glauber, quando conheceu as teorias, rejeitou-as decididamente. Para ele, eram a “viagem materialista grosseira da história” inspirada em Caio Prado e Florestan Fernandes. Responsabilizava, inclusive, esses dois acadêmicos pelos equívocos e derrotas da intelectualidade brasileira.
Segundo Glauber, o Cinema Novo foi mais importante que a Renascença europeia. Para Glauber, o tropicalismo musical foi apenas um curta-metragem, durou pouco tempo e não teve o sucesso dos filmes, vistos e comentados na Europa e Estados Unidos por muitos intelectuais e artistas importantes tais como Jean-Luc Godard, Judith Malina, Martin Scorsese, etc.
Muitos se esquecem que tropicália, originalmente, foi uma instalação de Hélio Oiticica montada em janeiro de 1967. Segundo Caetano Veloso, daí adveio o nome da canção-manifesto do movimento, lançada naquele ano. Inspirado no sucesso do grupo do Cinema Novo, que estava renovando o cinema brasileiro e fazendo sucesso no exterior, Caetano organizou algo semelhante na música brasileira.
Igualmente, depois que Terra em Transe saiu, Zé Celso Martinez Correa, diretor teatral, adaptou a peça de Oswald (até então nunca vista nos palcos) Rei da Vela. Não por coincidência, dedicou-a a Glauber Rocha. A peça exerceu grande fascínio em Caetano, mas não em Glauber. Glauber declarou abertamente julgar o teatro uma arte atrasada em relação ao cinema e, anos depois, criticou Zé Celso Martinez Correa por entregar-se ao materialismo sexual, para ele uma decadência muito grande.
Chico Buarque também pode ser considerado tropicalista |
A grande repercussão de Rei da Vela fez com que até mesmo Chico Buarque participasse, de certa forma, do tropicalismo A peça Roda Viva, de Chico Buarque e dirigida por Zé Celso, pode ser considerada tropicalista. A peça, que continha famosa canção de Chico, parodiava sua carreira de estrela da indústria cultural. A peça ficou famosa, pois em 1968 o Comando de Caça aos Comunistas agrediu os atores, inclusive Marília Pêra. Como em 1989, Marília Pera, ao ser criticada por petistas na campanha contra Collor, evocou o episódio, ele parece ter se tornado uma espécie de fantasma do passado, tendo retornado agora em 2016, como um assunto, por ocasião da provocação do diretor Claudio Botelho contra os petistas em um musical, montado em BH e que culminou na recente proibição, por parte de Chico, do uso de suas canções por Botelho.
Gilberto Freyre: membro da Santíssima Trindade do Tropicalismo, segundo Glauber Rocha |
Glauber definiu o tropicalismo da seguinte forma: Oswald de Andrade e Gilberto Freyre eram o Espírito Santo, ele, Glauber, era o pai, enquanto Caetano era o filho. A consideração é boa, pois em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre faz o elogio da mistura e do sincretismo como elemento positivo do Brasil, assim como usa o termo “luso-tropicalismo”.
O ano de 1967 viu essas três obras interligadas: a instalação de Helio Oiticica, o filme Terra em Transe de Glauber Rocha e a canção de Caetano Veloso. Os três artistas conheceram-se e foram amigos. Hélio Oiticica participou do filme Câncer, em 1968, uma espécie de continuação de Terra em Transe.
A inspiração para a canção tropicália, de Caetano Veloso, foi o filme Terra em Transe. Podemos facilmente usar uma obra para clarear a outra em sala de aula. Tropicália é apresentada como um lugar, um país, assim como o Eldorado do filme de Glauber. A mão direita tem uma roseira autenticando a eterna primavera. No filme, o direitista Diaz discursa fanaticamente tendo uma cruz nas mãos e gritando que pela violência chegaremos a uma civilização. Por outro lado, na mão esquerda há o bangue-bangue, em suas veias corre muito pouco sangue. No filme, o político populista Vieira nega-se a lutar contra o golpe e renuncia, enquanto o poeta Paulo Martins deseja lutar com armas.
Tanto a canção quanto o filme referem-se de forma debochada e cômica ao nosso “descobrimento”: em Terra em Transe um dos índios é o carnavalesco Clovis Bornay. Em tropicália também há uma fala em tom de deboche antes do início referindo-se ao momento em que Cabral descobriu que as terras brasileiras eram férteis.
Sendo assim, podemos dizer que não existiu tropicalismo propriamente dito, existiu o grupo de Glauber no Cinema Novo e o grupo de Caetano Veloso e Gil na cena musical. Do final dos anos 60 em diante, os dois grupos dispersaram-se, embora os artistas ainda dialogassem esporadicamente. Com a decadência do cinema enquanto arte, o tropicalismo musical ganhou grande expressão, inclusive no exterior, daí a sensibilidade contemporânea resumir muito o tropicalismo somente às canções de Caetano e Gil, invertendo o que aconteceu nos anos 60.
Lúcio Junior Espírito Santo. Graduado em Filosofia. Mestre em Estudos Literários/UFMG. Blog: revistacidadesol.blogspot.com). Bom Despacho, Minas Gerais. Nascido em Uberaba, 1974.
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Rafael: o artigo do Roberto Schwarz é Cultura e Política, 1964-69. Abs
ResponderExcluirCaro Lúcio, embora não negue a importância de Glauber e do cinema novo, acredito que 99% das pessoas não o associam ao Tropicalismo. Do ponto de vista estético, concordo com Paulo Francis, autor da famosa frase "o filme é uma merda mas o diretor é genial". No caso de Glauder, genial e megalomaníaco.
ResponderExcluirA Obra dos artistas que participaram do disco Tropicalia, principalemte Gil e Caetano, teve impacto estético e culdural dezenas de devez superior a qualquer coisa que Glauber tenha feito.
O impacto e a influência de Caetano e Gil ainda se faz sentir hoje em dia. Glauber se perdeu, datado.
Paulo: é esse justamente o objetivo desse verbete! Passado o tempo, houve uma inversão: o tropicalismo musical repercute ainda muito mais, realmente, mas no final dos anos 60 os filmes tinham mais sucesso que as canções. Glauber foi a figura-chave do tropicalismo ao realizar Terra em Transe. O filme teve enorme impacto, pois praticamente revolucionou o cinema político mundial. Helio Oiticica mesmo comentou que em New York, no final dos anos 60, "só se falava em Cinema Novo". Os acontecimentos de 68, segundo pesquisa de Michel Cement e banca composta por Foucault, tiveram como filmes inspiradores Terra em Transe, A Chinesa e Antes da Revolução. A canção Tropicália é inspirada em Terra em Transe, assim como Rei da Vela foi dedicada a ele, pela inspiração. Igualmente, Glauber foi responsável tanto pelo primeiro emprego de Caetano (crítico de cinema)e pela ideia de organizar um movimento similar ao Cinema Novo na música.
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